Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 15/10/2013
Nesse Dia dos Professores, perguntamos a diferentes pessoas quem foram os educadores que marcaram a vida delas. Veja abaixo o depoimento do educador e colunista de Educação, José Pacheco
Quando não está dormindo ou reclamando alimento, o meu neto faz companhia ao avô contador de histórias. À semelhança das cartinhas que escrevi à Alice, conto ao Marcos histórias da escola que tivemos, dando voz a vozes anônimas. Contar histórias a crianças de tenra idade tem vantagens sobre contá-las a adultos. O meu neto é um ouvinte atento. E não faz comentários judiciosos.
Vendo o Marco gatinhando, dir-se-ia que parece alheio, desinteressado do enredo da história. Mas não é bem assim. Se eu paro de ler, ele pára de cirandar. Se eu retomo o fio da narrativa, ele retoma o seu peregrinar pelo chão da sala.
Voltemos, pois, às histórias, através das palavras de professores, que falam do tempo em que tiveram ofício de aluno, e das escolas e dos professores que puseram marcas nas suas vidas. A primeira das histórias demonstra uma verdade nem sempre evidente: há professores que não usam a pedagogia como mera ciência ou arte, mas ajudam outros aprendizes a aprender a arte de viver.
Era uma vez, um professor contou-me. No meu percurso escolar, houve três pessoas que recordo com ternura. O primeiro foi um professor padre, que entrou na sala e perguntou: O que quereis aprender?
Essa foi a pergunta fundadora de toda a sua pedagogia: O que quereis aprender? E, porque era homem de questionar em tempo de Ditadura, de padre e professor passou a “clandestino”. Esta era para mim uma palavra comum e eu mesmo viria a usar o adjetivo. Vi o “clandestino”, pela derradeira vez, no fim da primeira aula da manhã de um certo dia em que o diretor da escola o invectivou, violentamente: O senhor não é um padre! O senhor é um jacobino! Vá ter comigo ao gabinete!
Já não deu a segunda aula. Nunca mais voltou à escola. E eu, que desconhecia o significado da palavra jacobino, logo fui ao dicionário. A última herança que esse padre-professor me deixou foi a inquietação que me conduziu ao primeiro passo de uma aprendizagem que também lhe fiquei a dever. De palavra em palavra, de definição em definição, de jacobino passei a revolucionário, de revolucionário a democrata. A curiosidade não me deu tréguas, arrastou-me a muitos serões na Biblioteca Pública.
Também tive um professor-poeta (todos o são, mas este publicava poesia). Acendeu trilhos poéticos que me levaram muito para lá dos versos que convencem os adolescentes de que são poetas. Foi o primeiro professor a mostrar-me o que não cabe nas palavras, a guiar-me pelas palavras que estão para lá das palavras e das ideias que as palavras ocultam. Provocou deslumbramentos perante Caeiro e solenidade perante os primeiros versos da Sophya. Desocultou poetas malditos e resgatou um Camões que andava naufragado em fastidiosas dissecações de decassílabos.
A mais importante das aparições aconteceria já eu fizera dezoito anos. Apaixonei-me pela professora de Francês, logo à primeira (amor platónico, como é bom de ver!).
Era uma mulher fantástica, que se envolvia no que ensinava. Interrogava as nossas vidas na língua de Voltaire e de Vian. As suas perguntas, feitas em catadupa, levavam-nos a novas descobertas e à descoberta de nós. Só muito mais tarde consegui entender o que aconteceu. No breve tempo de convívio com tão gostosa criatura – que a noção de tempo não é idêntica na amiba e no elefante – a professora anediava-me a alma. As suas aulas – que eram mais uma espécie de liturgia – produziam em mim um efeito mágico, e eu para ali ficava a contemplá-la, automaticamente absorvendo tudo o que ela dizia, antropofagicamente exaurindo tudo que ela era. Numa alquimia dos sentidos, de que só ela conhecia os segredos, mais do que a amá-la, levou-me a amar a cultura francesa: Camus, Yourcenar, Eluard, Piaf ..
No último dia desse ano letivo, aconteceu algo inesperado. No fim da aula, a professora de francês juntou ao sacramental”podem sair” um apontar de dedo na minha direção: “Precisamos conversar!”
Fiquei atrapalhadíssimo. E disse, cá para mim: O que foi que eu fiz? Ter-me-ei deixado trair pelo olhar?
Saíram todos. A professora retirou da sua saca de ombro um disco e um livro. E disse: “Fui a Paris, e lembrei-me de te trazer música de Jacques Brell. Sei que vai gostar. É para não te esqueceres de que me lembrei de ti”.
A professora a tratar-me na segunda pessoa do singular! Coisa nunca vista! Eu fiquei preso ao chão, uma mão colada ao disco, outra no livro. Mudo por fora, gritando por dentro. E, antes que eu conseguisse resolver o conflito, a professora saiu da sala.
Nunca mais voltaria a vê-la. Para ser totalmente sincero, devo confessar que, de cada vez que ouço o “Ne me quitte pas” do Brell, sinto a súplica do poeta-cantor como se minha fosse.
É bem verdade que a escola que me coube em sorte se assemelhou ao vaguear num deserto. Mas, como todo o deserto que se preze é pontuado pelo mimo dos oásis, na escola também nutri afetos e aprendi a vida com um padre, um poeta e uma professora de francês.
*José Pacheco – educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)