Humor consiste numa forma não convencional de pensar (foto: Shutterstock)
Estamos no século 17. Muitas lutas nos mares do mundo. Depois de prolongado combate, o pirata francês aprisiona o pirata inglês. Este, já de pés e mãos amarrados, será agora amordaçado pelo inimigo. Antes, porém, com os olhos brilhando de raiva, dirige-se ao francês:
— Ah! Franceses gananciosos! Vocês lutam apenas por dinheiro! Nós, ingleses, lutamos pela honra!
O francês reflete, suspira, sorri para o prisioneiro, e responde:
— Concordo plenamente. Afinal de contas, cada um luta por aquilo que não tem…
A inteligência do riso
O riso não é coisa rasa. É sinal de que lutamos para entender. De que somos animais inteligentes. Aliás, como disse nosso afiadíssimo Verissimo, o ser humano é o único animal que sabe que é… irracional.
A inteligência sorri (e até solta gargalhadas barulhentas), ao perceber uma descontinuidade lógica que vem inaugurar uma nova continuidade. A continuidade anterior, há pouco, estaria na ideia repetida de que “o ser humano é um animal racional”. Mas Verissimo introduz a surpresa, e nos diz algo que ninguém, aparentemente, havia afirmado desta maneira: somos seres irracionais… e sabemos disso!
Algo na mesma direção havia escrito Gilbert Chesterton: “O louco é aquele que perdeu tudo, exceto a razão”. Esperávamos a continuidade do já sabido (o louco perdeu a razão). Mas aí vem Chesterton e cria uma descontinuidade (o louco só não perdeu a razão). Ele perdeu tudo justamente porque entronizou a razão. Loucos fanáticos, por exemplo, podem convencer os outros com seus argumentos. Estão convictos de que sabem tudo, o que, por si só, revela a insanidade!
Quanto a fanáticos, o grande Winston Churchill, frasista em tempos de paz ou de guerra, dizia que “o fanático não é só aquele que não consegue mudar sua própria opinião, mas, sobretudo, não vai mudar de assunto”. Que uma pessoa não mude de opinião, tudo bem, talvez seja coerente (continuidade). Mas (prepare-se para a descontinuidade) aquele que não aceita pular para outro tema é um autêntico perigo para a democracia (nova continuidade).
É ato inteligente provocar o riso, confirmando, refutando e, finalmente, reinventando expectativas. Como naquela piada do camarada que tinha um carro blindado para se proteger dos assaltos (continuidade). No entanto (aí vem a descontinuidade), como os assaltantes julgam que o dono de um carro blindado é rico e vão tentar roubá-lo, ele, com medo, deixa seu carro dentro da garagem e nunca o dirige (nova continuidade).
O riso literário
O humorista português Ricardo Araújo Pereira escreveu
A doença, o sofrimento e a morte entram num bar (Tinta-da-China, 2017), que ele considera “uma espécie de manual de escrita humorística”. A sua hipótese básica é a de que o humor consiste numa forma não convencional de pensar. Modo de pensar, podemos nós deduzir, que necessita desesperadamente das convenções.
As coisas que todos aceitam como verdadeiras, desconstruídas e depois transformadas em coisas ainda mais verdadeiras, nos fazem rir. O meu riso avisa que entendi a denúncia.
O escritor e político Thomas Morus, no século 16, condenado à morte por desobediência ao rei, teria feito pelo menos duas piadas
in extremis. Pedindo ajuda a um dos oficiais ali presentes para subir a escada do cadafalso, disse: “Quanto a descer, não se preocupe, eu me viro sozinho”. E ao colocar a cabeça para a decapitação, teria também arrumado a barba para protegê-la do machado: “Ela é inocente de qualquer crime e não merece ser cortada”.
Morus realmente fez piadas poucos minutos antes da morte? Se não ele, outro alguém, com humor atento, inventou-as para eternizar o autor de
Utopia como um mártir divertido.
Muitas piadas e anedotas circulam sem que saibamos quem foi o gênio literário que as concebeu.
É famosa uma blague já atribuída a três ou quatro pessoas diferentes: “Os jornalistas são aquelas pessoas que sabem distinguir o joio do trigo… e publicam o joio”. A continuidade, apoiada na imagem evangélica, me autoriza a pensar que o trigo é o que merece ser colhido, e que o joio será arrancado e lançado fora. A ideia inicial é derrubada, cai e logo se levanta, mostrando que o joio publicado é resultado de um critério contrário.
O riso é realmente uma questão de escolha. E de visão. Como acontece com as leituras.
No livro que mencionei antes, Ricardo Pereira escreve:
Costuma dizer-se que, quando o sábio aponta para a lua, o louco olha para o dedo. O autor dessa observação humorística olhou para todo o lado: para o sábio, para a lua, para o louco e para o dedo. O que quer dizer que olhou através dos seus olhos (porque viu o sábio e o louco), e olhou através dos olhos do sábio e através dos olhos do louco (porque também viu a lua, como o primeiro, e também viu o dedo, como o segundo).
Ler é querer ver tudo. Através dos próprios olhos, e dos olhos do narrador, e dos olhos dos personagens e das próprias palavras.
O cósmico é cômico.
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