Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador e escritor. Mestre em inteligência artificial e ética pela PUC-SP e apresentador do Idade Mídia (Canal Futura)
Publicado em 27/08/2021
Para além do ciclo formal, há a busca do conhecimento para toda a vida, em todos os cantos. Uma nova cultura se aprofunda e a iniciativa privada e governo vão ter que considerar isso em seus planejamentos
Algumas gerações cresceram escutando dos pais que, caso escolhessem seguir carreira em medicina ou direito, carregariam o “fardo” de estudar para o resto da vida. Essa natureza equivocada de pensamento é a prova cabal de que a educação deve acompanhar o espírito do seu tempo.
Afinal, hoje, a aprendizagem permanente, aquela durante toda a vida, ou “lifelong learning” como é mais comumente chamado, é palavra de ordem para qualquer cidadão e para o desenvolvimento das nações; além disso, não pode ser encarada como um sacrifício, mas como um misto de necessidade e prazer. Escrevo este artigo assistindo à série Abstract na Netflix; e também aprendendo mais sobre a importância do design.
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A velocidade do desenvolvimento das tecnologias da informação, somadas às características de impermanência, fluidez e simultaneidade dos tempos atuais, nos deixam com poucos cenários sociais estáveis, sejam eles ligados à cidadania, trabalho ou qualidade de vida.
Consequências da economia 4.0. Em outras palavras, tudo se transforma rapidamente, e o que era tido como certo hoje, poderá não mais ser amanhã. Termos como “mercado de trabalho” já caducaram. Como estar preparados para aprender sempre?
O termo “lifelong learning” tem origem imprecisa. Há algumas décadas, nem todas as carreiras dependiam de atualização constante. A busca por informação atualizada (havia uma ação positiva, pois nada era tão acessível), sobretudo no campo da saúde, fazia da formação continuada uma tarefa quase que exclusivamente da educação superior, dos grupos de profissionais sindicalizados, ou dos auto-organizados. “Educação continuada” é uma expressão ainda vigente.
No entanto, a importância do aprendizado permanente não se restringe à empregabilidade. O próprio exercício da cidadania (direitos políticos, econômicos e sociais), a fruição de qualidade de vida e o acesso à produção e consumo de cultura também passam por ele. Os sistemas que regem o país, estado e cidade tendem a se transformarem também rapidamente – a atualização constante nos torna aptos a acompanhar o próprio desenvolvimento da participação política.
A experiência de visitar um museu, por exemplo, se modifica a cada ano – e com o uso de tecnologia, essa transformação vai se acelerar. As novas formas de produção artística digital, a maneira de apreciá-la, compreendê-la, além de produzir nossa própria expressão, vão depender de como todos nós nos relacionamos com o constante desenvolvimento das mídias e da circulação de informação. Em suma, a forma como enxergamos o mundo, e interferimos nele, depende da atualidade e acurácia da nossa formação.
Na realidade, o trabalho faz parte dessa indivisível complexidade contemporânea. Segundo o Fórum Econômico Mundial, até 2030, metade dos empregos do mundo desaparecerão devido ao avanço da inteligência artificial. A chamada IA é apenas um aspecto ligado ao “aprender durante a vida toda”. Novos postos de trabalho, baseados em criatividade e outras características ainda exclusivamente humanas, serão criados.
Assim, devemos encarar o “lifelong learning” não como um ciclo formal, mas uma cultura de aprendizagem e desenvolvimento de habilidades ligadas à melhora de nossa vida social. Essa experiência exige o desenvolvimento de habilidades que nos tornem aptos a selecionar informação, ter fluência digital em pesquisa e desenvolver autonomia para a aprendizagem. Em outras palavras, os educadores costumam chamar esse conjunto de “aprender a aprender”.
No campo da educação formal, a escola tem o dever de desenvolver essas habilidades durante a educação básica; muitas delas estão inclusive previstas na Base Nacional Comum Curricular para os diversos ciclos.
O aluno deve terminar seu ciclo escolar pronto para continuar seu aprendizado além do currículo. Assim como detalhei em outro artigo para esta mesma coluna (edição 274), a escola deve assumir seu papel de bússola, e apontar o norte magnético na curadoria de conteúdos.
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Por outro lado, na chamada educação informal, a mídia e a cultura são eixos centrais no “lifelong learning”. É possível aprender quando navegamos pela internet, em cursos rápidos e livres (como os MOOCs – Massive Online Open Courses), assistindo à televisão, no cinema, no teatro, nos museus e até nos videogames. Todavia, o fato de informação e oportunidades de formação encontrarem-se facilmente disponíveis não significa que o processo de aprendizagem permanente é garantido.
Nesse sentido, quem regulamenta ou é responsável por garantir estrutura e oportunidade para a aprendizagem durante toda a vida? A Comissão Europeia e o Reino Unido tomaram, há mais de uma década, a liderança do papel do Estado nas garantias do “lifelong learning” como elemento de desenvolvimento econômico, social e político.
A União Europeia em seu documento seminal do que chama de “aprendizagem adulta após o ciclo formal” aponta que essa modalidade de aprendizado é fundamental para a “coesão social” (equidade) e a cidadania ativa. Para isso, garante:
A Unesco (Órgão das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura), por sua vez, fundou o Institute for Lifelong Learning, com sede na Alemanha. O foco da instituição é a pesquisa, acervo, desenvolvimento de políticas e estímulo ao aprendizado durante toda a vida.
Criar diretrizes e políticas nacionais em aprendizagem permanente, que transcendem o aspecto do trabalho, mas também o incluem, é fundamental para um crescimento sustentável e equitativo da sociedade brasileira. Estamos muito atrasados nesse sentido. Se analisarmos como referência o documento corrente em debate no Congresso Nacional sobre um marco inicial para as políticas de inteligência artificial (um fraco rascunho tecnicamente impreciso), temo que chegaremos a tempo apenas de criar medidas compensatórias em relação ao resto do mundo. Ficaremos para trás mais uma vez.
Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance