NOTÍCIA
Criar um certo nível de normatividade para a profissão docente, especialmente em relação aos currículos, não retira a autonomia do professor, diz especialista em relações do trabalho no campo educacional
Publicado em 10/09/2011
Professora de sociologia da educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Aparecida Neri de Souza tem centrado suas pesquisas nas implicações sociais decorrentes daquilo que se vem batizando de modernização das relações de trabalho e suas consequências no campo da educação.
Para a coordenadora do grupo de estudos "Qual é o sentido social da modernização no trabalho?" e pós-doutora pelo Laboratório do Trabalho e Mobilidades da Universidade de Paris 10, é preciso haver uma maior definição sobre o que é o campo docente. Sugestionada por uma questão debatida na mesa-redonda sobre as condições de trabalho e as faltas dos professores, organizada pela ONG Ação Educativa no Dia dos Professores, Aparecida crê que a definição de um currículo comum para a Educação Básica não só não retiraria a autonomia docente como ajudaria a ter claro o que é necessário para o seu exercício. E se mostra incomodada com a persistência da figura do professor leigo. "Não há médico ou engenheiro leigos", diz. Leia a seguir a entrevista concedida ao editor Rubem Barros logo após o evento de 15 de outubro.
Em sua fala final no debate terminado há pouco, a senhora disse que o evento suscitou novas questões para as suas reflexões. Qual dessas questões o fez com mais força?
O que mais me provocou foi a ideia de que é preciso pensar a normatividade. A definição do conteúdo do trabalho do professor não é um elemento que o desqualifique. Pelo contrário, pode ser um elemento qualificante. É preciso pensar nisso. Não é um ofício que qualquer um pode fazer, só pode ser feito por aqueles que sabem o que é o conhecimento, o que são a sua produção e transmissão. Esse grupo profissional tem de definir o que é esse conhecimento, o que é legítimo que seja ensinado pela escola. Tem a ver com a ideia de sistema, também discutida. O sistema pensa a integração entre as partes. Para construir essa profissão, é preciso olhar para esse grupo profissional e que ele compreenda que é um ofício que transmite e produz conhecimento, e isso não pode ser feito por outros que não são professores, não pode ser exercido por leigos. Isso foi problematizado pela mesa, ao questionar se o professor eventual vai existir sempre, ou se o inspetor de alunos, o cuidador podem substituir o professor. Só há um ofício que é o de ensinar, que é o do professor. O grupo não enfrentou a questão, pois ela exige um tempo maior de discussão. Mas foi uma boa provocação da mesa, pois devemos construir uma proposta de trabalho acerca de qual é o conteúdo desta profissão.
Isso nos obriga a perguntar: até onde vai a autonomia do professor, até onde o currículo deve ser previamente definido?
Esse é o coração do problema. Estou fazendo uma pesquisa comparando os professores do Brasil e da França. Na França, o currículo de todas as disciplinas tem um conteúdo definido, construído pelo Ministério da Educação. Entretanto, os professores franceses me diziam: "este é um ofício em que tenho autonomia. Fecho a porta da minha sala e sou eu e minha turma. É aí que se estabelece a relação de trabalho". E eu dizia: "mas o currículo é centralizado, definido pelos órgãos centrais. Isso não te tira a autonomia?". E eles respondiam: "de jeito nenhum. Quem decide como trabalhar esse conteúdo sou eu". Ou seja, é definido um conteúdo que é a formação do jovem francês, que deve ser igualmente ensinado, independente da origem social, seja ele dos guetos da periferia ou aluno do Liceu Louis-le-Grand, o mais prestigiado de Paris.
A visão republicana francesa…
Exatamente. Escola pública, para todos, o ideal liberal republicano, que eles construíram. Essa noção de que há um sistema de ensino na França, organizado, e que os jovens sabem, independente do lugar e das origens sociais, de classe etc., que o seu diploma tem o mesmo valor do ponto de vista social do que aquele de quem estuda em outro liceu. Isso é fundamental para pensar a noção de igualdade, que o sistema educacional deve ter esse compromisso. Essa questão incomoda os professores.
Mas não é porque isso acaba sendo traduzido, como no Estado de São Paulo, como uma explicitação dos conteúdos a serem ministrados aula a aula, e de que maneira isso deve ser feito, sem dar mobilidade alguma ao professor?
O problema é da concepção de currículo. Essa última reforma do Estado de São Paulo tem um problema: ao invés de apresentar a concepção de conhecimento e, naquele campo de conhecimento, o que é relevante para circular nos aparelhos escolares, a escola diz ao professor como ele deve tratar aquele conhecimento. É muito mais a forma do que o conteúdo.
Ou seja, tenta dar conta do processo…
Exatamente. E isso é o coração do ofício. Há um conhecimento que foi construído socialmente e historicamente por um conjunto de pesquisadores, e o seu trabalho como professor é fazer com que esse conhecimento possa dialogar com diferentes grupos sociais. Se isso é tirado, onde fica a autonomia? E os professores resistem porque veem que o coração de seu trabalho – o como se elabora e concebe a forma como esse conhecimento pode circular e ser apropriado pelos estudantes, lhes é retirado. Não gostei dos cadernos, são prescritivos nessa concepção formal, dirigem o trabalho, infantilizam e tiram aquilo que é essencial para o professor.
Também não levam a uma visão meio positivista do conhecimento, transformando-o em algo uno e total, que é o que está expresso no caderno?
Ele trabalha com uma noção homogênea. Dou um exemplo: há um filme francês chamado L´esquive [A esquiva, 2003, dirigido por Abdel Kechiche], sobre jovens migrantes pobres cujo avô está na cadeia e a mãe é empregada doméstica. Nesse filme, a professora de francês está encenando uma peça do século 18 [O jogo do amor e do acaso, 1730, de Pierre Marivaux], sobre as lutas de classe entre aristocracia e burguesia. Perguntei à professora de francês da escola onde eu fazia a pesquisa se ela havia assistido ao filme e o que ela achava de dar essa peça numa escola de periferia. Ele me mostrou o plano dela, que tinha Marivaux. Perguntei se eles compreendiam. Ela me disse: "você acha que a luta de classes não está presente na vida deles? Eles compreendem o conflito social. Trabalho, sim, com um autor do século 18, e eles leem".
Transpondo isso para cá…
Um colega aqui de São Paulo me contava que trabalha com Clarice Lispector. Perguntei se não era muito sofisticado para um menino de 15 anos. E ele dizia que a questão que ela coloca sobre o ser humano é um problema que eles compreendem muito bem, que não iria privá-los de ler Clarice Lispector para dar algum outro autor menor. Essa é a questão do conhecimento: nós infantilizamos nossos alunos. A forma de trabalhar é parte nossa. Essa é a questão fascinante desse ofício. Você pode pegar Weber, por exemplo, e trabalhar o que é questão da escolha – penso nos professores de sociologia. Você pode pegar o conhecimento e trabalhá-lo de forma que seja um elemento para ler a vida, a sociedade, a história. Esse é o fascínio do conhecimento e do nosso ofício.
Ou seja, trata-se mais de um problema de método do que de conteúdo?
O que chamamos de pedagogia? Os métodos de ensino. Existe um campo de conhecimento na pedagogia, que é a didática, do qual a pedagogia não pode abrir mão. A dimensão pedagógica do trabalho docente é a de tomar a didática e construir esse ofício que tem no conhecimento uma especificidade. A figura do professor leigo me incomoda muito, porque não há médico ou engenheiro leigos.
Voltando à questão da normatividade: como estabelecer o que deve ser comum sem induzir ao uso da regra de forma a inibir o discernimento de situações específicas, a reflexão que deve ser própria da escola?
Penso sobretudo no balizamento para o trabalho. O problema do ofício de ensinar é que todos na sociedade já tiveram uma experiência. Todos fomos alunos, uma parte tornou-se professor. É como futebol: todos sabemos dar pitacos. No nosso caso, trata-se de um campo que carece de definição científica. O núcleo de trabalhos, de profissionais, de intelectuais do campo da educação não constituiu um consenso de um campo de conhecimento. Quando você olha a profissão médica, ela teve uma trajetória cujas relações de poder caminharam para definir o que é o campo científico. Há muito mais consenso do que no campo da educação. Ou seja, comparamos com profissões muito normatizadas uma profissão que é pouco normatizada, que é a docente. Então, o excesso de normatização é mordaz, é autoritário, desqualifica, retira a possibilidade de o trabalhador ter a visão de conjunto de seu trabalho. Mas o ofício docente é muito difícil de ser prescrito totalmente, por conta do que eu dizia: quando o professor fecha a porta de sua sala, restam ele, sua turma e a relação que vai se constituir.
Como isso acontece na sala de aula?
Vejamos essa noção. Posso preparar muito bem a minha aula, organizar um plano. Entretanto, quando chego à sala de aula e o aluno faz uma pergunta, tudo muda. Não se consegue dar a mesma aula, a não ser que se grave uma aula num aparelho de vídeo e a retransmita ad nauseam. Então, o produto do seu trabalho, que é o plano da aula, e o produtor (o professor), não se despregam, pois no momento em que se entra em sala de aula produz-se outra coisa. Essa é uma dimensão muito difícil, algo que não pode ser capturado no sentido de ser totalmente normatizado. Porque o roteiro produzido – pelo professor ou pela secretaria – ganha outra dimensão na relação com o outro, o aluno. Então, esse perigo da normatividade como amordaçadora da autonomia, da criatividade, da produção de conhecimento, não é possível. Contesto as teses que dizem que o professor só reproduz o conhecimento. Mesmo quando reproduz, há um espaço, uma brecha, de produção.
Provocado muitas vezes por outros sujeitos, que são os alunos…
Exatamente. O ofício docente se localiza no campo dos trabalhos que são relacionais. É um trabalho com duas dimensões: uma é do labor, que nos iguala, que é de sobrevivência, e outra que é de trabalho stricto sensu, que é criação, fabricação da cultura, formação dos sujeitos. Não é como o trabalho fabril, que é só labor.
Vivemos uma espécie de esquizofrenia social, traduzida no fato de que nunca valorizamos tanto, ao menos nos discursos, o conhecimento, os saberes e a informação (ainda que esses diferentes conceitos sejam embaralhados), ao mesmo tempo em que há um inédito rebaixamento, por parte dos alunos, em relação à figura do professor. Como se explica isso?
Antes queria fazer uma distinção, relativa ao embaralhamento entre saber e conhecimento. Se você olhar as prescrições da Unesco sobre processos, de que a escola tem de ensinar o menino a ser, a aprender, a pesquisar – veja que nesse discurso não há conteúdo, não tem conhecimento. Por ele, você deve mobilizar os saberes do estudante. Isso encanta muito os professores em função de um discurso que apela à questão da diversidade e faz crer que se vai fazer com que o estudante mobilize os saberes que ele tem. Só que se você não dá o conhecimento, que não é informação, é conhecimento científico, filosófico, artístico, se não possibilita que o aluno tenha acesso a isso, como é que ele vai mobilizar aquilo a que ele não tem acesso? Isso é um dilema. Construir uma relação pedagógica nessa dimensão com jovens que vêm de extratos sociais sem acesso a equipamentos culturais, sociais etc. é de uma crueldade enorme com esses grupos sociais. Eles vão mobilizar um conhecimento que eles têm sobre a realidade, mas nós vamos privá-los de um conhecimento que eles só teriam pela escola. Assim, aprofundamos as desigualdades.
A escola deixa, assim, de ser um fator de mobilidade social?
Para determinados segmentos sociais, a escola ainda é um espaço de mobilidade social, a possibilidade de romper com um destino de classe, ter emprego, ser valorizado. Há grupos de profissionais no interior da escola que não reconhecem isso. Há um questionamento sobre a função da escola como mobilidade. Então o professor vive nessa ambiguidade, sem saber muito bem para onde o ofício dele pode levar. A escola, por si só, não muda mesmo, mas ela é um espaço de mudança. Mudança das mentalidades, da preservação e da criação da cultura, é um espaço importante, assim como outras instituições, mas diria que o espaço escolar é muito mais importante. É um espaço de sociabilidade. Outro dilema é que o professor não considera que esta seja uma relação assimétrica. A relação entre adulto e jovem é assimétrica. Aquele que já fez uma trajetória escolar, chegou à universidade e o outro que está lá, na 5ª. série, na 8ª. série, no colegial, mantêm entre si uma relação assimétrica. E dizer que somos todos iguais é transformar diferença em desigualdade.
Essa negação da assimetria não está ligada a um medo de ser autoritário?
Está. O professor tem, talvez não medo, mas constrangimento de admitir que o trabalho dele é pautado por uma relação assimétrica. Dou um exemplo: anos atrás, para fazer uma revisão da Classificação Brasileira das Ocupações, a CDO, reunimos professores de 1ª a 4ª série, de 5ª a 8ª série, ensino médio, ensino profissional, enfim os vários grupos. Eram professores de diferentes disciplinas, de diferentes locais do país e todos considerados excelentes por seus pares – haviam sido indicados por sindicatos, patrões de escolas privadas, secretários de educação. A primeira pergunta que fizemos foi: "qual a atividade central do seu ofício?". Eles diziam "nós ensinamos". Os de 5ª a 8ª diziam que faziam mediação, passaram horas discutindo e rejeitaram a ideia de que ensinavam, porque ser ensinante é ser autoritário, é uma relação assimétrica, representava a concepção histórica daquele que tem o conhecimento e ensina. Então, era uma tentativa de romper com essa relação. Os professores têm muita dificuldade de dizer que são professores. Gostam de dizer que são mediadores, pois aí rompem essa relação, ou são educadores. Educadora toda a sociedade é, todos nós educamos. Mas qual é o coração do ofício? A educação escolar. E o que tem a escola de singular que a amizade e a família não têm? Essa é a dificuldade, o constrangimento.
Professora de sociologia da educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Aparecida Neri de Souza tem centrado suas pesquisas nas implicações sociais decorrentes daquilo que se vem batizando de modernização das relações de trabalho e suas consequências no campo da educação.
Para a coordenadora do grupo de estudos "Qual é o sentido social da modernização no trabalho?" e pós-doutora pelo Laboratório do Trabalho e Mobilidades da Universidade de Paris 10, é preciso haver uma maior definição sobre o que é o campo docente. Sugestionada por uma questão debatida na mesa-redonda sobre as condições de trabalho e as faltas dos professores, organizada pela ONG Ação Educativa no Dia dos Professores, Aparecida crê que a definição de um currículo comum para a Educação Básica não só não retiraria a autonomia docente como ajudaria a ter claro o que é necessário para o seu exercício. E se mostra incomodada com a persistência da figura do professor leigo. "Não há médico ou engenheiro leigos", diz. Leia a seguir a entrevista concedida ao editor Rubem Barros logo após o evento de 15 de outubro.
Em sua fala final no debate terminado há pouco, a senhora disse que o evento suscitou novas questões para as suas reflexões. Qual dessas questões o fez com mais força?
O que mais me provocou foi a ideia de que é preciso pensar a normatividade. A definição do conteúdo do trabalho do professor não é um elemento que o desqualifique. Pelo contrário, pode ser um elemento qualificante. É preciso pensar nisso. Não é um ofício que qualquer um pode fazer, só pode ser feito por aqueles que sabem o que é o conhecimento, o que são a sua produção e transmissão. Esse grupo profissional tem de definir o que é esse conhecimento, o que é legítimo que seja ensinado pela escola. Tem a ver com a ideia de sistema, também discutida. O sistema pensa a integração entre as partes. Para construir essa profissão, é preciso olhar para esse grupo profissional e que ele compreenda que é um ofício que transmite e produz conhecimento, e isso não pode ser feito por outros que não são professores, não pode ser exercido por leigos. Isso foi problematizado pela mesa, ao questionar se o professor eventual vai existir sempre, ou se o inspetor de alunos, o cuidador podem substituir o professor. Só há um ofício que é o de ensinar, que é o do professor. O grupo não enfrentou a questão, pois ela exige um tempo maior de discussão. Mas foi uma boa provocação da mesa, pois devemos construir uma proposta de trabalho acerca de qual é o conteúdo desta profissão.
Isso nos obriga a perguntar: até onde vai a autonomia do professor, até onde o currículo deve ser previamente definido?
Esse é o coração do problema. Estou fazendo uma pesquisa comparando os professores do Brasil e da França. Na França, o currículo de todas as disciplinas tem um conteúdo definido, construído pelo Ministério da Educação. Entretanto, os professores franceses me diziam: "este é um ofício em que tenho autonomia. Fecho a porta da minha sala e sou eu e minha turma. É aí que se estabelece a relação de trabalho". E eu dizia: "mas o currículo é centralizado, definido pelos órgãos centrais. Isso não te tira a autonomia?". E eles respondiam: "de jeito nenhum. Quem decide como trabalhar esse conteúdo sou eu". Ou seja, é definido um conteúdo que é a formação do jovem francês, que deve ser igualmente ensinado, independente da origem social, seja ele dos guetos da periferia ou aluno do Liceu Louis-le-Grand, o mais prestigiado de Paris.
A visão republicana francesa…
Exatamente. Escola pública, para todos, o ideal liberal republicano, que eles construíram. Essa noção de que há um sistema de ensino na França, organizado, e que os jovens sabem, independente do lugar e das origens sociais, de classe etc., que o seu diploma tem o mesmo valor do ponto de vista social do que aquele de quem estuda em outro liceu. Isso é fundamental para pensar a noção de igualdade, que o sistema educacional deve ter esse compromisso. Essa questão incomoda os professores.
Mas não é porque isso acaba sendo traduzido, como no Estado de São Paulo, como uma explicitação dos conteúdos a serem ministrados aula a aula, e de que maneira isso deve ser feito, sem dar mobilidade alguma ao professor?
O problema é da concepção de currículo. Essa última reforma do Estado de São Paulo tem um problema: ao invés de apresentar a concepção de conhecimento e, naquele campo de conhecimento, o que é relevante para circular nos aparelhos escolares, a escola diz ao professor como ele deve tratar aquele conhecimento. É muito mais a forma do que o conteúdo.
Ou seja, tenta dar conta do processo…
Exatamente. E isso é o coração do ofício. Há um conhecimento que foi construído socialmente e historicamente por um conjunto de pesquisadores, e o seu trabalho como professor é fazer com que esse conhecimento possa dialogar com diferentes grupos sociais. Se isso é tirado, onde fica a autonomia? E os professores resistem porque veem que o coração de seu trabalho – o como se elabora e concebe a forma como esse conhecimento pode circular e ser apropriado pelos estudantes, lhes é retirado. Não gostei dos cadernos, são prescritivos nessa concepção formal, dirigem o trabalho, infantilizam e tiram aquilo que é essencial para o professor.
Também não levam a uma visão meio positivista do conhecimento, transformando-o em algo uno e total, que é o que está expresso no caderno?
Ele trabalha com uma noção homogênea. Dou um exemplo: há um filme francês chamado L´esquive [A esquiva, 2003, dirigido por Abdel Kechiche], sobre jovens migrantes pobres cujo avô está na cadeia e a mãe é empregada doméstica. Nesse filme, a professora de francês está encenando uma peça do século 18 [O jogo do amor e do acaso, 1730, de Pierre Marivaux], sobre as lutas de classe entre aristocracia e burguesia. Perguntei à professora de francês da escola onde eu fazia a pesquisa se ela havia assistido ao filme e o que ela achava de dar essa peça numa escola de periferia. Ele me mostrou o plano dela, que tinha Marivaux. Perguntei se eles compreendiam. Ela me disse: "você acha que a luta de classes não está presente na vida deles? Eles compreendem o conflito social. Trabalho, sim, com um autor do século 18, e eles leem".
Transpondo isso para cá…
Um colega aqui de São Paulo me contava que trabalha com Clarice Lispector. Perguntei se não era muito sofisticado para um menino de 15 anos. E ele dizia que a questão que ela coloca sobre o ser humano é um problema que eles compreendem muito bem, que não iria privá-los de ler Clarice Lispector para dar algum outro autor menor. Essa é a questão do conhecimento: nós infantilizamos nossos alunos. A forma de trabalhar é parte nossa. Essa é a questão fascinante desse ofício. Você pode pegar Weber, por exemplo, e trabalhar o que é questão da escolha – penso nos professores de sociologia. Você pode pegar o conhecimento e trabalhá-lo de forma que seja um elemento para ler a vida, a sociedade, a história. Esse é o fascínio do conhecimento e do nosso ofício.
Ou seja, trata-se mais de um problema de método do que de conteúdo?
O que chamamos de pedagogia? Os métodos de ensino. Existe um campo de conhecimento na pedagogia, que é a didática, do qual a pedagogia não pode abrir mão. A dimensão pedagógica do trabalho docente é a de tomar a didática e construir esse ofício que tem no conhecimento uma especificidade. A figura do professor leigo me incomoda muito, porque não há médico ou engenheiro leigos.
Voltando à questão da normatividade: como estabelecer o que deve ser comum sem induzir ao uso da regra de forma a inibir o discernimento de situações específicas, a reflexão que deve ser própria da escola?
Penso sobretudo no balizamento para o trabalho. O problema do ofício de ensinar é que todos na sociedade já tiveram uma experiência. Todos fomos alunos, uma parte tornou-se professor. É como futebol: todos sabemos dar pitacos. No nosso caso, trata-se de um campo que carece de definição científica. O núcleo de trabalhos, de profissionais, de intelectuais do campo da educação não constituiu um consenso de um campo de conhecimento. Quando você olha a profissão médica, ela teve uma trajetória cujas relações de poder caminharam para definir o que é o campo científico. Há muito mais consenso do que no campo da educação. Ou seja, comparamos com profissões muito normatizadas uma profissão que é pouco normatizada, que é a docente. Então, o excesso de normatização é mordaz, é autoritário, desqualifica, retira a possibilidade de o trabalhador ter a visão de conjunto de seu trabalho. Mas o ofício docente é muito difícil de ser prescrito totalmente, por conta do que eu dizia: quando o professor fecha a porta de sua sala, restam ele, sua turma e a relação que vai se constituir.
Como isso acontece na sala de aula?
Vejamos essa noção. Posso preparar muito bem a minha aula, organizar um plano. Entretanto, quando chego à sala de aula e o aluno faz uma pergunta, tudo muda. Não se consegue dar a mesma aula, a não ser que se grave uma aula num aparelho de vídeo e a retransmita ad nauseam. Então, o produto do seu trabalho, que é o plano da aula, e o produtor (o professor), não se despregam, pois no momento em que se entra em sala de aula produz-se outra coisa. Essa é uma dimensão muito difícil, algo que não pode ser capturado no sentido de ser totalmente normatizado. Porque o roteiro produzido – pelo professor ou pela secretaria – ganha outra dimensão na relação com o outro, o aluno. Então, esse perigo da normatividade como amordaçadora da autonomia, da criatividade, da produção de conhecimento, não é possível. Contesto as teses que dizem que o professor só reproduz o conhecimento. Mesmo quando reproduz, há um espaço, uma brecha, de produção.
Provocado muitas vezes por outros sujeitos, que são os alunos…
Exatamente. O ofício docente se localiza no campo dos trabalhos que são relacionais. É um trabalho com duas dimensões: uma é do labor, que nos iguala, que é de sobrevivência, e outra que é de trabalho stricto sensu, que é criação, fabricação da cultura, formação dos sujeitos. Não é como o trabalho fabril, que é só labor.
Vivemos uma espécie de esquizofrenia social, traduzida no fato de que nunca valorizamos tanto, ao menos nos discursos, o conhecimento, os saberes e a informação (ainda que esses diferentes conceitos sejam embaralhados), ao mesmo tempo em que há um inédito rebaixamento, por parte dos alunos, em relação à figura do professor. Como se explica isso?
Antes queria fazer uma distinção, relativa ao embaralhamento entre saber e conhecimento. Se você olhar as prescrições da Unesco sobre processos, de que a escola tem de ensinar o menino a ser, a aprender, a pesquisar – veja que nesse discurso não há conteúdo, não tem conhecimento. Por ele, você deve mobilizar os saberes do estudante. Isso encanta muito os professores em função de um discurso que apela à questão da diversidade e faz crer que se vai fazer com que o estudante mobilize os saberes que ele tem. Só que se você não dá o conhecimento, que não é informação, é conhecimento científico, filosófico, artístico, se não possibilita que o aluno tenha acesso a isso, como é que ele vai mobilizar aquilo a que ele não tem acesso? Isso é um dilema. Construir uma relação pedagógica nessa dimensão com jovens que vêm de extratos sociais sem acesso a equipamentos culturais, sociais etc. é de uma crueldade enorme com esses grupos sociais. Eles vão mobilizar um conhecimento que eles têm sobre a realidade, mas nós vamos privá-los de um conhecimento que eles só teriam pela escola. Assim, aprofundamos as desigualdades.
A escola deixa, assim, de ser um fator de mobilidade social?
Para determinados segmentos sociais, a escola ainda é um espaço de mobilidade social, a possibilidade de romper com um destino de classe, ter emprego, ser valorizado. Há grupos de profissionais no interior da escola que não reconhecem isso. Há um questionamento sobre a função da escola como mobilidade. Então o professor vive nessa ambiguidade, sem saber muito bem para onde o ofício dele pode levar. A escola, por si só, não muda mesmo, mas ela é um espaço de mudança. Mudança das mentalidades, da preservação e da criação da cultura, é um espaço importante, assim como outras instituições, mas diria que o espaço escolar é muito mais importante. É um espaço de sociabilidade. Outro dilema é que o professor não considera que esta seja uma relação assimétrica. A relação entre adulto e jovem é assimétrica. Aquele que já fez uma trajetória escolar, chegou à universidade e o outro que está lá, na 5ª. série, na 8ª. série, no colegial, mantêm entre si uma relação assimétrica. E dizer que somos todos iguais é transformar diferença em desigualdade.
Essa negação da assimetria não está ligada a um medo de ser autoritário?
Está. O professor tem, talvez não medo, mas constrangimento de admitir que o trabalho dele é pautado por uma relação assimétrica. Dou um exemplo: anos atrás, para fazer uma revisão da Classificação Brasileira das Ocupações, a CDO, reunimos professores de 1ª a 4ª série, de 5ª a 8ª série, ensino médio, ensino profissional, enfim os vários grupos. Eram professores de diferentes disciplinas, de diferentes locais do país e todos considerados excelentes por seus pares – haviam sido indicados por sindicatos, patrões de escolas privadas, secretários de educação. A primeira pergunta que fizemos foi: "qual a atividade central do seu ofício?". Eles diziam "nós ensinamos". Os de 5ª a 8ª diziam que faziam mediação, passaram horas discutindo e rejeitaram a ideia de que ensinavam, porque ser ensinante é ser autoritário, é uma relação assimétrica, representava a concepção histórica daquele que tem o conhecimento e ensina. Então, era uma tentativa de romper com essa relação. Os professores têm muita dificuldade de dizer que são professores. Gostam de dizer que são mediadores, pois aí rompem essa relação, ou são educadores. Educadora toda a sociedade é, todos nós educamos. Mas qual é o coração do ofício? A educação escolar. E o que tem a escola de singular que a amizade e a família não têm? Essa é a dificuldade, o constrangimento.
O debate de hoje, dia dos professores, sobre as faltas ao trabalho, pareceu reafirmar uma posição recorrente dos docentes quando o tema é este: a de identificar sempre as causas em algo que não está ao alcance deles transformar, como sujeitos ou coletivo. Ou seja, eles não têm o poder da ação.
Eles não olham tanto para as causas, e sim para os efeitos: as péssimas condições de trabalho etc. Dizemos que, quando se juntam, os professores fazem uma sociologia da denúncia. Isso não leva às causas, mas à denúncia sobre as condições de trabalho. Refletir sobre as péssimas condições de trabalho é pensar sobre as questões estruturais. A escola não é autoexplicativa. A escola, como construção histórica, tem uma série de problemas. E nesses debates olha-se o que é mais visível, mais aparente. E o que é aparente e visível são as péssimas condições de trabalho. Os professores assumem como deles, privatizam os problemas da esfera coletiva. Quando você não consegue resolver os problemas no âmbito do coletivo, remete para o nível individual, há muitas pesquisas sobre isso na psicodinâmica do trabalho. É problema dos professores, do aluno, da família, mas não é pensado na perspectiva coletiva.
E como essa individualização se reflete sobre o trabalho?
Isso leva a um processo que é o temor de não saber fazer o seu ofício – para o professor e para todas as profissões. Dou um exemplo: os condutores de trem. É o mesmo processo: fazem a denúncia sobre as condições de trabalho, mas há um medo de não saber fazer o trem parar na estação, pelo que dizem aqueles que pesquisam a fundo as condições de trabalho. Mas o que se discute são as condições de trabalho. É uma estratégia – e vários autores discutem isso como uma estratégia de defesa dos professores também -, privatizar o problema. O processo para dar visibilidade ao problema sem evidenciar que o medo, o constrangimento de não saber fazer o ofício, de não enfrentar as dificuldades é uma questão que tem de ser resolvida no âmbito do coletivo, leva os professores a tomar uma dimensão que permite explicar a questão. Mas isso não é inerente apenas à profissão docente, diz respeito a diferentes grupos profissionais.
Mas o fato de se enumerar todas as causas – ou efeitos – não torna a sua resolução mais difícil, por tornar o problema maior?
Não tenho segurança disso. Pensar a escola, o espaço de trabalho… a escola não é compreendida como espaço de trabalho pela sociedade. Compreender a escola como um espaço de trabalho não é um processo só dos professores.
Você está falando que o denuncismo leva ao imobilismo, não?
Sim, cada grupo se aferra ao seu lugar – professores, gestores – e nada se move.
Mas esse é o primeiro passo para tornar a questão visível. Como é que os movimentos sociais se constroem? O primeiro passo é tornar visível aquilo que parece invisível, desvelar, desmascarar. Então a denúncia é um momento que tem de levar a uma dimensão seguinte, que é a da esfera pública, da ação social.
Mas há trabalhos que mostram que essas queixas já eram correntes no século 19!!
Estou lendo um texto agora, do Centro de Estudos da Metrópole, da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), em que o autor faz um levantamento da bibliografia e diz o seguinte: tem pesquisas que mostram que os problemas de aprendizagem, de resultados da escolarização estão relacionados aos problemas da formação. Então, são os professores, por conta da sua formação, que não sabem fazer direito o seu ofício. É isso o que ele diz. Mas um outro estudo mostra que professores muito bem formados também vivem o dilema de não saber fazer o ofício. Então, essa questão não está dada. Historicamente, sabemos que os professores nunca ganharam bem. Quais são os níveis de comparação para dizer se ganham bem ou não? No conjunto da sociedade, quando o salário do professor se parece com o dos trabalhadores de mesmo nível de escolaridade, ele diz que ganha melhor, embora não ganhe altos salários, mas ao menos está equiparado. Quando destoa do conjunto dos trabalhadores com o mesmo nível de formação acadêmica, ele diz que ganha mal. Isso é um dado real. Hoje, o salário do professor no Estado de São Paulo pode ser comparado ao dos trabalhadores que têm formação de nível médio. Os jornalistas ganham duas vezes mais que o professor com a mesma formação universitária (dados do IBGE). Isso é um dado real para o professor. Essas questões são históricas, mas as representações que os professores fazem sobre elas se dão em termos comparativos.
Mas o que há de novo nisso tudo?
Denunciar que você é violentado no espaço escolar é uma novidade. Nos anos 40 e 50, havia uma outra relação. Eram poucos estudantes e professores, a origem social dos estudantes que frequentavam a escola pública era outra. Hoje, há grupos sociais muito diferenciados, e essas diferenças se apresentam de uma forma tão virulenta que os professores não sabem lidar. Eu não saberia. Estou propensa a pegar uma autorização para dar duas aulas [semanais] numa escola pública para poder conviver com essa situação. Vi um depoimento de um professor que disse que viu um policial ser morto defronte à escola e, no mesmo ano, houve uma mãe de aluno esfaqueada no mesmo lugar. A polícia entrou na sala de aula desse professor com metralhadora. Isso é inimaginável. As estruturas de poder se modificaram de tal forma que o Estado não tem mais aquilo que o [sociólogo alemão Max] Weber disse, que é o monopólio para exercer a violência simbólica, fazer cumprir a lei. Há um poder paralelo que estabelece outros códigos de vida, de cultura, que fazem pensar. Então, a questão do "denuncismo" não pode ser pensada na base da solução via negociação dos professores com outros agentes. Tem de ser pensada como um projeto societário, que escola se quer para esse projeto societário. Seria uma grande concertação social.
A não aceitação da assimetria entre os mundos jovem e adulto é maior na escola do que na sociedade em geral?
É a geração 68. O movimento social daqueles anos tinha uma característica interessante, que era a de questionar essas estruturas de poder, autoritarismo etc. Fizemos um movimento que tentava a emancipação da mulher, do jovem etc. Mas, de fato, hoje, quando olhamos para essa geração – fruto da nossa geração – nessa questão da educação dos filhos, fizemos um rompimento importante naquele momento, mas que hoje tem algumas consequências sérias. Recorro a uma autora que é uma grande liberal, a Hannah Arendt. Ela diz que o grande problema é que não nos responsabilizamos pelo mundo que nós criamos, não nos responsabilizamos pelas gerações mais jovens, pelas crianças. Ela estava pensando em grupos sociais, não em indivíduos. Estava olhando para a sociedade americana naquele momento [pós-2ª. Guerra Mundial]. Acho, então, que a crise com a qual nos defrontamos é uma crise de responsabilidade. Concordo inteiramente com ela, mas isso é fruto de uma história que construímos. Não conheço pesquisas sobre isso, mas li algumas coisas sobre o fato de a igreja evangélica ter grande penetração entre os jovens. Por quê? Porque ela fixa, coloca a noção de pertencimento, de construção de redes de solidariedade, de limites, constrói toda uma concepção de pertencimento com a qual outros espaços parecem ter dificuldades. Então cresceram muito entre os jovens. Não li muito sobre isso, mas acho que é uma boa pista para se pensar. Citando um bom professor, o [sociólogo] Octavio Ianni: ele dizia que esses momentos de crise, em que tudo parece não ter valor, em que a teoria parece não dar mais conta de nada, são muito interessantes, pois é deles que pode emergir uma discussão, uma concepção teórica, um entendimento. Enfim, digo como cidadã. Alguma coisa está emergindo aí, e não sabemos bem o que é. E que nos assusta, nos deixa inquietos, pois há gerações de jovens para as quais parece que a vida acaba aos 25 anos.