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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 02/12/2018

A colher do açúcar e a colher do café

Uma breve crônica sobre normas, aprender e ensinar

É necessário estabelecer normas jurídicas, mas é preciso que a vigilância e o controle conheçam como limite a autonomia daqueles que não abdicam de serem sujeitos e não meros objetos cumpridores de ordens.

A Dona Glória era faxineira na casa da professora Licinha, que sempre lhe deixava sobre a mesa da cozinha o pagamento do serviço, uma chávena, um punhado de bolachas embrulhadas num guardanapo, o açucareiro e uma colher. Sob a colher, um papelinho com a recomendação de que não deixasse de a utilizar e não metesse no café a colher que iria encontrar dentro do açucareiro. A professora Licinha bem porfiava na recomendação. Porém, quando voltava a casa, encontrava a colher do café enxuta e a colher do açúcar completamente envolvida numa placa dura, que dificilmente descolava com a lavagem.

Por estas e outras razões, a Licinha se juntou a outras três professoras numa equipe de projeto, respeitando as restantes trinta professoras da escola, que “não eram muito dadas a projetos” (sic). E lá foram até à secretaria, informar que o projeto político-pedagógico da sua escola, finalmente, iria ser cumprido.

Foram recebidas por uma funcionária. A funcionária era professora e se dizia “servidora”. Não queria estar em sala de aula e, por essa razão, desempenhava tarefas administrativas. Perguntou: Afinal, que projeto é esse? As professoras explicaram o projeto em pormenor. E acrescentaram: É uma prática com respaldo legal e científico, que obrigou a uma nova organização do trabalho escolar. Por exemplo: não tem aula…

A funcionária deu um pulo na cadeira: Como é que pode não ter aula? Era só o que faltava! É um absurdo! Numa escola tem de haver aula. Sempre foi assim! E os professores têm de fazer o registro diário das aulas e da matéria ensinada.

Por que dar aula, se, há mais de vinte anos, andamos a dar aula e a maioria dos alunos não aprende? – perguntaram as professoras. E explicaram, de modo que um leigo no domínio das ciências da educação entendesse, que aula é coisa do século XIX e que a secretaria deveria rever o seu quadro normativo, de modo a adaptá-lo a novos tempos e necessidades. Se a inovação pedagógica é necessária, não será necessária inovação normativa?

Insensível aos argumentos, a “servidora” vociferou: Não autorizo! Não mudaremos uma linha dos regulamentos! Irritadas, as professoras retorquiram: Está satisfeita com os míseros 4.2 do Ideb do município?

Não lhe admito falta de respeito! É assim, porque terá de ser assim! E não esqueçam que somos superiores hierárquicos! – voltou a gritar a “servidora”. E por aí se quedou a reunião.

Há quem deixe de fazer perguntas, de discutir razões, há quem recuse trocar a ética pela prepotência. Há quem tenha medo de que o medo acabe, porque foi o medo que mais fez desaprender. Recusando dialogar, os “superiores” acreditavam ter extinto o projeto.

Mas, o desfecho deste episódio poderá ser metaforicamente explicado.  Certo dia, a professora Licinha mudou de tática: deixou a xícara com o café sobre a mesa da cozinha, sem a colher do açúcar, sem a colher do café.

Quando me perguntam qual é o principal obstáculo à mudança nas escolas, respondo que, para além dos “servidores” (talvez “serviçais” de secretarias burocratizadas), o maior obstáculo sou eu. O maior obstáculo é a minha cultura, é a cultura pessoal e profissional dos professores.

*Jose Pacheco Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em  Vila das Aves (Portugal)

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