Redes sociais podem gerar dependência. (Imagens: Shutterstock)
Estamos conectados. No final de 2017, o número de smartphones em uso no Brasil igualou o de habitantes, segundo projeção da Fundação Getulio Vargas. E o IBGE, já em 2016, apontou que a internet estava presente em 63,6% dos lares brasileiros. O aumento desse acesso, tudo indica, é irreversível, e em escala mundial. Já temos uma geração de adolescentes e crianças que, em sua maioria, naturalmente, se comunica, interage e, sem metáforas, vive em um universo virtual — do qual fazem parte, onipresentes, quase inescapáveis, as chamadas redes sociais (Facebook, Instagram, WhatsApp, Snapchat e alguns poucos etc.). Parecia tudo ótimo. Mas, recentemente, pesquisadores e protagonistas dessa revolução frenética lançaram um alerta, que devemos considerar e discutir: não estamos apenas conectados; estão nos conectando, nos monitorando e fazendo experimentos sociais com nossas interações. É algo muito perigoso. E precisamos falar sobre isso.
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Vamos nos ater ao Facebook, uma gigantesca corporação privada que vem atuando, com habilidade e eficiência notáveis, na comprovada manipulação da psicologia comportamental e de elementos químicos que agem sobre seres humanos. Sim, estamos falando de incutir na população um vício calculado. Nem mesmo o maior dos laboratórios farmacêuticos ou dos conglomerados de entretenimento chegou perto do que o “Face” conseguiu em seus 14 anos de existência.
E caríssimo: em sua curta existência, nessa estratégia de domínio quase absoluto das interações via rede, o titã já havia adquirido o Instagram (por estimado US$ 1 bilhão, considerado um absurdo à época, 2012), dois anos depois o WhtasApp (US$ 22 bilhões) e, joia da coroa por sua adoção em massa pelos mais jovens, o Snapchat (exorbitantes US$ 49 bilhões, em 2016). Vamos convir, é muito poder concentrado em um só conglomerado.
Inicialmente uma plataforma de relacionamento desenhada apenas para aproximar os estudantes da Universidade Harvard (EUA), a empresa virou sinônimo de rede social ao possibilitar interconexões entre cerca de 2,1 bilhões de pessoas em todo o planeta. O Brasil aparece em terceiro lugar no ranking de países com maior número de usuários, com 130 milhões, empatado com a Indonésia, e atrás somente da Índia (250 milhões) e dos EUA (230 milhões).
O crescimento impressionante do Facebook — cujo valor de mercado é superior a US$ 500 bilhões, equivalente apenas às americanas Apple, Alphabet, Microsoft e Amazon, e à chinesa Tencent — baseou-se em tecnologia até então inédita para criar dependência, possibilitar a disseminação de notícias falsas sem nenhuma espécie de filtro, dar origem a bolhas de pensamento e permitir que minorias radicais se organizem, acreditando ter presença social maior do que a apontada pelos índices demográficos.
A estratégia de manipulação foi admitida por um dos responsáveis pela sua execução, o canadense de origem cingalesa Chamath Palihapitiya. Ele começou a trabalhar no Facebook aos 31 anos, em 2007, e tornou-se o vice-presidente da área encarregada de aumentar o número de usuários. Saiu de lá em 2011. No ano passado, abriu a boca: em um evento na Universidade Stanford (EUA), afirmou que “os curtos ciclos de necessidade de atenção movidos por dopamina, que nós criamos, estão destruindo a forma como a sociedade funciona”.
Ele se referia aos “likes”. Quando notamos que alguém “curte” o que publicamos, nosso organismo recebe uma pequena descarga de dopamina, uma das substâncias químicas produzidas pelas células do sistema nervoso, e que atua, entre outras funções, na sensação de prazer. Quanto maior o número de “curtidas”, maior o prazer; sabendo que determinado tipo de publicação pode provocar esse efeito, tendemos a publicar sempre algo parecido, ou seja, a forjar uma personalidade digital que ganha “likes”. Sem eles, tem-se a sensação de vazio. O ciclo gera ansiedade e dependência.
Palihapitiya reconheceu também o “problema global” representado pela circulação de informações falsas e lembrou um caso ocorrido na Índia, onde sete inocentes foram linchados em virtude de um boato alimentado por uma corrente no WhatsApp. “Imagine uma situação ainda mais extrema, em que indivíduos mal-intencionados podem agora manipular grandes grupos de pessoas para que elas façam qualquer coisa”, disse. “É uma coisa simplesmente terrível.”
Em entrevista à rede CNBC, ele observou que “as mídias sociais estão criando uma sociedade que confunde ‘popularidade’ com ‘verdade’”, ou seja, a ideia de que algo compartilhado por muitas pessoas é, automaticamente, verdadeiro – sem que se preocupe em buscar a fonte. “Li no Facebook” ou “vi que amigos compartilharam” pode atribuir a uma notícia falsa o status de verdadeira. As eleições presidenciais americanas de 2016 e a crise política brasileira dos últimos anos registram inúmeros casos de disseminação das “fake news”.
“As ferramentas que criamos hoje estão começando a corroer o tecido social, o funcionamento da sociedade”, disse Palihapitiya à CNBC. Seu pensamento sobre o mundo que ajudou a transformar pode ser resumido na seguinte confissão: ele afirmou que procura se manter longe do Facebook e proibiu que seus filhos usem a rede social. Não está sozinho; o próprio Mark Zuckerberg, fundador e principal executivo do Facebook, já afirmou que proíbe seus filhos de acessarem as redes sociais, a exemplo da postura adotada por outros dois arquitetos da vida digital, Bill Gates, da Microsoft, e o falecido Steve Jobs, da Apple.
As reações ao poder do Facebook têm se multiplicado nos últimos meses. Diversos jornais e revistas, como o americano The New York Times e a Folha de S.Paulo, anunciaram sua saída da plataforma. A multinacional Unilever, segundo maior anunciante global, mostrou-se disposta a retirar publicidade do Facebook e também do Google caso venha a confirmar que essas empresas “criem divisões sociais, estimulem o ódio ou fracassem na proteção às crianças”.
A ponta de lança das redes sociais junto a crianças e adolescentes são os telefones celulares, já aceitos por muitos pais como um (caro) produto de uso infantil. Nesses casos, a dependência gerada por redes sociais e aplicativos — além do Facebook, o YouTube (com seus vídeos que têm início automaticamente), o Instagram (com a dopamina dos “likes” em forma de corações), o Snapchat (com a produção de selfies que estimulam o compartilhamento e os likes) e o WhatsApp (com trocas de mensagens irrelevantes como “estou no banheiro”), entre outros — associa-se à dependência pelo uso do aparelho, que em casos extremos atinge 20 horas diárias.
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O professor Sergio Amadeu da Silveira, da Universidade Federal do ABC teoriza sobre as questões econômicas e ideológicas que permeiam o tema: “O sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato [pesquisador radicado na França, especialista em temas como trabalho imaterial e capitalismo cognitivo] escreveu que as empresas não vendem produtos, mas os mundos e as imagens que nos envolvem. Para isso, o processo de modulação, a obtenção de informações de cada pessoa, é essencial na concorrência desenfreada imposta pelo neoliberalismo. O que sustenta gigantes como Google e Facebook? São os dados pessoais que armazenaram para vendê-los em amostras. Muitos acham que isso é bom. Eu considero isso um grande perigo, uma vez que há uma inversão dos princípios de convivência em uma sociedade democrática. Nossas vidas são cada vez mais transparentes para as corporações que são cada vez mais opacas para a sociedade. Esse desequilíbrio é extremamente perigoso para a diversidade e até mesmo para que as transações econômicas sejam mais equilibradas”.
“Os operadores disso são os algoritmos que definem quem das nossas amigas, amigos, seguidoras e seguidores poderão ver o nosso post na rede social, qual a ordem dos links que serão apresentados para cada pessoa que faz uma busca no Google, por exemplo”, afirma Silveira. “Os algoritmos [
conjunto de passos para que um programa de computador realize alguma tarefa predeterminada] fazem aquilo que foram programados para fazer. Quem definiu o modelo de bolhas foram as empresas que comandam as plataformas sociais e os sites de busca na internet. Considero evidente que o controle do que vemos e do que devemos ver cria distorções absurdas na realidade e na visão de mundo de todas e todos nós. As democracias nas sociedades informacionais ou em rede exigem a construção de um novo direito, o direito à livre visualização e não ao controle da nossa visão pelos algoritmos.”
O jornalista Alexandre Sayad, coordenador latino-americano e caribenho da Global Alliance for Partnerships on Media and Information Literacy (Aliança global para parcerias em mídia-educação) da Unesco, registra uma importante contradição. “A internet nasceu como ‘contracultura’, uma ótima oportunidade para dar voz a quem não a tem, dar visibilidade aos que nunca tiveram oportunidade de se expressar ou serem enxergados. Até hoje há práticas de ‘civic media’ [
mídia cidadã, termo adotado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA] que são muito relevantes em contextos políticos, econômicos e sociais. Para usar um exemplo anarquista, o Wikileaks é um caso desses.”
Mas, a partir do momento em que o mercado passa a operar fortemente no ciberespaço, Sayad observa que “as empresas repetem as práticas do capitalismo rústico: dominar mercados, formar grandes conglomerados, afunilar opções de consumo, investigar compulsivamente os hábitos do público consumidor. Os algoritmos tendem a nos mostrar o mundo que gostamos de ver e isso interessa sobretudo a quem tem algo a nos ‘vender’, seja um produto ou um conceito”.
*Colaborou: Vinicius Bopprê
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