NOTÍCIA
Professores que assinam livros didáticos contam como esse é um mercado em expansão e os desafios de transferir os conhecimentos adquiridos em sala de aula para o papel
Publicado em 04/10/2013
Em tempos de livros digitais, o trabalho dos professores que preparam material didático se mostra um campo em expansão. Corriqueiras no trabalho diário, as obras didáticas são um campo profissional do qual muitos não se dão conta. A elaboração de livros por professores que atuam em sala de aula tem grandes vantagens – o conhecimento empírico do que funciona com os alunos e a possibilidade de aprimorar as próximas edições de uma obra a partir de seus resultados no dia a dia. Além disso, atuam como um “oxigenador” do trabalho em sala de aula.
“Foi um processo muito gratificante entender como um livro é construído – agora, no fim da empreitada, sinto que cresci muito profissionalmente”, acredita o professor paulistano Alexandre Lopes Lins, colaborador do Projeto Lume, da Editora Oxford University Press, que recrutou 250 professores dos níveis fundamental e médio para a elaboração de uma coleção de didáticos. Lins participou da concepção de livros de geografia dos ensinos fundamental e médio. Mais conhecida no país por publicações voltadas ao ensino de inglês, a editora investiu três anos de trabalho na coleção, que deve chegar às escolas em 2014. Além do conteúdo impresso, há recursos em vídeo e games, com simulação em três dimensões. “O maior desafio foi apresentar os conteúdos de maneira contextualizada, combinando geografia a questões artísticas e culturais”, relata Lins.
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Já Marco Roberto Barcheti Urrea encontrou na autoria a possibilidade de escrever o seu livro “dos sonhos”. “Pude fazer um trabalho focado nas habilidades de escrita, leitura e oralidade, a partir de diferentes gêneros textuais”, explica o professor de língua portuguesa, que também participou do Lume.
Com 14 anos de experiência em sala de aula, ele utilizou textos literários, acadêmicos e jornalísticos, em variados formatos no material que ajudou a construir.
Isso porque, segundo ele, a prática em sala de aula o fez perceber que faz muita diferença partir de textos completos para despertar o interesse dos estudantes – primeiro, pelo assunto em questão; depois, pelos argumentos apresentados; e, por fim, pelos elementos gramaticais utilizados. Assim, em vez de partir dos fragmentos rumo ao todo (como ainda fazem muitos livros de português), Urrea parte do todo rumo à desconstrução. No caso dele, o trabalho autoral é um meio de realizar a educação em que acredita.
Sejamos práticos
Mesmo com uma pós-graduação em jornalismo científico, a professora Daniela Ludviger Ingui, que dá aulas de ciências no Ensino Fundamental II, não sabia que poderia elaborar um livro didático. Graduada em biologia, acreditava que autores da área eram necessariamente profissionais de letras ou comunicação.
“A maioria dos professores não imagina que pode escrever – e os que imaginam não sabem como proceder”, diz. E ela tinha muitas ideias para contribuir com mudanças que considerava necessárias para tornar a disciplina mais atraente e interessante. “Em geral, os livros didáticos de ciências são muito teóricos e conteudistas”, afirma. Por isso, ela apostou, também na coleção da Editora Oxford, em experimentos para despertar o pensamento científico aliados à ciência historicamente contextualizada. “O aluno pode ser estimulado a trabalhar de acordo com métodos válidos. Menos decoreba e mais contexto aproximam os conteúdos da vida”, reflete a autora.
Professor de matemática há mais de dez anos, o baiano Joamir Souza também usou a oportunidade como autor das coleções Vontade de saber matemática e novo olhar: matemática, ambas publicadas pela FTD, para explorar competências pouco abordadas em obras da disciplina, como leitura, contextualização e mesmo tecnologia. No ano de lançamento, 2011, Vontade de Saber Matemática figurou entre os dez finalistas do prêmio Jabuti.
No livro, os problemas matemáticos são apresentados de modo que o aluno seja instigado a decodificar os enunciados para obter as informações de que precisa e, só então, realizar os cálculos necessários. “É uma abordagem congruente com o que se cobra nas provas do Enem”, afirma o professor. “Na matemática interpretar textos é tão importante quanto fazer contas”, reflete.
O professor rejeita obras de matemática pura, “aplicada em si mesma”. Em suas coleções, trata de elementos matemáticos muito cotidianos na atualidade, como aqueles números que vêm sobre códigos de barra, por exemplo. “Só assim o aprendizado ganha significado”, insiste. Sua obra incentiva também o uso de softwares livres (gratuitos), como planilhas eletrônicas, que combinam cálculos com situações da vida real – sejam as contas domésticas do mês ou a vaquinha da turma para a viagem de fim de ano.
Método próprio
Já a professora de física Glorinha Martini, do colégio Móbile, em São Paulo, pode-se dizer autora de um método próprio. Há 30 anos em sala de aula, ela foi incentivada por um aluno, cuja mãe é uma editora de livros, a publicar seu método de ensino. Glorinha já tinha trabalhado como revisora técnica de obras do tipo, mas, curiosamente, não havia cogitado ser autora. O resultado foi a coleção Conexões com a Física, da Editora Moderna, com três volumes destinados ao ensino médio.
A escola em que trabalha, onde os adolescentes têm liberdade para não entrar em sala de aula, decidiu adotar a coleção. “Uma aluna disse que o livro é tão bom que concorre comigo”, brinca. Acessível e envolvente, o estudo poderia ocorrer em casa mesmo, como um hobby. Mas a verdade é que as aulas de Glorinha estão sempre cheias, porque são tão interessantes quanto facultativas.
Os capítulos de seus livros sempre começam com uma pergunta divertida: “Um fio elétrico pode se tornar um ímã?”, “Pilhas usadas voltam a funcionar se colocadas na geladeira?”, “Existe mesmo gravidade zero?”. Assim, a professora/autora consegue fazer da curiosidade um detonador de motivação.
“Os alunos adoram voltar para casa sabendo algo cotidiano como a diferença entre motores de carro 1.0 e 1.6”, ilustra. Para Glorinha, as dúvidas que já fazem parte do imaginário dos adolescentes podem muito bem ser respondidas em sala de aula. “Assim, os estudantes se tornam consultores de suas famílias para assuntos científicos.”
Rotina puxada
Todos os professores entrevistados para a reportagem tiveram de conciliar o trabalho autoral com a rotina habitual em sala de aula. “Lidar com essa carga de trabalho é realmente terrível”, admite a professora Glorinha. “Em tese, o ideal seria tirar uma licença”, diz. Na experiência dela, foram três anos sem férias ou fins de semana.
O trabalho em parceria ou em equipe é uma opção frequente na elaboração de livros didáticos. “É um trabalho gratificante, mas muito árduo”, afirma Glorinha. Trabalhar com outros profissionais é uma forma de compartilhar incumbências e aprimorar os resultados por meio de revisões alternadas e debates.
novas atribuições
“O professor está acostumado a trabalhar com prazos – planejamentos de aula, correções de provas e trabalhos, tudo isso faz parte da rotina escolar”, atenua Daniela, professora de ciências. Ainda assim, o acúmulo de atribuições pode ser exaustivo. No primeiro ano de trabalho, ela dava aulas pela manhã e se dedicava aos livros didáticos à tarde. No ano seguinte, dedicou-se exclusivamente ao trabalho editorial.
“O início foi penoso, mas compreendi que a elaboração de livros didáticos e a prática na sala de aula são complementares para a formação do professor”, afirma Urrea, de português, que não interrompeu a prática. Para o autor, esta é um
a forma de o profissional se apropriar de todo o processo, aprimorando os li
vros e as aulas.
Para o professor Souza, de matemática, a etapa mais difícil ocorreu após a publicação de seus livros. Em parceria com a editora, viajou um ano inteiro para participar de eventos e visitar escolas, onde participava de reuniões tête-à-tête com professores, como forma de divulgar o trabalho. “E isso ocorreu justamente no ano em que a minha mulher estava grávida”, lembra.
Mas o seu maior orgulho foi ter emplacado seus livros no colégio onde já trabalhava, em Salvador. “É uma escola estadual, onde meu pai e eu estudamos – há uma forte ligação sentimental”, diz. Para ele, os estudantes também ficam felizes com a realização. “Na cabeça do aluno, escritor é uma figura muito distante. Perceber que o autor do livro está diante dele, acessível, funciona como um incremento de autoestima”, reflete.
A despeito da sobrecarga, todos querem continuar. A professora Glorinha tem uma aspiração ambiciosa: em parceria com um amigo escritor, quer desenvolver uma história ficcional com lições de física embutidas, aos moldes do best-seller O mundo de Sofia (Cia. das Letras), do norueguês Jostein Gaarder, um clássico da filosofia para adolescentes. Gaarder, a propósito, era professor de uma escola pública antes da fama.
Os clássicos |
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Obras clássicas da didática brasileira foram elaboradas por professores com experiência em sala de aula. O paulistano José De Nicola, por exemplo, já atuava havia 16 anos como professor de literatura (no ensino médio e em cursinhos) quando começou a publicar livros de alfabetização, gramática, redação e literatura, todos pela Scipione. |