Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)
Publicado em 03/06/2013
Entre a Gávea e a Rocinha, o Gente poderá contribuir para um re-ligare essencial
Fui ao Rio, para conhecer in loco o projeto Gente (acrônimo de Ginásio Experimental de Novas Tecnologias Educacionais). Fi-lo com a mesma intenção (a de querer aprender e partilhar), que me conduz, quando visito escolas brasileiras, que, cada qual do seu modo, produzem inovações.
Visitei a Escola Municipal André Urani, na Rocinha, livre da influência de uma média, que exulta com novidades, que presume serem inovações: escola com tablets, sem salas, turmas ou séries, sem paredes e quadros-negros, sem carteiras enfileiradas, sem lousas, mesas individuais e professores tradicionais. Não é neste lado exótico que reside o pioneirismo do Gente, mas na ousadia de uma secretaria de Educação, que, consciente dos trágicos efeitos de um modelo de escola falido, opera uma significativa ruptura paradigmática.
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Está aberto um precedente, talvez um tempo novo nos rumos que a educação brasileira percorre e que o amigo Rafael assim descreve: Salas de aula onde um professor passa o conteúdo da mesma forma para cada um deles podem estar com os dias contados. É urgente repensar e recriar discursos, metáforas e pedagogia de alma brasileira. Reflito sobre este verdadeiro marco histórico, enquanto viajo do Rio para Sampa, acompanhado do meu amigo Fábio, voluntário do Projeto Âncora. O meu amigo profundamente se comoveu, durante o diálogo com os professores do Gente, quando se referiu às crianças que ele ajuda a serem pessoas. Isso mesmo: escolas são pessoas, que se dão e se comovem. E a práxis das pessoas que educam é reflexo dos seus valores, pelo que aproveitamos para partilhar um livrinho que dá pelo nome de Dicionário de Valores.
Qual o modelo de pessoa e de sociedade que subjaz aos projetos como o Gente? Quais os valores por elas veiculados e os princípios que orientam as decisões? As novas tecnologias conferem um tom de modernidade ao projeto, mas a diretora Márcia foi objetiva na sua intervenção: Não se trata apenas da introdução de novas tecnologias na escola. Não basta mudar o quadro-negro pelo monitor digital. E, se as escolas entenderem isso, poderão migrar de um modelo de estudantes-papagaios repetidores da lição para um ambiente onde ocorra construção de saberes. Acredito que os professores do Gente isso entenderão e ajudarão os seus jovens alunos a reconstruir uma comunidade de aprendizagem chamada Rocinha e a usar as tecnologias para que isso aconteça criticamente.
É disso mesmo que se trata: de utilizar as novas tecnologias ao serviço da humanização da escola, na relação pessoa a pessoa, no estabelecimento de vínculos impossíveis de estabelecer com uma máquina, dentro e fora do edifício-escola. “Estrategicamente” situado na interface entre a opulência da Gávea e as carências da Rocinha, o Gente poderá contribuir para um re-ligare essencial, poderá transformar-se numa comunidade de aprendizagem, que logre esbater a pesada herança de séculos de difícil convivência entre alguns que têm tudo e muitos que nada têm.
Como diria o mestre Freire, não é a educação que muda a sociedade, mas é a educação que muda as pessoas, e as pessoas mudam a sociedade. Só precisamos de pessoas e parece que, agora, temos Gente. que foi feita para brilhar e não para morrer de fome.
* José Pacheco é educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)