NOTÍCIA
Para Francisco Soares, testes de múltipla escolha não ajudarão escolas a reorganizar o trabalho pedagógico e atender às necessidades dos alunos que ficaram sem aulas durante o isolamento
O mineiro Francisco Soares brinca que, sendo “ex” de tantas coisas, algo nunca ninguém poderá lhe tirar: é professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mas os “ex”, nesse caso, importam. Trata-se de um dos mais conceituados pesquisadores brasileiros em avaliação educacional, conhecido além das fronteiras do país. Dirigiu a Associação Brasileira de Avaliação Educacional e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, conhecido como Inep. Atualmente, também ocupa uma cadeira no Conselho Nacional de Educação (CNE), órgão de que participa ativamente. Ainda que mineiramente, Francisco Soares não teme polêmicas, e é desse ponto de vista que aborda um tema que se torna cada vez mais relevante, à medida que as escolas caminham para a reabertura em todo o país: a avaliação.
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Quando as escolas se preparam para a retomada gradativa das aulas presenciais, o tema da avaliação volta com força. Forma-se um consenso de que é preciso diagnosticar o impacto do isolamento na aprendizagem – para os que tiveram atividades pedagógicas remotas no período e para aqueles cujas escolas demoraram para agir, por diferentes razões. Como o senhor vê esse movimento?
Vamos começar por aí: os que demoraram para começar. O Brasil é um país profundamente desigual, e é desigual em todas as suas expressões. Quando as escolas pararam de receber os estudantes, algumas foram muito mais ágeis que outras. Depois de um mês, a maioria das escolas privadas, que atendem de classe média para cima, já tinham se readaptado, desde a educação infantil, as escolas estavam em atividade. Então, para essas, podemos discutir o que significa o ensino remoto. Mas, temos outro grupo que não foi atendido ou o foi de maneira muito precária. O impacto para esses estudantes vai ser muito alto. Objetivamente, eles já tinham atendimento escolar muito aquém do desejado, e agora com a pandemia piorou. Então, quando olhamos os determinantes de aprendizado, a conclusão é óbvia: durante a pandemia, a desigualdade cresceu muito. Por isso, eu entendo que nós não deveríamos gastar muita força e dinheiro para constatar algo óbvio. Deveríamos gastar muito dinheiro com os estudantes que perderam mais para que eles tenham, no tempo mais rápido possível, aquilo que precisam.
O senhor não acredita que deva haver um diagnóstico de partida?
Vou tentar explicar meu ponto de vista a partir da palavra diagnóstico. Toda avaliação deve ser diagnóstica, seja ela somativa, ao fim do período; seja formativa, ao longo do processo. Quem lê meus textos sabe que eu utilizo um triângulo pedagógico: o que ensinar, como ensinar e como avaliar. Mas existe uma seta entre o como ensinar para o como avaliar. Ou seja, a avaliação só se justifica se ela vai impactar o ensino. Agora, me incomoda muito que a avaliação diagnóstica esteja sendo no Brasil um termo designado para aplicação de testes de múltipla escolha em larga escala depois da pandemia. Acho uma abordagem muito limitada.
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Por que é limitada? O que o senhor acha que deveria ser feito?
O problema é tão grande que a avaliação também deve fazer parte de uma ação muito próxima do estudante. A avaliação é absolutamente fundamental, mas tem que, imediatamente, dizer aos professores qual é a direção a seguir. Os testes de múltipla escolha estão muito longe de poder fazer isso, por vários motivos.
Eu vou descrever o que eu gostaria que acontecesse usando a leitura, meu tema preferido, como exemplo. Uma avaliação de leitura consiste na apresentação de um texto e de perguntas sobre esse texto. O texto que a criança lê pode ser mais ou menos complexo, e você pode imaginar que, ao longo de sua escolarização, será exposta a textos cada vez mais complexos, sejam literários, sejam informativos. Mas não é só o texto: são também as perguntas. Você pode fazer uma pergunta no âmbito que chamamos literal ou propor questões do que se define como compreensão inferencial, ou seja, o leitor vai conectar fatos, trechos dos textos, e dar sentido a eles. Finalmente você pode, tendo entendido o que está escrito, ir além do texto. Eu queria que a escola tivesse esse repertório, e pudesse oferecê-los para a criança para localizá-la e descobrir se ela está pronta para perguntas mais complexas. As escolas não estão preparadas para isso e o teste de múltipla escolha vai ajudar muito pouco. Mesmo o Pisa, uma avaliação somativa internacional, já usa uma maioria de questões abertas.
Temos então uma oportunidade para discutir o modelo de avaliação utilizado no Brasil?
Sim. No Brasil, começa a circular – mas ainda precisa circular mais – a proposta das rubricas. Na avaliação com rubricas, eu corrijo uma questão, mas informo que o texto produzido está no nível inicial, com exemplos comparativos de outros trabalhos nas mesmas questões que vão puxar o aluno para cima. Aqui tem uma possibilidade enorme. O pesquisador uruguaio Pedro Ravela conta o caso de uma avaliação em escola técnica, em que o aluno tinha de produzir determinado artefato. Na sala ao lado, estavam outros produtos similares prontos. Quando o aluno terminava seu projeto, ia à sala ao lado para colocar o seu próprio na posição correspondente a uma escala de qualidade em relação ao que você fez. O que acontecia? O aluno voltava e dizia: não, quero fazer melhor. Assim, crio um padrão e dou à própria pessoa a possibilidade de comparação. É possível fazer algo semelhante com um grupo e com os professores, discutindo as respostas, também. O problema é que nossos docentes não têm o repertório, nem têm o tempo necessário. Mas isso não vai ser resolvido com testes de múltipla escolha. Por isso digo que o dinheiro deveria ser gasto empoderando as escolas para a avaliação formativa.
Ou seja, a avaliação deve ser uma ferramenta concebida de forma integrada com o planejamento pedagógico.
O formato da avaliação tem de ser um formato muito próximo do ensino, e não estamos fazendo isso. Em muitos lugares, há redes qualificadas, mas a utilidade de múltipla escolha neste momento é muito baixa. Imagina, a criança voltou à escola e eu digo: bom, ela estava no 3º ano, então deixa eu pegar um texto aqui de 3º ano e pedir pra ela responder. Isso tem de ser corrigido e a partir daí você vai tomar decisões em cada escola. Todas as turmas na volta vão ser multisseriadas. Haverá alunos que tiveram mais apoio de casa, e os que conseguiram avançar na base do heroísmo, mas a variação será muito grande. Se nossa escola quer atender os estudantes, vai ter que dar conta disso.
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