NOTÍCIA
O fanatismo é incurável, mas o fanático pode descobrir que está humanamente doente, e isto, sim, é saudável
O escritor israelense Amós Oz, falecido em 2018, escreveu um texto intitulado Como curar um fanático. Tarefa urgente, que exige poderes quase sobrenaturais. O fanático é aquele que perdeu tudo, exceto a fé. E por isso a sua fé tornou-se destrutiva e autodestrutiva.
Talvez seja igualmente difícil curar um autoritário, seja ele político, patrão ou o síndico vitalício do prédio. Tarefa igualmente urgente, porém, sobretudo quando parece que o autoritário encarna as virtudes da liderança, e que seria capaz de salvar a pátria, ou a empresa, ou evitar que as goteiras levem o edifício ao colapso total.
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O fanatismo é incurável, mas o fanático pode descobrir que está humanamente doente, e isto, sim, é saudável. O mesmo podemos pensar com relação ao autoritarismo. Trata-se de uma doença ligada ao poder. Tanto a fé como o poder serão “coisas” positivas, se estiverem aliadas a ideias e ideais humanísticos. O problema é quando, no caso do fanático, todos os meios justificam a fé absoluta. No caso do autoritário, o poder sobe-lhe à cabeça, e em sua cabeça todos os meios justificam a afirmação do poder.
Nem todos os remédios precisam ser amargos e nem todos os tratamentos precisam ser traumáticos. O autoritário precisará tomar boas doses de solidão, na qual possa ter algumas leituras educadoras e cultivar alguns pensamentos libertadores.
A solidão tem o poder de mostrar que o poder sobre os outros é, em essência, ilusório. Quando um autoritário morre, todos descobrem que o seu comando tinha sérios limites. Descobre-se que suas palavras de ordem subitamente perdem o sentido, se é que um dia fizeram sentido. É na solidão que o autoritário irá descobrir a humilde verdade de que, talvez, como escreveu tão docemente o poeta Mario Quintana, “esses discos voadores estavam apenas observando a vida dos insetos”.
Se o autoritário ler A metamorfose, de Kafka, começará a meditar na condição humana. Gregor Samsa acorda, e, em sua profunda solidão, se vê transformado num inseto. Não necessariamente uma barata, como se costuma pensar. Um inseto qualquer, um besouro, ou um verme, porque o decisivo é perceber a imagem da fragilidade humana. Qualquer um de nós é Gregor Samsa.
Como um crítico literário explicou acertadamente, Kafka não escreveu uma história em que o personagem se sentia como um inseto. Não era uma questão psicológica, portanto. Mera sensação. O personagem se tornou de fato um inseto. E este é o real poder da literatura. O doce poder transformador da literatura. O ser humano sempre pode se transformar. Um autoritário pode acordar, depois de uma noite agitada, e não ser mais um autoritário.
A bem da verdade, nem sempre é doce o autoconhecimento. Amós Oz, naquele texto sobre o fanatismo, revela que ele próprio foi fanático. Superou a doença, tornando-se um especialista em fanatismo. Relativizou a sua fé fanática, e encontrou, por outro lado, a crença na convivência pacífica entre os diferentes. Foi chamado de traidor pelos amigos fanáticos e desprezado pelo próprio pai, e, sentindo essa dor, tornou-se mais humano.
A leitura, esta solidão a dois, é o encontro entre mim e o outro. O outro é o livro. O outro é o personagem. Mas o outro sou eu. O outro me ajuda a desenhar meu autorretrato.
Algo assim deve acontecer com o autoritário. Nos delírios do autoritarismo, a pessoa, em geral, não se considera portadora do vírus autoritário. Não se considera alguém autoritário, insuportável, desumano. Contudo, lendo Lewis Carroll, deparando com a Rainha de Copas, poderá ver-se no espelho do texto. Todo mundo pode espelhar-se na rainha autoritária. Eis uma chance maravilhosa para que saibamos de sua existência, fora e dentro de nós.
Mario de Andrade escreveu O poço, conto em que há um personagem mandão, prepotente, autoritário. Chama-se Joaquim Prestes. E este ordena a seus empregados, quase escravos, que resgatem a caneta-tinteiro que ele deixara cair dentro do poço, no fundo do qual havia água, mas sobretudo muita, muita lama.
Joaquim Prestes não quer saber de moleza. Que os empregados encontrem a caneta! E a tragam de volta, intacta! Que trabalhem sem cessar, mesmo que faça frio e o vento soprando pareça chicote em suas costas. Que desçam dentro do poço, ainda que corram perigo. O importante é que a caneta volte às suas mãos de patrão. A caneta simboliza o poder, a lei local, a autoridade absoluta. Com suas canetadas, Joaquim Prestes se considera acima de todos.
A busca durou dois dias. E finalmente a caneta foi recuperada:
Foram levá-la a Joaquim Prestes que, sentado à escrivaninha, punha em dia a escrita da fazenda, um brinco. Joaquim Prestes abriu o embrulho devagar. A caneta vinha muito limpa, toda arranhada. Se via que os homens tinham tratado com carinho aquele objeto meio místico, servindo pra escrever sozinho.
Joaquim Prestes experimentou, mas a caneta não escrevia. Ainda a abriu, examinou tudo, havia areia em qualquer frincha. Afinal descobriu a rachadura.
– Pisaram na minha caneta! Brutos…
Jogou tudo no lixo.
Tirou da gaveta de baixo uma caixinha que abriu. Havia nela várias lapiseiras e três canetas-tinteiro. Uma era de ouro.
Joaquim Prestes tinha mais de uma caneta. Não era este o problema. Era tudo uma questão de mandar e ser obedecido.
Não terá reparado, no entanto, que foi ele a cair no fundo do poço. O autoritário está preso à lama de sua mesquinhez. Por mais canetas de ouro que possua, nenhuma delas poderá assinar a sua alforria.
*Gabriel Perissé é professor da PUC-RS, escritor e palestrante (www.perisse.com.br)
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