Edição de setembro de 2002 da Revista Educação: análise das condições de inclusão dos jovens negros
A educação brasileira acumula várias estatísticas positivas nas últimas décadas, em especial aquelas relativas à inclusão de diversos grupos sociais. Mas, se de fato a inclusão vem melhorando – mesmo que ainda longe de chegar ao ideal – ela não tem sido suficiente para diminuir a flagrante desigualdade social brasileira.
Em 2002, no quinto ano de circulação da revista Educação, a desigualdade entre brancos e negros foi tema de extensa matéria, na edição de setembro, sob o título “Brasil negreiro” e estampando os versos de Navio negreiro, de Castro Alves, em paralelo entre o país dos tempos de escravidão (“E existe um povo que a bandeira empresta/P´ra cobrir tanta infâmia e cobardia!”) e sua versão moderna, da exclusão social.
No texto, assinado pelo repórter Alexandre Pavan, destacavam-se os números então mais recentes sobre a desigualdade social:
“De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 2% do corpo discente das universidades brasileiras – públicas ou privadas – é formado por estudantes negros. Segundo estudo baseado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 1999, a taxa de analfabetismo é três vezes maior entre negros. E mais: jovens brancos, aos 25 anos, têm em média 8,4 anos de estudos, quando negros da mesma idade têm a média de 6,1 anos. Pelo IBGE, 5,4% dos brasileiros declaram-se pretos e 39,9%, pardos. A população negra, que inclui pretos e pardos, corresponde a 45,4% no Brasil”.
Em março de 2010, a revista fez um amplo balanço sobre a presença da cultura negra na educação, com foco no currículo escolar
Já em 2014, talvez como consequência de as questões de racismo e identidade terem entrado mais em foco, a soma de autodeclarados negros e pardos chegava a 54% segundo o mesmo IBGE. No entanto, na hora em que se olhava para a participação de negros e pardos entre o 1% mais rico do país, ela ficava circunscrita a 17,4% desse grupo.
Na educação, houve avanço na questão do acesso. Na qualidade, nem tanto. No plano do ensino superior, como lembra Válter Silvério, professor de sociologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e vice-presidente do comitê internacional do volume 9 da História geral da África (Unesco), “dependendo da estatística e do humor”, o acesso de negros e pardos ao ensino superior variava entre 2% e 6% no início dos anos 2000. Hoje, chegou a algo entre 32% e 36%. O avanço, aponta o professor, se deu muito em decorrência de políticas públicas como o Fies e o ProUni, programas de financiamento e de bolsas que colocaram muita gente em universidades privadas.
“Mas sabemos que a qualidade do ensino privado, excetuando-se meia dúzia de instituições tradicionais, não é satisfatória. E é precisamente nessas instituições de qualidade não satisfatória que a grande massa de jovens negros entrou. Será que eles terão formação adequada para entrar em empregos públicos e privados de qualidade?”, questiona Silvério.
Pelo que apontavam os dados do IBGE em 2014, não. É verdade que o salário recebido nem sempre é índice direto da qualificação, como se pode verificar em muitas situações em que indivíduos com igual formação ou capacidade recebem salários diferentes. Mas o resultado efetivo é que a média de renda familiar per capita entre os negros era, então, de R$ 753,69, contra R$ 729,50 dos pardos e R$ 1.334,30 dos brancos, o que perfazia uma média nacional de R$ 1.012,25. Ou seja: os brancos estavam 31,8% acima da média, enquanto os negros ficavam 25,6% abaixo e os pardos, 28%.Também o desemprego era maior entre os pretos (7,5%) e pardos (6,8%) do que entre os brancos (5,1%).
Identidade e evasão
É justamente no momento crítico da adolescência que a desigualdade se acentua no âmbito da educação. Na faixa dos 15 aos 17 anos, que corresponde ao período ideal em que o aluno deve cursar o ensino médio, pouco mais de 55% de pretos e pardos permaneciam na escola em 2014, contra 70,7% dos estudantes brancos (o que já é um índice bastante aquém da meta estabelecida pelo Plano Nacional de Educação para 2024, de ter 85% dos jovens entre 15 e 17 anos cursando a etapa).
Para Silvério, da UFSCar, uma questão central que permitiria a permanência desses alunos na escola – negros, pardos e outros excluídos em geral, como transexuais e transgêneros – está ligada à concepção curricular. “Hoje, existe uma disputa velada, que aparece mais nesse debate do ensino médio, entre dois projetos de educação. Um que enfatiza a cognição e acredita que os indivíduos, independentemente de suas características de gênero ou raciais, se souberem português e matemática vão desenvolver as habilidades necessárias. E outro que aposta numa dimensão cultural e nas diversas clivagens que vemos na sociedade, e que elas devem ser acompanhadas de uma atenção muito específica nos currículos”, resume.
Para o pesquisador, essa visão mais pluralista não tem prevalecido. O número de negros nas escolas e universidades aumentou, mas eles não se reconhecem no currículo escolar. “Na história, na sociologia, na antropologia, o negro ainda aparece como um outro incivilizado, selvagem etc. O governo permitiu vários avanços, mas quando chegou à questão da matriz curricular, a coisa não andou. Vimos o que aconteceu com o chamado ‘kit gay’. Essas discussões definem a qualidade de vida desses indivíduos. Esse é o grande desafio que está sendo colocado hoje”, pontua.
Além de encampar a diversidade no currículo, Silvério vê mais dois pontos como essenciais para que a educação de jovens negros e pardos possa levar-lhes um passo além na escala social: a incorporação, sobretudo na educação técnica, de uma perspectiva mais crítica, que “forme para a democracia”, e a maior exposição dos alunos à escola, em termos de tempo de permanência.
Edital premia 10 projetos
Ações específicas para melhorar os índices de inclusão social e afirmação da identidade das comunidades negras têm sido feitas como forma de mudar o panorama educacional do país. Uma delas é o edital “Gestão Escolar para Equidade – Juventude Negra”, iniciativa que, em sua segunda edição, selecionou dez projetos de ação em escolas públicas de diversos estados brasileiros.
O foco central das ações são atividades de valorização da cultura negra nas mais diversas linguagens, discussões e atividades sobre protagonismo, racismo, mercado de trabalho, equidade, tolerância, entre outros.
O objetivo do edital, segundo os organizadores, “é identificar, reconhecer e acompanhar projetos com foco na gestão escolar que possam contribuir para o desenvolvimento e a implementação de práticas capazes de elevar os resultados educacionais dos jovens negros e negras no ensino médio”.
O programa é uma iniciativa conjunta do Baobá – Fundo para Equidade Racial, Instituto Unibanco e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).