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Entrevistas

Na essência do conflito

Para o pesquisador de psicologia moral Yves de La Taille, as escolas enfrentam indisciplina e problemas de convívio porque estão transmitindo valores egoístas aos alunos

Publicado em 06/09/2012

por Estevan Muniz

Yves de La Taille é um popstar. Ao final de uma palestra sobre formação moral e ética em um congresso para educadores em São Paulo, os professores fazem fila para tirar fotografias ou lhe pedir para autografar um dos seus vários livros sobre educação. A razão? Ele parece trazer soluções para educadores que enfrentem, no dia a dia, graves problemas de indisciplina, desrespeito e violência com seus alunos. Professor de psicologia do desenvolvimento na Universidade de São Paulo (USP) e autor dos livros Ética para meus pais, Indisciplina e Formação ética, entre outros, La Taille não tem celular, é avesso ao consumismo e condena a vida baseada na procura pela riqueza. Para ele, o mundo vive uma crise de valores éticos e morais, e ela, obviamente, alcança os alunos. O professor acredita que falta às escolas esforço em transmitir tais princípios. Não se trata de simplesmente estabelecer regras morais: o que pode ou não pode fazer, mas da opção ética da escola, ou seja, sua compreensão sobre como deve ser a vida. Para ele, não adianta esperar que os alunos vivam harmoniosamente e solidários, se as escolas pregam que desejam formar vencedores e líderes. O professor, sozinho, sem um programa institucional, pouco pode alcançar.

Gustavo Morita

Na entrevista a seguir, ele comenta sobre a formação ética e moral, o papel da escola, a relação desta com a família e os problemas de convívio dentro das salas de aula.

Qual a diferença entre moral e ética?
Na nossa tradição filosófica e jurídica quase sempre usamos a palavra ética e a palavra moral como sinônimas, entendendo que um problema ético e um problema moral seriam transgressões às regras. Porém, existe também na tradição filosófica uma outra possibilidade. À ética reservamos a questão do modelo de vida que se deseja ter, a questão da vida boa, da existência. E à moral, o que costuma ser a sua definição habitual: um conjunto de regras e deveres, que, se não forem seguidas, correspondem a transgressões. Portanto, podemos reservar à palavra moral a pergunta “Como devo agir?” e à palavra ética a pergunta “Que vida eu quero viver?”. Eu faço essa diferenciação e articulação entre moral e ética porque, do ponto de vista psicológico, ela é extremamente relevante. Para explicar como uma pessoa legitima o conjunto de regras morais é preciso saber que perspectivas éticas ela adota. A formação ética e moral caminhará nesse sentido.

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Vivemos um período de crise de valores éticos e morais, um momento crítico para a convivência, segundo o senhor e diversos outros estudiosos. Como a escola pode se posicionar nesse cenário? A escola está preocupada com essas questões?
Frequentemente o que motiva uma escola a me chamar para dar uma palestra são os problemas de violência, indisciplina e desrespeito enfrentados pelos professores, uma questão, digamos, muito pragmática. Então, a questão é moral. A preocupação sobre ética praticamente não existe nas escolas, muitas nem sabem o que é ética. Tento insistir com esses educadores que não é só uma questão de moral, mas ética também. É preciso perguntar: que valores existenciais essa escola passa? Você vê algumas escolas que parecem shoppings; suas paredes suam riqueza.

As escolas têm transmitido valores que dificultam o convívio?
A escola tem de se preocupar com os valores de vida. Não que ela deva impor aos seus alunos, pois ela não tem esse direito, mas é o que está nas paredes. Tem escolas em que você entra e a primeira coisa que vê é troféu. Ou seja, ela diz: “nós somos uma escola de vencedores”. Eu, sinceramente, prefiro uma escola em que a primeira coisa que se vê sejam trabalhos de alunos, símbolos ligados ao conhecimento, a alternativas ao mundo exterior. Frequentemente as escolas pensam: “vamos formar líderes”. Essas escolas fazem uma opção ética clara: é preciso ser competente, vencedor e líder. Isso é um entendimento sobre o que é ser alguém na vida, que, a meu ver, não é muito coerente com depois falar de respeito e solidariedade.

Há professores que acreditam que a formação ética e moral compete à família, e não à escola. O que o senhor acha dessa postura?
Isso é totalmente absurdo. Não digo que ela não participa, mas nunca coube à família, em momento algum, esse papel. Precisa-se analisar a história da família. De que família estamos falando? De qual classe social? Famílias ricas e pobres são muito diferentes. A família é uma geometria variável. E ela sempre foi, durante muito tempo, ajudada, para não dizer dominada, pela religião. No começo do século passado, quando apareceu a escola pública, republicana e laica, havia também uma preocupação com a formação da cidadania. Colocar nas costas da família, exclusivamente, a formação moral e ética é um erro histórico. E também lógico, pois como se pode colocar em uma instituição, tão frágil hoje em dia, uma coisa que interessa à sociedade inteira?

Quais as diferenças entre os papéis da família e da escola na formação ética e moral?
Do ponto de vista legal, o papel da família é o de sustentar esse ser que colocou no mundo. Claro que transmitir moral, valores e ética faz parte, mas é muito difícil definir exatamente o que fazer, pois há uma vagueza e muito afeto. O papel da escola é mais simples de ser definido porque é uma instituição que tem regras – e a família não tem regras. A escola, basicamente, é uma transição entre o espaço privado e o espaço público. E a família é essencialmente o espaço privado. Como uma pessoa se comporta com seus pais, filhos e irmãos é completamente diferente de como vai se portar na vida em sociedade. Claro que a família tem sua função, mas tem coisas que o espaço público exige e que são problemas da escola.

Como equilibrar a relação entre a família e a escola?
Do ponto de vista moral não tem problema algum, porque a Constituição Federal brasileira consagra esses princípios. Logo, tudo o que fere os direitos humanos, como injustiça, racismo e outras atitudes que ferem a dignidade, não pode ser cometido. A escola tem todo o direito de determinar que tais valores e tais comportamentos são exigíveis de todos, das crianças, dos professores e dos funcionários. Além disso, a escola pode deixar claro aos pais que eles devem delegar a ela autoridade.  Tem coisa que depende da família, mas muitas coisas dependem da escola, e esta só pode cumprir suas funções se os pais derem a ela o direito de mandar em seus filhos. Se a escola mandar errado, aí os pais podem reclamar ou tirar o filho da escola.

E do ponto de vista ético?
Do ponto de vista dos valores da vida, a escola tem de ter total autonomia. Quem enfrenta um grande problema nesse sentido é a escola privada. Para ter mais alunos, muitas vezes ela faz concessões, adapta-se aos valores das famílias, não contradiz os pais. Aí eu acho que ela está perdida. Creio que a escola tem de defender seus valores.  Seja qual for seu ponto de vista ético, a família tem de compreender e aceitar, ou não. Os valores morais são obrigatórios, os éticos não, mas têm de ser respeitados pela família.

Como se dá a relação entre a crença religiosa, a formação moral e ética e a laicidade do ensino?
Laicidade não é não ter religião. É aceitar toda e qualquer religião. Uma instituição é laica quando não permite que a religião esteja entre seus valores. Algumas escolas religiosas, preocupadas com a moral e ética, têm objetivos maiores e não são máquinas de vestibular. Mas a religião é condição necessária à moral e à ética? A resposta é claramente não. Toda religião tem uma moral, que pode até não ser boa, pode ser inclusive contraditória aos valores da nação.

Na sala de aula, como o professor pode lidar com as duas formações?
O professor sozinho não consegue fazer muita coisa. O principal erro não é tanto do professor. No que diz respeito à ética e à moral, em geral, o problema é da instituição. Não é comum existir um programa institucional para pensar esses temas. O resultado é que o professor fica isolado. Ele pode fazer um bom trabalho e o colega agir no sentido contrário. Ele tem de se sentir fazendo parte de uma estratégia. Fui convidado a dar uma palestra em um colégio bem famoso e bom de São Paulo, onde há um grupo que dá aula de cidadania para alunos do ensino médio. Como cheguei um pouco antes do horário, fiz um tour pela escola. No final da palestra, perguntei retoricamente: “As paredes desta escola falam o quê?” Eu mesmo respondi imediatamente: “tecnologia”. Eles não haviam pensado nisso antes, mas concordaram. “E a cidadania?” Está totalmente ausente das paredes. A última coisa que alguém pode imaginar, quando entra em uma escola como essa, é que a cidadania é um tema importante. É preciso colocar nas paredes; é algo institucional. Não estou dizendo que a cidadania é a coisa mais importante, mas não se pode deixá-la no rodapé. Os professores que falam dela raramente são considerados os mais importantes. É mais um problema da escola. Hoje se coloca demasiadamente as coisas nas costas do professor. Sozinho, o que ele fará?

A associação da disciplina educação moral e cívica ao regime militar ainda gera receios ao tema?
Hoje, não tanto. É mais folclórica. A ideia da educação moral e cívica, enquanto curso, era errada, a despeito de sua origem ditatorial. Você não pode fazer educação moral em um semestre, em quatro meses. A educação cívica, a rigor, procura fazer os alunos entenderem quais são as leis e organização do país onde eles vivem, pode ser inclusive na História.

Autor

Estevan Muniz


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