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Entrevistas

O apartheid educacional

Para Claude Carpentier, especialista francês em educação e diversidade, discurso humanista em voga na Unesco mascara um ideário que só faz aumentar o fosso entre ricos e pobres

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação


Claude Carpentier

Envolvido com as questões do ensino pós-apartheid na África do Sul há mais de 12 anos, Claude Carpentier, professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e Sociais da Universidade de Picardie Jules Verne, na França, acredita que o ideário neoliberal, cada vez mais presente nas políticas educacionais, cria atualmente um senso de justiça peculiar no que diz respeito às questões sociais. "Garante-se o mínimo e não se igualam as condições", resume o autor de, entre outros, A escola na África do Sul – Entre os fantasmas do apartheid e as limitações para avançar, não publicado no Brasil. Em visita a São Paulo, para uma série de eventos, entre eles a Roda de Conversa da ONG Ação Educativa, Carpentier conversou com a subeditora
Beatriz Rey

, e concedeu a entrevista a seguir.


O senhor desenvolveu um programa de cooperação científica na África do Sul sobre o sistema escolar e as heranças do apartheid. O que foi, na prática, essa experiência?


A primeira vez que fui à África do Sul foi em 1996. Desde então, fui a quatro ou cinco missões científicas lá. Em 1997, estudei as mudanças nos conteúdos escolares para o ensino de história depois do apartheid. Retornei em 2002 para participar de um colóquio franco-sul africano, quando fiz uma palestra. No ano passado, iniciei uma parceria com Michael Cross, da Universidade de Witwatersrand, de Johannesburgo, para pesquisar a trajetória dos estudantes negros das camadas desfavorecidas que ingressavam pela primeira vez numa universidade. Isso porque, obviamente, desde o fim do apartheid, todos podem ingressar nas mesmas universidades. Na prática, esse programa de cooperação científica envolvia intercâmbio com universidades: pesquisadores iam da África do Sul para a França e vice-versa.


Como está o quadro da educação na África do Sul?


Costumo usar a metáfora do copo metade vazio e metade cheio para falar da educação lá. Depois do apartheid, que acabou em 1991, o principal objetivo dos líderes de governo era acabar com as desigualdades e as seqüelas que restaram no sistema educacional. Muitas medidas foram tomadas para resolver a questão do financiamento das escolas. Por exemplo, o Estado passou a bancar recursos suplementares para as escolas mais desfavorecidas, mas, em contrapartida, as famílias têm de pagar uma espécie de mensalidade para as escolas.


Mas não são escolas públicas?


Na realidade, na África do Sul o ensino público não é verdadeiramente público. As mensalidades são um jeito de selecionar quem entra na escola. O financiamento provém de duas frentes: das famílias e do governo. As famílias pagam mensalidades, cujo valor varia de acordo com o que o conselho de administração do próprio estabelecimento determina. Nas escolas que recebem um público socialmente favorecido, a mensalidade é mais elevada. A parte do financiamento que é pública acontece por compensação: as escolas mais pobres recebem mais dinheiro, já que os pais não podem arcar com as altas mensalidades. Mas, na realidade, não há compensação verdadeira, pois as mensalidades pagas nas escolas ricas são bem mais consideráveis que a diferença do subsídio público entre as escolas ricas e as pobres. Em 1994, as escolas sul-africanas foram divididas em cinco grupos, que variam de acordo com o grau de pobreza. O Q1, por exemplo, representa os 20% de escolas mais pobres, e o Q5, as 20% mais ricas. Depois de 2007, entretanto, as escolas mais pobres (Q1 e Q2) foram dispensadas das mensalidades. O poder público estipulou uma determinada soma para a escolarização de uma criança e assegurou o pagamento desse valor integral (550 rands, a moeda local). As escolas que continuam nas fatias Q3, Q4 e Q5 continuam cobrando as mensalidades.


Como se caracteriza o ensino privado na África do Sul?


Tradicionalmente, o ensino privado não é desenvolvido ali. Proporcionalmente, não é como no Brasil. Representa cerca de 10% do sistema educacional sul-africano. As famílias mais favorecidas estudam nas escolas para as quais elas pagam mensalidade. É um meio de ficar longe da população pobre e negra. Hoje, não há mais discriminação racial, mas há um processo de diferenciação social muito forte. A África do Sul se tornou um país como os outros no que diz respeito à educação: assegura-se o mínimo de acesso e freqüência. Ouvi a campanha eleitoral de um político do Estado da Bahia, que assegurava um objetivo: cada criança devia saber ler e escrever. Assegurar esse mínimo não leva os alunos ao ensino superior. É um mínimo que não resolve a questão da diferença social.


O senhor considera que o Nordeste brasileiro vive uma condição parecida com a da África do Sul?


Não conheço a realidade do Nordeste tão bem quanto conheço a da África do Sul. Constatei diferenças significativas entre a Bahia, que conheço mais, e o sul do país, no que diz respeito ao acesso, desempenho escolar e freqüência. Considero que isso acontece devido aos diferentes tipos de colonização. E isso não é tão diferente do que a África do Sul vive hoje. Ela também é resultado de diferentes colonizações e povoamentos, e isso se reflete nas estatísticas escolares e revela realidades bem diferentes de uma população para outra.


De todos os países, qual o senhor considera que tem o sistema educacional que funciona melhor, no que diz respeito à qualidade?


É uma pergunta bem difícil. Há indicadores que mostram que os sistemas educacionais do norte da Europa, em países como a Dinamarca, a Noruega e a Suécia, são os menos desiguais e os que provocam menos desigualdades. Mas tudo é relativo. Em geral, os sistemas que obrigam o aluno a optar por uma carreira o mais tarde possível, seja no ensino técnico ou no ingresso em uma universidade, são os que provocam mais igualdade. É o que apontam algumas pesquisas.


Qual o melhor caminho para o ensino médio: o ensino técnico ou a preparação para a universidade?


Na França, o aluno pode optar pelo ensino técnico com 12 ou 13 anos, e depois deixar a escola com 15. O que acontece é que eles competem, no mercado de trabalho, com outros estudantes que fazem o ensino médio até os 18 anos, e depois ingressam no ensino superior. Os alunos que fizeram a opção muito cedo pela profissão estão num nível totalmente desfavorável em relação aos outros que são mais qualificados. Acredito que, se a perspectiva maior é a formação dos alunos e a sua garantia no mercado de trabalho, o melhor caminho é levar todos até o mesmo ponto e depois deixá-los escolher entre o ensino técnico e a universidade.


E o currículo escolar? Qual margem deve haver para a ação dos docentes?


Quanto mais você descentraliza os conteúdos, mais abre portas para desigualdades. Porque nas escolas pobres o conteúdo oferecido será sempre mais fraco, quando comparado com as escolas mais ricas, que terão dinheiro para investir em formação de professores, por exemplo. Acredito que um país deve ter um certo nível de exigência nacional. A França tem uma tradição forte de compromisso do poder público para assegurar que toda a população tenha uma formação igualitária, do ponto de vista do conteúdo. O que está acontecendo ultimamente é que o sistema educacional está sofrendo pressão por algumas formas de neoliberalismo, para que esses conteúdos sejam fragmentados. O objetivo é a criação de pólos de excelência em alguns lugares.


Sobre a incorporação dos conteúdos afro-brasileiros no currículo escolar, o que isso significa para o sistema educacional brasileiro?


A introdução desses conteúdos num país como o Brasil é simplesmente indispensável e evidente. Mas é importante que sejam vistos como parte de uma história comum do Brasil, não apenas dos afro-descendentes ou dos indígenas. É uma questão de identidade. Não é só interesse de uns ou de outros, mas dos brasileiros vistos como um país. A história do Brasil é essa. Todos os brasileiros são contemplados com esses conteúdos.


Como o senhor enxerga a questão da bonificação de desempenho?


É uma mistificação e uma grande farsa. Com essa prática, as escolas acabam criando mecanismos para expelir os alunos ruins. O objetivo é aumentar a média, já que alunos com desempenho ruim não rendem notas altas. São os efeitos perversos dessa política, que cria uma concorrência entre as escolas. Todos os países que aplicaram essa medida passaram por esse processo: concorrência, escolas que expelem alunos ruins, que vão procurar outras escolas, que ao recebê-los têm suas médias reduzidas. Essa política contribui com a ‘guetização’ da educação. É um processo perigoso. Você acaba criando um sistema educacional com várias velocidades. Se você é diretor de uma escola que caminha nesse processo, vai ter todo interesse em contratar os melhores professores e em abrigar os melhores alunos. Uma política democrática é o contrário disso. Você tem de dar mais dinheiro aos estabelecimentos que são menos favorecidos.


Qual é o papel da escola hoje, no sentido de não criar essas desigualdades?


Normalmente, o papel da escola é compensatório. É o de dar mais aos que têm menos. Isso se você tem como objetivo democratizar o ensino e ter uma sociedade mais igualitária.


Quais as maiores lições dos sistemas de ensino sul-africano e francês?


As lições não variam de um país para outro. A lógica de desenvolvimento das políticas educacionais tende a ser a mesma no âmbito mundial, apesar dos diversos contextos socioeconômicos. O que se expressa nessas políticas são os mesmos movimentos. A questão da bonificação por desempenho, por exemplo, reflete-se mundialmente e é resultado de uma lógica neoliberal introduzida nos sistemas educacionais. A diferença de um país para outro é a resistência do local ou não. Tenho a impressão de que o Brasil está entrando na mesma lógica. Os partidários dessa política neoliberal divulgam a crença de que essas medidas vão dar resultados positivos em longo prazo e que vão reduzir as desigualdades. A lógica é a do progresso. Mas o que constatamos nos países em que esse tipo de política foi implantada é que as desigualdades estão aumentando. Se você ler os grandes textos da Unesco e de outras instituições internacionais, perceberá uma retórica de "educação para todos". Uma análise superficial desse discurso mostra um fosso entre essa retórica humanista, mais de esquerda, e as políticas neoliberais em obra. A Revolução Francesa pregava igualdade para todos. Hoje, prega-se o mínimo para todos. O que se lê nas instituições internacionais é uma filosofia de assegurar o mínimo às bases em educação, saúde e nas questões sociais em geral. É o que acontece com o Bolsa-Família, programa do governo federal brasileiro. A mentalidade é: os ricos não podem ser impedidos de viver em mansões com piscinas, desde que os pobres tenham uma refeição por dia e não morram de fome. Que sociedade estamos construindo com esse princípio de justiça que garante o mínimo e não iguala as condições?


Quais são os principais desafios da educação brasileira?


De maneira geral, para melhorar a educação, precisamos lutar contra a pobreza, que é fonte da desigualdade. É por conta da pobreza que as crianças têm de sair da escola para trabalhar e sustentar suas famílias. Dei uma volta pelo bairro de Higienópolis, em São Paulo, e vi crianças nas ruas. É claro que a maioria das crianças brasileiras não tem as mesmas condições de vida, não freqüenta as mesmas escolas e não tem as mesmas possibilidades que essas.

Autor

Redação revista Educação


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