NOTÍCIA
Faculdades e universidades investem na ampliação do acervo digital e buscam superar desafios relacionados ao modelo de negócios para compra de livros eletrônicos
por Christina Stephano de Queiroz
No célebre conto A biblioteca de Babel, escrito por Jorge Luis Borges nos anos 1940, uma biblioteca é descrita como metáfora do universo e, por meio de suas múltiplas prateleiras, estantes e andares, parece chegar ao infinito. Hoje, na era da informação digital, como seria retratada a biblioteca infinita de Borges? O amplo ambiente da biblioteca inaugurada no ano passado na Universidade Politécnica da Flórida, nos Estados Unidos, talvez indique o caminho: do seu acervo de 135 mil títulos, todos são em formato eletrônico. Não há sequer um livro de papel, mas o local é repleto de poltronas, sofás e outros recursos pensados para fomentar o hábito da leitura. No caso, da leitura digital.
Apesar de essa realidade ainda estar distante das instituições brasileiras, os números locais mostram um avanço significativo: somente o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) teve sua coleção expandida dos iniciais 1,8 mil títulos, em 2000, para mais de 36 mil neste ano – sem contar as 493 bases de dados entre textos completos, de referências e resumos, teses e dissertações, patentes e outros. Em relação ao uso, o crescimento também foi expressivo: desde seu lançamento há 15 anos, o portal registrou uma expansão de 3.288%, totalizando mais de 100 milhões de acessos em 2014. Assim, em um movimento ainda incipiente, mas que promete ganhar força nos próximos anos, as instituições de ensino superior do Brasil se preparam para ampliar seus acervos digitais e superar os desafios relacionados aos atuais modelos de negócios disponíveis à oferta de livros eletrônicos.
“É um mundo novo e ainda não sabemos responder questões simples, do tipo: é melhor oferecer aos alunos e-readers ou tablets para fomentar a leitura digital? Qual o modelo de licenciamento mais adequado às bibliotecas universitárias?”, indaga Leila Rabello de Oliveira, chefe do centro gestor da informação do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. Desde 2008, a instituição possui uma hemeroteca digital, que reúne artigos de periódicos e jornais, bem como os trabalhos acadêmicos de professores e alunos. O acervo inclui ainda cerca de dois mil livros de domínio público, ou seja, de autores que morreram há mais de 70 anos – entre eles de escritores clássicos da literatura brasileira, como Machado de Assis ou José de Alencar – ou de sites que permitem o download gratuito das obras. De acordo com Leila, em 2014 as consultas on-line de material, incluindo periódicos e bases digitais, atingiram 181 mil acessos (contra os cerca de 100 mil registrados em 2013), enquanto a circulação de material impresso foi de 330 mil volumes. “É uma diferença pequena e os acessos digitais tendem a aumentar nos próximos anos”, projeta Leila.
Apesar de haver uma percepção de interesse crescente pelo meio digital, restam ainda desafios para que seu alcance seja maior. O primeiro deles está relacionado aos modelos de licenciamento hoje disponíveis. As bibliotecas compram licenças de uso das bases de dados que costumam valer por um ano, não se tornando proprietárias dos livros. “Com isso, no ano seguinte, pode acontecer de as licenças não serem renovadas ou os fornecedores retirarem determinados livros do catálogo”, comenta a gestora do Belas Artes. Outro problema envolve a baixa quantidade de obras disponíveis em português, o que faz com que 80% do acervo digital da instituição seja em idiomas estrangeiros, principalmente em inglês e espanhol. É uma questão problemática em um país que precisou criar um mecanismo adicional para conseguir conceder bolsas a alunos que desejam estudar no exterior, estimulando que primeiro aprendessem uma segunda língua.
Como vantagens, Leila acredita que a expansão do acervo digital pode ajudar os alunos a diversificarem seu repertório bibliográfico, já que os processos de busca de títulos são facilitados. A biblioteca da instituição conta com 150 mil títulos, sendo que a bibliografia básica de um curso de graduação chega a, no máximo, 300 livros, o que representa um número baixo se comparado às possibilidades de leitura disponíveis. Além disso, conforme pesquisa realizada com alunos da rede privada no Brasil que responderam ao Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) em 2012, 35,4% disseram ter lido um ou dois livros além da bibliografia do curso de graduação, sendo que somente 12,2% afirmaram ter lido mais do que oito adicionais. “Ao facilitar o acesso ao acervo, motivamos o estudante a conhecer novas obras e a se tornar de fato um pesquisador”, acredita Leila.
Em um caminho similar ao da Belas Artes, a Fundação Getulio Vargas integrou os acervos físicos das unidades no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília em um sistema único, além de contar com um acervo digital – que possui 12 mil e-books e 320 bases de dados, sendo 121 delas abertas ao público, incluindo coleções de leis, dicionários, estatísticas e índices econômicos. O público também pode ter acesso ao repositório digital da instituição, que reúne cerca de 10 mil itens, entre teses, dissertações e artigos de áreas como administração, economia, direito, ciências sociais e história. “Com a integração das bibliotecas, há dois anos, passamos a ter uma política única para compra e pesquisa de livros, facilitando a vida de alunos e docentes”, destaca Marieta de Moraes Ferreira, diretora do sistema de bibliotecas da FGV. A atenção ao acervo digital motivou a instituição a investir em um novo espaço para a biblioteca do Rio de Janeiro que passará a funcionar, a partir de 2016, em um edifício projetado por Oscar Niemeyer, com uma área desenhada especialmente para a pesquisa de material digital. “Queremos criar espaços onde as pessoas possam trabalhar mais comodamente com seus dispositivos móveis, incluindo sofás para leitura e visualização de vídeos”, adianta. Apesar do investimento no modelo digital, a diretora aposta que esse acervo conviverá com os livros físicos, já que muita gente ainda prefere realizar suas leituras no modo tradicional.
Licenciamento de conteúdo
Em sintonia com Leila, da Belas Artes, Marieta também reclama do modelo de aquisição de livros eletrônicos, baseado em assinaturas anuais que podem custar cerca de US$ 30 mil. “É um valor elevado se considerarmos que a biblioteca não será dona dos títulos e pode perder o acesso a eles no ano seguinte, tanto por razões financeiras como porque o fornecedor tirou determinadas obras da base”, avalia.
Lucia Marengo, coordenadora da biblioteca universitária da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), vê o mercado brasileiro ainda com limitações, pois não oferece produtos em quantidade, qualidade e facilidades à aquisição. “São poucas as edições brasileiras de bibliografia básica em formato digital, e quando existem e estão disponíveis, são onerosas, com limites de acesso e de usuário”, reclama. Apesar disso, defende a expansão do acervo digital na universidade como caminho para criar cultura de uso entre a comunidade acadêmica. Com 200 mil livros na biblioteca física, os e-books da Udesc totalizam 5 mil obras.
A cultura do livro eletrônico na universidade ainda é inexpressiva, no que se refere ao uso do docente e do discente. “Nossos números têm aumentado lentamente, mas o incentivo do professor, que é um fator propulsor, ainda não se fez presente”, lamenta Lucia. Essa realidade é mais percebida na graduação, enquanto na pós-graduação a situação é melhor, principalmente devido ao portal da Capes, que ajuda a propagar a cultura do acesso digital. Já em relação à resolução de 2012 da Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior (Conaes) – que incluiu a permissão para as instituições de ensino superior oferecerem parte da bibliografia básica em acervo digital – Lucia opina que ela foi ao encontro de um movimento que já existia no mercado. “O MEC percebeu que as bibliotecas caminhavam em direção ao digital e tentou adaptar suas regras à tendência”, diz.
Outras instituições que também pretendem investir no acervo digital como maneira de criar cultura de uso entre alunos e docentes são a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e a Escola de Negócios do Sebrae em São Paulo. Juliana Gazzotti Schneider, gerente de cultura empreendedora do Sebrae-SP e responsável pela Escola de Negócios, conta que a biblioteca possui seis bases de dados digitais. “A variedade atende à demanda da instituição, no entanto planejamos realizar oficinas entre os alunos para ampliar os acessos digitais, que em 2014 totalizaram 1,9 mil”, destaca a gerente.
No caso da ESPM, Débora Bonfim Aquarone, bibliotecária sênior, explica que os acessos aos e-books ainda crescem de forma lenta. “No ano passado, fizemos 70 mil empréstimos e renovações de livros em papel e o acesso aos volumes digitais representou 10% desse valor”, contabiliza. No total, há 60 mil livros impressos na biblioteca e os e-books envolvem 7 mil títulos, sendo oferecidos por meio de duas plataformas. “Uma dessas plataformas atende somente 10% da bibliografia dos nossos cursos, o que é um percentual baixo”, detalha. Nesse sentido, Ismael Rocha, diretor acadêmico da graduação em São Paulo, conta que a ESPM adquire livros de ao menos 400 editoras, sendo que poucos itens estão disponíveis em formato digital. “Há escolas que trabalham com uma bibliografia menor para oferecer grande parte dela no formato digital. A ESPM adota uma bibliografia ampla e não pode restringir-se somente aos fornecedores que atuam com livros digitais”, justifica.
Cultura de uso
Apesar de também apostar na expansão do digital, a Universidade Presbiteriana Mackenzie estima que esse modelo ainda conviverá durante anos com os livros físicos, tanto devido à preferência de algumas pessoas, quanto por questões de regulamentação dos órgãos oficiais – que permitem que somente parte da bibliografia básica seja ofertada pela via digital.
Rosely Bianconcini Mulin, coordenadora geral da biblioteca, explica que a instituição assina bases de dados eletrônicas desde 1998, mas somente em 2012 adquiriu sua primeira coleção de livros eletrônicos, totalizando hoje, com a compra de novas plataformas, aproximadamente 9 mil títulos. “A grande vantagem desse material é que pode ser acessado em qualquer lugar e horário pelos alunos, diferentemente do acervo físico, que está condicionado ao funcionamento da biblioteca”, comenta.
Inep altera critérios para avaliação de bibliotecas |
Recentemente, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) publicou uma nota técnica informando alterações no Instrumento de Avaliação de Cursos de Graduação nos graus de tecnólogo, de licenciatura e de bacharelado para as modalidades presencial e a distância. O indicador “3.6. Bibliografia básica” foi um dos itens modificados. Agora, em vez de informar a média de exemplares para cada unidade curricular, os conceitos 2,3,4 e 5 especificam o mínimo de exemplares para cada título adotado pelas unidades curriculares, o que demandará das IES a aquisição de um número maior de obras para obter conceitos satisfatórios na avaliação. O instrumento revisado está sendo aplicado desde 15 de março de 2015. Todos os processos com formulários preenchidos anteriormente a esta data terão avaliação in loco com aplicação do instrumento anterior. |
Acesso digital, mas com hábitos analógicos |
Com um salto de 285 mil acessos em 2012 para mais de um milhão em 2014, a biblioteca virtual da Kroton é utilizada por alunos da graduação e da pós-graduação, porém os estudantes matriculados em cursos de ensino a distância representam os usuários mais recorrentes. A diretora adjunta de projetos especiais do grupo, Débora Leite, percebe ainda que os alunos mais jovens possuem mais facilidade com esse modelo, enquanto aqueles com mais de 35 anos, que já estão no mercado de trabalho, normalmente precisam de mais apoio dos bibliotecários ao seu manuseio. “À medida que as editoras e fornecedores de conteúdo digital ofertarem maior quantidade de bibliografias, a tendência é que nosso acervo físico diminua, dando espaço para computadores e tablets destinados à pesquisa de conteúdo”, estima a diretora. Como tendência, o vice-presidente acadêmico da Kroton, Rui Fava, acredita que os e-books se tornarão cada vez mais interativos, com serviços adicionais complementares, como imagens, vídeos e games. “Neste ano, queremos iniciar nosso acervo de e-books com esses aplicativos, especialmente nas áreas de saúde, engenharia e informática”, adianta. Outra característica observada por Janio dos Santos Mesquita, gestor de biblioteca do Centro Universitário Ítalo Brasileiro, é que, apesar da habilidade com tecnologias digitais, os jovens ainda gostam de fazer marcações nas leituras e imprimi-las depois, para assim facilitar o estudo. Por isso, uma das plataformas adquiridas pela instituição, a Biblioteca Virtual Universitária 3.0, da Pearson, permite ao aluno usar recursos de marcação nas páginas. Com 9,2 mil acessos em 2014, essa assinatura custa cerca de R$ 10 mil por ano. Além dela, a instituição assina os portais de bases científicas Fonte Acadêmica e World Politics Review – que oferecem artigos de periódicos e 293 títulos de e-books por um valor anual de R$ 15,9 mil. “Em 2014, tivemos 10 mil acessos em nossa base virtual de e-books”, contabiliza Janio. Nos seus cálculos, o uso dos acervos digitais tende a dobrar neste ano, principalmente devido à ampliação da oferta de disciplinas em ambientes virtuais. |