NOTÍCIA

Edição 247

Os diagnósticos, as causas e os sintomas

É inegável que intervenções médicas podem trazer benefícios, mas estamos lidando mal com a questão das dificuldades de aprendizagem. Leia mais na coluna de Fernando Louzada

Publicado em 21/03/2018

por Redacao

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Crédito: Shutterstock

O ano de 1952 foi marcado por dois fatos que modificaram a história da psicopatologia. Nos Estados Unidos, a Associação Americana de Psiquiatria publicou a primeira versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM). O manual apresentava 106 categorias de transtornos mentais. Simultaneamente, surgiram na França os primeiros relatos do uso bem-sucedido da clorpromazina, antipsicótico utilizado no tratamento de pacientes esquizofrênicos. Estas mudanças ocorreram em um momento em que as escolas psiquiátricas apresentavam divergências que impossibilitavam a realização de estudos multicêntricos. Além disso, se cada corrente psiquiátrica “falava uma língua”, a confiabilidade dos diagnósticos era baixa. Cenário propício para o fortalecimento de um sistema de classificação diagnóstica como o proposto pelo DSM. Este sistema passou a priorizar os sinais e sintomas, em detrimento dos seus significados. Quando uma criança apresenta comportamentos impulsivos, pouco se pergunta a respeito do que a leva a exibir tal comportamento. A eliminação do sintoma passou a ser prioridade.
Michel Foucault, filósofo francês, em seu livro As palavras e as coisas utiliza o conceito de domínio da biologia. Neste domínio, o homem é um ser que tem funções e que busca “encontrar normas médias de ajustamento que lhe permitem exercer suas funções”. Função e norma. Palavras-chave da perspectiva biológica. Nesta perspectiva, a criança que é impulsiva, desatenta, hiperativa, ou seja, que sai da norma, comporta-se desta maneira devido a alterações nas funções do cérebro. Ao associarmos o comportamento a uma alteração funcional no cérebro, cria-se a ilusão de que a causalidade do problema passa a ser conhecida. Pelo contrário, no momento em que os sintomas deixaram de remeter a alguma significação, abriu-se mão da busca de sua causa. Em outras palavras, a suposta objetividade da análise não confere obrigatoriamente a esta abordagem a capacidade de identificação das causas do problema.
A discussão sobre norma e, consequentemente, a respeito dos limites entre a normalidade e a doença não é nova. Em 1943, Georges Canguilhem, filósofo e médico francês, escreveu uma tese de doutorado sobre o tema (O normal e o patológico). Sua obra influenciou diversos pensadores, dentre eles Foucault. A leitura de ambos nos ajuda a entender que identificar na diferença uma categoria patológica está na dependência do contexto histórico social. Os critérios de normalidade são dinâmicos, pois esbarram em concepções de mundo, de valores. Em maio de 2013, foi publicada a quinta versão do DSM (DSM-5), com uma lista de aproximadamente 300 patologias mentais. Sua publicação gerou uma forte rejeição de setores da comunidade acadêmica. Allen Frances, psiquiatra que coordenou a força-tarefa de elaboração da quarta edição, foi um dos principais críticos dessa nova versão. Segundo Frances, a lógica de construção desse manual está dominada pela indústria farmacêutica, com o objetivo de ampliar o universo de doentes e, consequentemente, de consumidores de medicamentos. O psiquiatra americano não está sozinho na empreitada. O Instituto Americano de Saúde Mental vetou a associação do nome da instituição ao DSM-5. Seu diretor utilizou como argumento a fragilidade do manual no plano científico. Outros pesquisadores concordam que com o novo manual ocorrerão alterações nas taxas de prevalência de vários transtornos, mas não necessariamente um aumento generalizado, pois há mudanças que ampliarão a abrangência dos critérios de inclusão, enquanto outras a reduzirão.
As posições contrárias ao DSM-5 acirraram a polarização do debate a respeito da pertinência da abordagem médica relacionada às dificuldades de aprendizagem. Essa polarização gera poucos benefícios aos principais interessados: os estudantes.
Podemos identificar inúmeros ganhos advindos do fortalecimento da perspectiva biológica na compreensão dos transtornos mentais. Por exemplo, atualmente, é difícil imaginar o tratamento de transtornos psiquiátricos como a depressão e a esquizofrenia sem o uso de fármacos. Quando esta perspectiva é transposta para lidarmos com as dificuldades de aprendizagem, surgem problemas. É inegável que intervenções médicas são indispensáveis e trazem benefícios a uma parcela dos alunos, mas estamos lidando mal com a questão. Em uma lógica na qual a exigência de desempenho cognitivo é prioridade, corremos o risco de achar que toda e qualquer dificuldade que traga comprometimento da capacidade competitiva deve ser tratada. Neste contexto, as intervenções médicas, centradas nos sintomas e não nas causas, ganham espaço.
Temos o direito e o dever de pensar em alternativas. Uma escola na qual cada aluno seja capaz de construir sua trajetória em função de suas potencialidades, na qual possamos reconhecer as dificuldades e ajudar os alunos a superá-las sem a necessidade de enquadrá-los em uma determinada categoria nosológica, a perspectiva médica para abordar dificuldades de aprendizagem perde força e, num mundo ideal, talvez deixe de fazer sentido.

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