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José Pacheco

Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

Publicado em 09/05/2016

Homeopatia curricular

O debate em torno da definição de um currículo único continua terra de ninguém

Conheci o Júlio nos meus primeiros tempos de Brasil. Nos seus quinze anos, os belos acordes que extraía do seu violão faziam as delícias dos clientes de um barzinho de esquina. Já em tenra idade se anunciava gênio, exímio violonista. Amigos e fãs auguravam-lhe uma carreira promissora. Até que chegou o tempo dos vestibulares…

Há alguns meses, reencontrei-o, “ganhando a vida” numa loja de shopping:

Não gosto deste emprego. Mas o meu pai acha que a vida de músico é condenação à pobreza. E, como eu não consegui concluir o ensino médio…

Por que não conseguiste?

Porque eu nunca tive cabeça para aprender matemática e química…

De pequenino se torce o destino. Quantos projetos de vida ficam encarcerados atrás de grades curriculares? A quantos júlios o currículo único rouba o direito de desenvolver dons, de realização pessoal e social? Se o Júlio estava vocacionado para a música, por que razão teria de aprender a fazer equações de segundo grau, ou decorar fórmulas? A matemática e a química serão mais importantes do que a música?

Frequentemente, no processo de elaboração de uma base curricular, disciplinas consideradas “nobres” são privilegiadas em detrimento das consideradas “menos importantes”. Por exemplo: por que razão na proposta de Base Curricular se dá a designação de “arte” a uma disciplina? Não se deveria considerar, por exemplo, as disciplinas de artes visuais, ou de educação musical, no lugar da disciplina… “artes”?

É sabido que uma base curricular é uma construção histórica, reflexo de diferentes concepções de mundo e de ser humano, de influências políticas e ideologias. Também se apresenta como repositório de pressões corporativas e da indústria do cursinho para vestibular, bem como manobras de associações profissionais, que pugnam por maior carga horária das respectivas disciplinas, ignorando que a inclusão de mais algumas horas-aula não passa de contabilidade burocrática. E acontece o transbordamento curricular, quando se acrescenta educação ambiental (de notar que a educação ambiental não constava de forma explícita no currículo da década de 1970), para a cidadania, para a saúde, para o consumo etc., áreas quase sempre abordadas de modo leviano. Consta que, na Câmara dos Deputados, transitam cerca de 250 projetos de lei com propostas de inclusão de novas matérias no currículo oficial… A BNC está a precisar de um “enxugamento”, que contemple apenas o essencial, um exercício de “homeopatia curricular”. Se a “homeopatia” chegou ao Brasil em 1840 e se já é utilizada na medicina, que também na educação se administrem doses mínimas, para evitar intoxicações.

O debate em torno da definição de um currículo único continua terra de ninguém. Do alto das cátedras ao chão das escolas, dos sindicatos às associações patronais, da padaria ao futebol, todo mundo emite opinião. No auge do “debate”, surgem românticos contrapontos à hegemonia da cartesiana organização em disciplinas, aponta-se a necessidade de práticas interdisciplinares e transdisciplinares, mas ainda não vi referências a práticas indisciplinares…

Alguém ouviu falar de currículo subjetivo? No exercício de um desenvolvimento curricular indisciplinar, como definir um conjunto de saberes essenciais? Para que outras vidas não sejam entortadas e para que o Júlio possa cumprir o seu projeto de vida, o que deverá um músico aprender?

*José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)

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