Da transmissão
Saberes, práticas e linguagens são transmitidos pela escola — e nos constituem como seres que pertencem a um mundo histórico, sem nos amarrar ao passado. Leia mais na coluna de José Sérgio Fonseca de Carvalho
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Com o advento da chamada “sociedade do conhecimento”, as teorias da educação sofreram uma profunda transformação. A noção clássica de “transmissão” de um legado entre gerações, presentes em pensadores tão diversos como Durkheim e Gramsci, cederam espaço à noção de aprendizagem. A centralidade do ensino e da instrução foi subitamente substituída pela do aprendizado e o papel da instituição como elemento mediador das relações educativas passou a ser amplamente questionado. A própria menção à noção de transmissão passou a ser vista como signo de uma concepção ultrapassada da qual deveríamos nos livrar em favor da criatividade e da espontaneidade da criança. Mas, seria possível, de fato, pensarmos em educação abdicando dessa noção? Ou estaríamos simplesmente confundindo uma forma histórica e específica de transmissão – aquela caricaturalmente descrita nas críticas às escolas ditas tradicionais – com o fenômeno social e eminentemente humano da transmissão?
A questão explicitada acima exige, em primeiro lugar, que elucidemos aquilo que é específico da noção de transmissão, distinguindo-a da mera comunicação. Os animais, por exemplo, são capazes de se comunicar entre si, alertando para um perigo ou indicando a presença de comida. Mas não se pode falar, nesses casos, de uma transmissão, pois eles se atêm às demandas e urgências do presente, enquanto a transmissão implica a passagem intergeracional de um legado de práticas, linguagens e saberes que é específico dos humanos. Se a comunicação de informações e dados se propaga sobretudo no espaço, a transmissão cultural opera no tempo e decorre da historicidade do humano.
Por essa razão, os objetos da transmissão são, sempre e simultaneamente, materiais e simbólicos. Os pais transmitem a seus filhos um nome e, com esse gesto, os inserem em uma linhagem histórica, deles fazem os sucessores de uma narrativa familiar que se inicia bem antes de seu nascimento e que se prolongará para além de sua vida individual. Essa vinculação histórica não necessariamente implica continuidade. Ela pode resultar em rupturas significativas – como um príncipe que abdica do seu direito ao trono por amor ou o filho do imigrante que se transforma em presidente da república –, mas tais rupturas só são assim consideradas porque se remetem a uma condição histórica anterior. Onde só há presente não há rupturas.
O mesmo vale para a transmissão de saberes, práticas e linguagens que se opera na instituição escolar. Ela nos constitui como seres que pertencem a um mundo histórico, sem nos amarrar ao passado. Mas, sobretudo, nos livra da tirania do presente que ameaça reduzir a vida humana ao aqui e agora, como se não fôssemos seres históricos, mas meros organismos na luta pelo presente e pela sobrevivência.