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O uso da estatística e análise de dados para informar intervenções pedagógicas, políticas educacionais e até mesmo decisões sobre a manutenção ou interrupção de certos investimentos na área de educação é uma realidade no mundo – e começa a tomar fôlego aqui no Brasil. Institutos, […]
O uso da estatística e análise de dados para informar intervenções pedagógicas, políticas educacionais e até mesmo decisões sobre a manutenção ou interrupção de certos investimentos na área de educação é uma realidade no mundo – e começa a tomar fôlego aqui no Brasil. Institutos, organizações não governamental e escolas privadas afirmam que o interesse faz parte de um esforço de racionalização das decisões relacionadas a gestão e investimento. Em alguns casos, as informações servem para dar suporte também a questões pedagógicas. Em comum, os agentes ouvidos pela reportagem afirmam que desejam que seus encaminhamentos sejam orientados por dados concretos, evitando-se interferências políticas e arbitrárias.
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Mas, como nos ensina a experiência com a gestão fundamentada em dados – ou data science, ciência de dados –, a forma como se usa e se aplica os dados envolve um significativo grau de arbitrariedade. Toda escola (e, por consequência, rede de ensino) gera certo volume de dados em seu funcionamento diário – como número de alunos inscritos no início e ao final de cada curso, faltas individualizadas, quantidade de tarefas realizadas, além, claro, de fluxo escolar e notas em avaliações externas e internas. Há ainda as informações geradas por formulários preenchidos por professores e alunos, como no caso da Prova Brasil e Enem.
O uso de dados para tomada de decisões é uma ferramenta comum em empresas cujo produto e objetivos são menos intangíveis que os da educação. Marketing, vendas e consultoria são áreas que usam intensamente, há anos, análise de dados e data science para informar novas estratégias e decisões acerca de quais projetos levar adiante, no desenvolvimento de que tipo de produto vale mais a pena investir, em que público-alvo se deve focar esforços, por exemplo.
A adoção de ferramentas de gestão da mesma natureza no ensino coincide com o aumento do interesse de economistas e com certa tendência de favorecimento do que se entende por hard science (ciências duras ou exatas) em áreas como educação e gestão de programas sociais – muitas vezes, em detrimento de áreas que tradicionalmente servem como base bibliográfica na formação de educadores, como sociologia e filosofia.
Essa nova abordagem gera também um novo nicho de atuação dentro do terceiro setor. Fabiana de Felício, sócia-fundadora da Metas Sociais – empresa especializada em tratamento estatístico para dados sociais fundada há cerca de 8 anos por professores da Faculdade de Economia da USP e por um ex-diretor do Inep, Reynaldo Fernandes – afirma que cerca de 5% a 10% do orçamento destinado a projetos sociais é gasto com avaliação. E a lista de institutos dedicados à área e amparados por dinheiro “grosso” cresce a cada ano. De modo geral, institutos ligados a grandes empresas tendem a utilizar a avaliação baseada em dados de seus programas sociais, assim como usam ferramentas semelhantes para acessar a eficácia de seus projetos em vendas, marketing, recursos humanos e desenvolvimento. E os investimentos privados sem fins lucrativos na área educacional apoiam projetos cujos investimentos podem atingir dezenas de milhões de reais.
Fabiana e outros especialistas da área concordam que, no Brasil, o Inep gera muitos dados de qualidade. Além das notas da Prova Brasil e de dados de fluxo escolar, há os questionários respondidos pelos diretores das escolas. O Inep também guarda, em uma sala com acesso restrito em Brasília, dados individuais dos alunos, codificados. Segundo Fabiana, os dados individuais são muito procurados por quem fornece esse tipo de serviço, pois permitem acompanhar a trajetória de um aluno, do ensino fundamental à universidade. “Há um cuidado para evitar vigilância na vida privada das pessoas”, afirma.
“Mas os dados individuais podem servir para fazer avaliação da eficácia da política de cotas (em universidades e institutos federais) ou sobre o real impacto de escolas técnicas ou militares no aprendizado, distinguindo o efeito da seleção de candidatos, por exemplo”, diz Fabiana, defendendo o uso. Sua empresa não fornece serviços para o MEC por a demanda ser muito maior na iniciativa privada. Mas os dados usados para construir os estudos da Metas Sociais vêm, principalmente, da Prova Brasil e do Censo Escolar: “Quando foi implementada a Prova Brasil, aumentou muito o volume de dados e, principalmente entre 2003 e 2006, houve um boom de pesquisa”.
Além do tratamento estatístico mais tradicional de dados para avaliação do impacto de projetos sociais, alguns representantes do setor investem em data science por ser um campo multidisciplinar que mistura algoritmos de programação para extrair informação de sistemas estruturados e não estruturados. Roberto Padovani é um estatístico, ex-funcionário do Itaú que decidiu abrir uma empresa para avaliar o impacto de projetos sociais. “Nesses últimos anos no banco, vi uma demanda grande de editais, mas sem especificação de indicadores de avaliação e monitoramento”, relembra. Ele diz que a ciência de dados ainda é pouco usada, mas há muitas possibilidades para expandir seu uso em ONGs e institutos dedicados à educação, esporte, infância e áreas correlatas.
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O data science, que nasceu no já lendário Vale do Silício (EUA), faz predições baseadas no comportamento das pessoas e, por seu intermédio, é possível acessar a eficácia de intervenções pedagógicas antes que os alunos façam a prova e se deem mal, por exemplo. Também é possível avaliar intervenções que não sejam mensuráveis, como provas de português e matemática.
O Instituto Península tem a proposta de trabalhar com datas science para acessar constantemente o impacto de seu projeto. A plataforma do instituto, batizada de Impulsiona Educação, trabalha a formação de professores de escolas públicas para competências socioemocionais e esportes. Assim como o marketing corporativo utiliza a ciência de dados para acessar o engajamento dos consumidores com os produtos e serviços das empresas, no Impulsiona, a ferramenta é utilizada para mensurar o engajamento dos professores com o programa de formação.
Além dos dados coletados pelo programa e gerados pelas atividades dos professores no processo de formação, o Península faz parceria com o MEC para usar informações socioeconômicas coletadas pelo Inep, além de dados da Prova Brasil e de fluxo escolar. O objetivo, segundo Vanderson Berbat, diretor do Impulsiona Educação, é acessar o impacto do investimento em esporte na educação. Um dos desejos do instituto, ele diz, é ver se o investimento em esporte reduz o abandono escolar.
Alexandre Augusto de Oliveira, cofundador da empresa desenvolvedora Meritt, explica que o movimento de utilização de dados para melhor compreender a educação começa com o ingresso de economistas na área – que trazem a ideia de educação com base em evidências. “A educação não tinha uma tradição de mensuração tão grande”, afirma. O Qedu, plataforma criada pela Meritt com patrocínio do bilionário Jorge Paulo Lehmann, usa dados socioeconômicos, de fluxo e aprendizagem (Prova Brasil) para criar gráficos e tabelas facilmente acessíveis para professores da educação básica e para o público em geral.
Oliveira acredita que, se as secretarias municipais e estaduais soubessem usar melhor os dados, o dinheiro investido na educação seria mais bem aproveitado. “O Brasil tem uma das melhores bases de dados do mundo. Poucos países aplicam provas censitárias a cada dois anos. Mas os dados gerados são subutilizados e poderiam subsidiar ações concretas nas escolas”, afirma. Ele defende que os investimentos na área devem ser guiados pelo dogma da eficiência (mínimo investimento para gerar o máximo resultado).
O Inep gera muitos dados, e uma das críticas que se ouve é que esses dados são pouco utilizados nas salas de aula, por professores. Isso acontece em parte porque, quando publicados os resultados do Ideb, por exemplo, as turmas a quem os resultados se referem podem já estar formadas e ter migrado de escola ou rede.
O projeto de Claudia Costin, na Ceipe (Fundação Getulio Vargas), propõe justamente capacitar diretores na análise de dados do Saeb. “Queremos ensinar os municípios a lidar com os dados de avaliação. Assim, o professor pode comparar sua sala com outras escolas e propor parcerias e projetos em comum”, afirma. Claudia, que já foi diretora global de educação para o Banco Mundial, reconhece que a “lógica economicista da performatividade” (investimentos por resultados) pode ser distorcida e usada por políticos para justificar cortes em áreas estratégicas – como ciência e tecnologia. “É um grave erro desinvestir em pesquisa”, diz ela.
A utilização de dados para informar decisões importantes de investimento em educação e na área social em geral pode ser bem-vinda no Brasil, principalmente porque moderniza e racionaliza a gestão do terceiro setor e porque estimula a prestação de serviços tecnicamente complexos. Em época de crise e extinção em massa de postos de trabalho qualificados, é razoável observar o estabelecimento de uma nova indústria de processamento de dados e data science.
A coleta de dados em massa de professores e alunos traz desafios, principalmente em relação à segurança das informações e proteção à privacidade das pessoas envolvidas. Se os dados do Inep são públicos e, por natureza, sua divulgação é menos problemática que a disseminação de dados em outras áreas – como na saúde –, a partir do momento em que empresas privadas começam a coletar dados de professores e alunos que utilizam seus serviços é válido questionar os dilemas éticos na eventual revenda desses dados para empresas terceiras. Isso independentemente de a empresa privada que está coletando os dados ter ou não fins lucrativos.
Outra questão que não deve ser deixada de lado é que as decisões tomadas por secretarias municipais e estaduais de educação não necessariamente priorizam análise de dados do MEC. Fatores levantados em debates com comunidades locais, alunos, famílias e professores, bem como dilemas políticos, devem ser valorizados – pois expressam os anseios de quem participa da construção da escola pública, como movimentos sociais, sindicato dos professores, associações de pais e mestres.
“O uso de evidência empírica e estatística em educação é uma prática bastante comum na pedagogia, na sociologia e psicologia da educação já faz muitos anos. Piaget escreveu sua obra com base na observação do desenvolvimento de seus filhos, os etnógrafos da educação escrevem suas dissertações com base na observação empírica e participativa. O uso de dados estatísticos não é nenhuma novidade. A sociologia da educação faz isso há pelo menos 100 anos”, afirma Lou Guimarães Leão Caffagni, doutor em educação pela Universidade de São Paulo.
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