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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 29/08/2018

Tempo

Egídio aprendeu que cada coisa tem uma cadência própria, com seus atrasos e consequências

tempo Foto: Shutterstock

Havia “tolerância zero” numa escola brasileira. Estudante atrasado perderia todas as aulas do dia. Mas a medida não durou mais que duas semanas. Os pais reclamaram e a diretora voltou atrás. Decidiu flexibilizar as regras e deixar que os alunos entrassem para a segunda aula: Queremos o fim da cultura do atraso – disse.

Eu concordo, embora considere oportuno acrescentar que, se a naturalização do atraso é um fenômeno questionável, também é certo que a cronobiologia é uma ciên­cia. Daí que ousei transcrever um excerto de um livrinho, que dá pelo nome de Pequeno dicionário dos absur­dos (publicado pela Artmed). Recomendo a leitura integral do livrinho, porque os absurdos da educação não se quedam por aqui.

O Egídio, adepto confesso da imposição de cadências uniformizadoras e horários-padrão, tomou consciência da diversidade rítmica quando menos esperava e como, a seguir, se verá.

Certo dia, elogiei-o, quando ele voltava de um congresso:

– Admiro a tua vontade de aprender. E, então? Valeu a pena?

– Valeu, pois! Mas só até meio, que eu tive de me vir embora logo depois do intervalo.

E o Egídio explicou. No intervalo do congresso, ele careceu de satisfazer uma das mais elementares necessidades fisiológicas. Dirigiu-se ao WC. Empurrou a porta. A célula fotoeléctrica funcionou na perfeição. O controle automático disparou. Fez-se luz. O Egídio foi até ao fundo do corredor. Desapertou a braguilha. Encostou-se ao mictório. Aliviou-se, ou melhor e para não fugir à verdade, deu início à aliviação. Para não sair a meio da palestra, a contenção urinária havia sido longa. As águas a verter eram mais que muitas. Subitamente, a luz foi-se. Sem deter a micção, o Egídio ergueu um braço e acenou, voltou a acenar e… nada. O WC manteve-se imerso na mais profunda escuridão.

Ao trocar de mãos, para acenar com o outro braço, escapou-se-lhe a coisa, e os urinários fluidos verteram-se, calças abaixo, numa torrente morna, que não tardou a sentir fria e desconfortável, até aos sapatos. O Egídio sacudiu-se. Depois, quedou-se, hirto e sofrido. Naquele preparo, empreendeu o regresso, percorrendo o longo corredor às apalpadelas, praguejando de cada vez que introduzia as mãos tacteantes em humidades não identificadas.

Acabou o périplo encaixado entre dois lavatórios e embatendo frontalmente contra uma traiçoeira parede, que as trevas ocultavam. Meio tonto da pancada, continuava a acenar com a sinistra. Contornou o obstáculo, com a mão direita colada à dorida fronte, onde começava a emergir uma dorida protuberância. Ao contornar a fatídica parede, o automático, que estava ajustado para o tempo-padrão de uma urinação normal, disparou novamente. E fez-se luz!

Curioso e inteligente como qualquer professor, o Egídio quis saber mais sobre o assunto. Apurou que os toques de campainha tinham sido introduzidos nas escolas do século XIX. Já ninguém se recordava dos objetivos visados pela longínqua introdução desse dispositivo, mas a sineta, manualmente acionada do tempo dos avós dos profes­sores, soava, agora, a mando de um computador. Conclusão a extrair do lamentável e providencial episódio: os caminhos da conscientização são misteriosos e insondáveis.

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