NOTÍCIA
A linguagem ajuda no raciocínio lógico e na criatividade, além de facilitar o aprendizado de disciplinas como o português e a matemática
Ao aprender a codificar, os alunos saem da posição de consumidores para produtores de ferramentas digitais |
Para crianças que só conheceram um mundo onde computadores, celulares e outros eletrônicos estão espalhados por toda parte, usar a tecnologia é algo que aprendem tão facilmente quanto usar roupas ou talheres. Elas manipulam esses objetos com desenvoltura, pois eles fazem parte de um aprendizado da vida em sociedade, da cultura onde estão imersas. Sem precisar dispensar esforços para tornar as crianças exímias usuárias da tecnologia, as escolas vinham até recentemente se preocupando em mostrar como usá-la de forma produtiva e com visão crítica. Cada vez mais instituições, no entanto, passaram a enveredar por um caminho diferente e a integrar em seus currículos o ensino de alguma forma de programação. É um tipo de aprendizado que permite que elas sejam não apenas consumidoras de tecnologia, mas também produtoras. Os defensores do ensino de programação, que têm aumentado em escala global, argumentam que o aprendizado dessa linguagem ajuda na autonomia na hora de resolver problemas, incentiva o trabalho colaborativo e aumenta a capacidade de pensar de forma sistematizada e criativa.
Ensino contextualizado
Para o professor e pesquisador no Núcleo de Informática Aplicada à Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), João Vilhete d’Abreu, programar é uma necessidade crescente na sociedade. Em sua opinião, como um local de promoção de aprendizados formais, a escola não pode se furtar a incluir a programação em seu currículo. “É um aprendizado científico. Não podemos fechar os olhos para o nosso entorno, para as imposições da atualidade”, afirma.
O pesquisador alerta, porém, que mais do que ensinar a programar, a escola deve promover esse tipo de conhecimento de forma contextualizada. “A criança tem de entender que ela pode controlar um equipamento, dar ordens a uma máquina. Programar é uma forma de transferir a sua compreensão para a máquina. O essencial está na pessoa, não na máquina; não há mágicas nem milagres. Essa ponderação tira um possível caráter robotizado do ensino de programação”, explica.
Outra preocupação de educadores é que a programação seja oferecida de forma ampla, para alunos das redes públicas assim como das particulares, para não criar uma nova classe de excluídos digitais. “Vejo que a programação pode ser uma grande oportunidade para reduzir a exclusão existente”, afirma Flavia Goulart, gerente de inovação da Fundação Lemann, que lançou em setembro o Programaê!, um movimento pela democratização do ensino de programação em todo o Brasil. Apesar do pouco tempo de existência, as plataformas on-line gratuitas disponibilizadas em português no portal do movimento – como o Scratch, a Khan Academy, Codecademy e Code.org – já possuem 500 mil usuários.
Segundo Flavia, a programação tem o potencial de ajudar no aprendizado das disciplinas básicas da escola, como português (afinal, é uma linguagem) e matemática. “No Reino Unido, o ensino de programação se tornou obrigatório. Não sei se esse é o caminho, mas deve haver uma discussão profunda na sociedade”, diz.
Autonomia e colaboração
Iniciada este ano, a Escola de Hackers, uma parceria entre a prefeitura de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, e a Universidade de Passo Fundo, está ensinando 300 crianças de escolas municipais, com idades entre 10 e 12 anos, a programar. É uma atividade extra, oferecida por 21 unidades no município a alguns de seus alunos. Apesar do pouco tempo de projeto, os primeiros desdobramentos positivos já são visíveis. “Alguns diretores nos pediram para indicar os melhores alunos, para que eles possam replicar as aulas com outras crianças, que não foram contempladas”, comemora Adriano Canabarro Teixeira, professor da UPF que coordena a iniciativa.
“Os professores de matemática relatam que os alunos que participam das atividades de programação têm demonstrado mais autonomia na hora de resolver problemas. E há uma forte tendência ao trabalho colaborativo; eles passaram a se ajudar mais uns aos outros”, relata o professor, com base em experiências empíricas – ele ressalta que estas constatações não têm rigor científico, pois as pesquisas que a universidade está fazendo ainda não ficaram prontas. “Estamos fazendo estudos em nível de mestrado e doutorado sobre o impacto dessas oficinas no desempenho escolar das crianças”, explica.
Para Teixeira, tais impressões preliminares, aliadas à experiência internacional com programação, indicam que este pode ser um caminho produtivo para aproveitar a tecnologia nas escolas. Em vez de usar a informática como um meio em outras disciplinas, ou como uma ferramenta para um estudo interdisciplinar e de projetos, os professores a enxergam como um fim: usar os computadores para ensinar computação. “Já faz 25 anos que a informática começou a entrar na escola pública, mas continuamos com baixos índices de qualidade educacional. Em todo esse tempo, o simples uso da informática não foi capaz de promover um salto significativo de qualidade”, afirma o professor ao defender o ensino universal da programação nas escolas.
Claro que nem todos os alunos se tornarão programadores profissionais, mas os resultados em outras áreas do conhecimento viriam de forma indireta, com o aumento da capacidade de pensar de forma sistematizada e da criatividade, por exemplo, dizem os defensores da programação. “A tecnologia acaba desenvolvendo outras habilidades e competências significativas”, diz Teixeira, que também encabeça outras iniciativas ligadas ao ensino de programação, como as Olimpíadas de Programação de Passo Fundo.
Como fazer
Há diversas formas de ensinar computação, mas é consenso entre os educadores da área que o foco não deve ser ensinar uma linguagem específica, como Java, C++, Visual Basic, etc. “A maioria dos projetos enfatiza o desenvolvimento de raciocínio lógico, mas o Scalable Game Design Brasil (pesquisa sobre ensino-aprendizagem de computação), por exemplo, parte do fato de que programação é uma nova forma de expressão. Essa nova forma requer que as pessoas tenham certas capacidades”, afirma Clarisse Sieckenius de Souza, professora de informática da PUC Rio de Janeiro, coordenadora do Scalabe Brasil, que cita entre as capacidades necessárias a de lidar bem com representações.
Alguns especialistas chegam a defender que programação é a linguagem mais importante para ensinar às crianças. O irlandês J. Paul Gibson, um dos maiores incentivadores do ensino de programação para crianças no mundo, argumenta que em vez de se dedicar a ensinar idiomas estrangeiros ou mesmo música, os educadores poderiam preparar as crianças para criar códigos computacionais desde os 4 anos, ensinando os fundamentos da lógica de programação – estabelecer sequências, condições, encontrar falhas. Com isso, mais tarde seria fácil que elas se tornassem fluentes no código que preferissem. Esse aprendizado também garantiria uma comunicação sem fronteiras, pois a computação deve se tornar a grande linguagem universal nos 50 próximos anos, estima o pesquisador.
Independentemente das previsões sobre o futuro da comunicação global, ensinar a programar dá mais poder no presente, garante a professora da PUC Rio. Segundo Clarisse, existem hoje três grupos de pessoas: as que não têm (ou não querem ter) acesso às novas tecnologias, as que usam a tecnologia disponível, e aquelas que desenvolvem as tecnologias usadas. “Não é difícil ver que o último grupo é o que tem mais poder dos três”, conclui. “Usar a tecnologia desenvolvida por outro é ocupar um espaço que me é concedido para me expressar. Desenvolver a minha própria tecnologia é imaginar e criar esse espaço – obviamente na proporção da minha competência técnica.”
Novidade antiga
Apesar de a inclusão da programação por parte das escolas ser um fenômeno que vem ganhando força recentemente, algumas instituições adotam aulas do gênero há décadas. Portanto, aprender a programar nos colégios não pode ser considerado novidade. “Faz 20 anos que adotamos pela primeira vez o ensino de programação. Na época, era a linguagem LOGO. Desde 2007 fizemos a opção pelo Scratch, que é uma evolução, com uma solução mais visual”, relata Muriel Alves, coordenadora do Núcleo de Tecnologia do Colégio Santa Maria, em São Paulo. Ambas as linguagens foram desenvolvidas pelo Massachusetts
Institute of Technology (MIT) tendo crianças como público-alvo; com elas, as crianças não precisam escrever códigos, e sim, montar blocos de comandos – como se fossem legos. De acordo com o objetivo, é preciso usar uma lógica e sequência determinadas. “Nosso foco de trabalho está no 4º ano, quando os alunos têm um projeto mais elaborado e longo. Os temas variam a cada ano, pode ser sobre cidadania ou o sistema solar, por exemplo. Mas desde o 2º ano eles já têm algumas aulas”, explica Muriel. Para os que se interessam pelo tema, mais para a frente, a partir do 7º ano, o colégio oferece opções extracurriculares, como a oficina de games.
Nas escolas do grupo Objetivo, a programação foi incluída ainda antes, a partir do ano de 1986. E hoje, de alguma forma, está presente em todas as séries desde o ensino infantil. “Incialmente essa aprendizagem tecnológica se dá sobre os mecanismos simples da vida, como ter noções do funcionamento de roldanas. Eles observam, percebem como funciona, depois montam algo semelhante com sucata”, exemplifica Cecilia Migliaccio, coordenadora geral do ensino fundamental 2. Foi Cecilia a responsável por trazer as aulas de tecnologia para o Objetivo ainda nos anos 80. Segundo ela, existem dois movimentos que precisam ser contemplados ao se ensinar sobre tecnologias: o primeiro é saber usar, o segundo é entender como se dá a “inteligência do computador”. “Os alunos precisam saber também como ensinar uma máquina, um computador”, diz.
As aulas de programação propriamente dita começam com o 6º ano. No currículo padrão, as crianças aprendem LOGO, Scracth, lógica de programação, Pythton, Visual Basic, entre outros. “Mas o foco é ensinar a ter planejamento, criatividade, dividir problemas em partes menores, organizar estratégias”, explica Esmeraldo Caniloi, coordenador da disciplina de informática do Objetivo. “No 9º ano eles pesquisam e depois desenvolvem jogos educacionais. E os melhores jogos são usados de verdade por professores da rede com os alunos do fundamental 1”, cita.
Potencial transformador
Embora as primeiras experiências sejam antigas, a tendência atual de ampliação da oferta de aulas de programação nas escolas vem em grande parte impulsionada pelo desejo dos próprios estudantes. Em São Paulo e no Rio de Janeiro há até mesmo escolas só de programação, como atividade extra – assim como há escolas de idiomas ou esportes. Entre os gestores de escolas regulares que incluíram formas de ensinar a programar, não restam dúvidas de que o assunto desperta grande interesse, sobretudo dos adolescentes.
Mercedes Ferreira, diretora do ensino médio do paulistano Colégio Ítaca, conta que foram os estudantes que vieram a ela e pediram para ter aulas de programação. “Temos um curso modular chamado Contemporâneas, que discute temas da vida contemporânea. No ano passado, os alunos tiveram um módulo que foi uma reflexão sobre as tecnologias e a vida hoje. Eles ficaram tão encantados que vieram me pedir um curso prático”, relata. Atendendo aos pedidos, o curso foi oferecido para o 2º ano dentro da grade horária e, para o 3º, como aulas extras no contraturno.
Como na maioria das vezes se trata de um novo conteúdo, as aulas de programação trazem um grande potencial experimental, capaz de transformar a configuração tradicional de aulas. No Ítaca, a aula de programação não tem uma sala certa, mudando de espaço a cada semana: na biblioteca, no pátio, em algum laboratório.
Na escola Bakhita, também em São Paulo, as oficinas de programação, hardware e robótica são oferecidas a alunos e também aos pais. A intenção da escola é oferecê-las à comunidade no próximo ano. Atualmente, nessas oficinas os alunos de várias idades estudam lado a lado – e frequentemente acontece de o mais novo ajudar o mais velho. “A vida em sociedade não é compactada em faixas etárias. A tecnologia empodera os alunos e obriga a escola a repensar suas dinâmicas”, afirma Rafael Martins, coordenador de TI e projetos na Bakhita.
Outra lógica escolar tradicional que a programação põe em xeque é a desvalorização do erro. “Normalmente a escola pune o erro. Com a computação, eles aprendem que o erro não é ruim, e sim o caminho para o acerto”, diz Sônia Sá, coordenadora de tecnologia do colégio internacional Emece, de São Paulo. “Programar traz a disciplina no pensamento. E é preciso sempre analisar o que foi feito, encontrar e corrigir os erros”, explica. Como consequência, as crianças conseguem analisar seus erros também em outras áreas: quando um projeto coletivo não dá certo, elas se mostram capazes de apontar, por exemplo, que não souberam ouvir o colega, relata Sônia.