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Motor do desenvolvimento

É o papel que o autor de Escola e democracia e História das idéias pedagógicas no Brasil, este último vencedor do Prêmio Jabuti 2008, defende para a educação brasileira: o de força motriz da economia

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros


Dermeval Saviani

Um dos nomes mais respeitados pelos docentes brasileiros, Dermeval Saviani, professor aposentado da Universidade de Campinas, foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti de 2008 (na área de educação), com o livro História das idéias pedagógicas no Brasil (Autores Associados, 2007). Na obra, percorre as práticas educacionais desde os jesuítas até os tempos atuais, que classifica como "produtivistas". Autor também de Escola e democracia, livro em que lançou a pedagogia histórico-crítica e que ganhou edição comemorativa de 25 anos, Saviani credita a má qualidade do ensino ao baixo investimento e à falta de prioridade para a educação. E vê no PDE uma boa iniciativa, por se preocupar com a qualidade, mas questiona o fato de o Estado não assumir suas responsabilidades, dividindo-as com outras esferas sociais. Leia, a seguir, a entrevista.


Como o senhor vê o cenário pedagógico brasileiro após a adoção dos instrumentos de avaliação, como o Saeb, dos anos 90 para cá?

Trato desse assunto no último capítulo do meu livro. Abordo as idéias pedagógicas no contexto atual, mostrando as orientações que vêm numa linha muito fragmentada, mas com um fundo comum dado pela visão "produtivista" da educação, que a articula com as demandas do mercado. Daí a busca de resultados e a organização dos sistemas de avaliação em âmbito nacional, do trabalho com estatísticas, que também se revelam importantes para responder à pressão internacional para mostrar esses resultados. Se o país não está bem situado, isso é considerado para a obtenção de financiamentos internacionais e para o controle que a União exerce sobre estados e municípios quanto ao repasse de recursos. Essa visão do produtivismo e da busca de resultados está muito associada às idéias pedagógicas atuais.


Mas esses parâmetros não têm produzido melhora de qualidade da educação. Qual o grande nó da questão?

Há dois fatores fundamentais. O principal, determinante do outro, é a questão do financiamento. Há aí uma incoerência entre o discurso e os procedimentos da política educacional. Há um consenso hoje de que a educação é o fator mais importante numa sociedade do conhecimento, porque quem não o domina fica para trás. Portanto, os países cuja educação tem uma qualidade sofrível perdem competitividade, pois a mão-de-obra deixa a desejar. Os políticos dizem que [em função disso] não alcançamos um bom patamar de desenvolvimento, reforçamos as desigualdades e prolongamos a situação de deficiências nos vários níveis. Mas, apesar de esse ser o discurso dominante, não se investe de forma correspondente. Isso não ocorre em função do produtivismo. Utiliza-se um princípio aplicado desde o regime militar: a busca do máximo de resultados com o mínimo de dispêndio. Então, esse é o primeiro aspecto que interfere na qualidade da educação. Caso se investisse de forma maciça em educação, como fizeram outros países, teríamos condições de resolver o problema. A Coréia do Sul, durante 20 anos, investiu 10% do PIB em educação e saiu do estágio em que se encontrava – próximo ao do Brasil de uns 20 anos atrás – e se tornou um dos principais países, tanto no aspecto educacional como no desenvolvimento econômico.


Um investimento dessa ordem seria o suficiente para que tivéssemos esse ganho?

Creio que sim. Na discussão do Plano Nacional de Educação, logo após a aprovação da LDB, em 1996, minha proposta era duplicar imediatamente o percentual do PIB investido em educação, passar dos 4% para 8%, e aí nos situaríamos no âmbito dos países que mais investiam. Os dados do MEC na época mostravam que Estados Unidos, Suécia e Noruega, Austrália investiam entre 7,5% e 8,5%. Com uma diferença: eles continuavam investindo esse percentual do PIB com um sistema já instalado e a Educação Básica universalizada, com o analfabetismo erradicado e tendo uma economia bem mais forte do que a nossa. Como o Brasil se atrasou – os principais paí­ses universalizaram seus sistemas de ensino na virada do século 19 para o 20 – deveríamos investir mais, como fez a Coréia do Sul. Se partíssemos do patamar de 10%, estaríamos sinalizando vontade política para resolver o problema. Fiz um exercício com os 8%, mostrando que dobrando os recursos de estados, municípios e União, poderíamos começar a resolver vários dos problemas, inclusive começar a implantar jornada de tempo integral para os professores, o que influiria no aspecto pedagógico.


E por que não foi aprovado?

Na época, se disse que isso era inexeqüível, que o país tinha muitas necessidades, que áreas como saúde, segurança e infra-estrutura também precisavam de investimentos. Mas a educação não compete com esses setores. É uma questão de definir o eixo do projeto de desenvolvimento nacional. Se a educação é o eixo e se investe maciçamente, a partir dela os outros setores serão beneficiados. Que é o que se fez com o automóvel no início do século 20. O modelo de desenvolvimento dos países capitalistas foi centrado no automóvel, a partir dele se desenvolveram a construção civil, a infra-estrutura de transportes, dinamizou-se a economia, ainda que com os efeitos colaterais negativos, como a verticalização das cidades e a poluição. Caso se invista em educação, se dinamizará a economia a partir da educação. Se espalharmos escolas pelo país e povoarmos essas escolas de professores e funcionários ganhando bem, estimulando a escolha dessas carreiras, haverá uma qualidade docente melhor, pois as pessoas mais bem formadas vão querer ser professores. Os candidatos a professor vão se dispor, como ocorre com a medicina, a investir na sua formação. No lugar da política de hoje, que procura reduzir o tempo de formação de professores para dois anos e os coloca rápido para dar aulas, teríamos cursos de formação longa. Quem vai se dispor a ter uma formação longa para ganhar os salários miseráveis que hoje vigoram? Se recebessem bons salários, que implicariam reconhecimento social da profissão, os jovens também teriam interesse em investir tempo e recursos para se formarem como professores. E, se ganharem bem, vão consumir e pressionar o comércio para haver mais bens para atender a essa demanda. O comércio pressiona a agricultura e a indústria para produzir mais, o que resolve os problemas do desemprego e da segurança, pois as crianças na escola não estarão sujeitas ao assédio do tráfico. Então, esse é o primeiro aspecto, a questão do financiamento.


E o segundo?

Diz respeito ao funcionamento das escolas, e aí as idéias pedagógicas têm certo peso, as concepções pedagógicas. As que estão circulando hoje são idéias que, por conta dessa visão pragmática de atendimento imediato ao mercado, põem em posição secundária os conhecimentos básicos, os conhecimentos científicos. A visão pós-moderna desconfia da ciência. A idéia de que a ciência produz conhecimentos sólidos é relativizada, pois esse conhecimento está sujeito a dúvida e contestações, portanto não é [visto como] qualitativamente superior ao conhecimento de senso comum ou religioso. Essas idéias entram nas escolas e levam os professores a achar que não precisam formar bem os alunos, pois esses conhecimentos se equivalem.


Não estamos caindo numa armadilha ao valorizar em excesso o "aprender a aprender" e ao depreciar o conhecimento e sua capacidade formativa?

A idéia de que as crianças, pela sua própria vivência, podem chegar a conhecimentos mais elaborados é inconsistente. A idéia de aprender a aprender, no sentido de que as crianças devem se desenvolver para a autonomia, é pedagogicamente importante. Entendo, como afirmava [o filósofo italiano Antonio] Gramsci (1891-1937), que o processo educativo vai da anomia à autonomia pela mediação da heteronomia. Na heteronomia entra o papel da educação, a importância dos adultos, dos professores em dar direções, indicar o que é secundário e o que é essencial, quais são os conhecimentos fundamentais a serem dominados, a partir dos quais as novas gerações ganharão autonomia. Caso se acredite que, a partir de suas próprias vivências e das relações entre si as crianças vão desenvolver conhecimentos elaborados, sistemáticos, ficaremos nesse lusco-fusco, nesse início de verdade e de erro que é o senso comum, que está posto e invadindo as escolas. Somam-se a essas idéias as condições precárias de trabalho dos professores, que vão para as escolas e têm de trabalhar com número grande de alunos, em condições de violência, de pressão do tráfico, salários baixos e essas idéias diluidoras. Que qualidade podemos atingir com isso? Inevitavelmente, os resultados, do ponto de vista do domínio do conhecimento, da formação educativa, serão precários.


O senhor é favorável à idéia de um sistema nacional de formação de professores?

Há uma idéia central pela qual venho me batendo desde que me formei, em 1966. Minha tese de doutorado foi sobre o conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, com o título de Educação brasileira: estrutura e sistema, em que mostro que não existe sistema educacional no Brasil. Desde então, defendo a importância da organização de um sistema nacional de educação, o que implica organizar a educação em âmbito nacional, sob a coordenação da União, e envolvendo estados e municípios. Agora, quando o MEC se propõe a organizar um sistema nacional de formação de professores, isso faz sentido e podemos considerar que é um passo. O problema é que essas coisas acabam sendo feitas de forma atropelada e fragmentada. Em lugar de caminhar para um sistema nacional de educação – e no seu interior a formação de professores seria necessariamente organizada em âmbito nacional -, a União toma uma decisão unilateral e envolve a Capes, que já vinha fazendo esse trabalho em nível de pós-graduação (a avaliação), mas faz isso de forma justaposta. Cria no âmbito da Capes um Conselho de Educação Básica, mantendo o de Educação Superior, e convida umas 30 pessoas para integrar esse conselho. Quais as suas atribuições? Dar sugestões, fazer propostas para a organização da Educação Básica. Os recursos da Capes não são discutidos aí, e sim no Conselho da Educação Superior. Não faz sentido ter dois conselhos. Quem vai formar professores? Não é a Educação Básica, é a Superior. Então, essas questões não permitem considerar plenamente válidas essas iniciativas.


Mas o senhor crê que é preciso criar uma matriz comum para a formação de professores?

A educação escolar está ligada ao desenvolvimento e ao acesso da população a um saber sistematizado, de base científica. Para ter acesso a um saber não elaborado, a população não precisa de escola, parte de suas próprias vivências. A cultura letrada não se aprende de forma espontânea, tem de haver processos sistemáticos, formais, e o papel fundamental da escola é esse. Os currículos têm de ser organizados levando em conta esse dado e buscando selecionar, no conjunto dos conhecimentos elaborados da cultura letrada, os elementos fundamentais que permitam às crianças e aos jovens, adquirindo-os, ingressar nesse universo e ganhar autonomia para serem capazes de por si próprios aprender e conhecer outros aspectos.


Qual sua opinião sobre o Plano de Desenvolvimento da Educação?

O PDE acerta ao focar a qualidade. Mas vejo alguns problemas na proposta. Primeiro, a fragmentação. Logo que foi lançado, supunha que havia uma fundamentação que desembocaria nas metas a serem realizadas. Mas, ao entrar no site do MEC, o que se via eram ações, cerca de 30 no início, que hoje estão em torno de 47. Tenho impressão de que, dentro do Plano de Ação do Crescimento (PAC), o MEC pegou as ações que já desenvolvia e acrescentou a proposta dos empresários, o compromisso Todos pela Educação, baixou um decreto com esse mesmo nome, criou o Ideb, focando a questão da qualidade, e o PDE veio com essas características de somatório de ações justapostas, tendo esse foco na qualidade, via Ideb.


E a idéia de responsabilização, é boa?

Esse vínculo com o compromisso Todos pela Educação traz um problema que vem dos últimos governos, que é a tendência a colocar a responsabilidade da educação no âmbito de uma esfera indefinida que é a chamada sociedade. Então, a educação não é um problema do governo, é um problema da sociedade. Isso significa que todos são responsáveis: os empresários, as ONGs, as entidades filantrópicas, os indivíduos, quando educação, como está na Constituição, é um direito do cidadão e um dever do Estado. E como dever do Estado, as instâncias que o compõem, do município à União, teriam de assumir a responsabilidade. Outro aspecto problemático do PDE é a questão do financiamento. Embora o governo proclame que ampliou os recursos, a base de financiamento das ações é fundamentalmente o Fundeb, fundo que retém recursos dos estados e municípios para a manutenção da educação. Não acrescenta recursos, apenas reordena, porque a base, 25% de estados e municípios que a Constituição define, é a mesma. Os 18% da União ficam mais ou menos protegidos. O Fundef já era isso. O governo federal não incluía recursos do orçamento, embora a própria lei determinasse. Mas fixava o valor de tal modo, que podia utilizar os recursos do salário-educação para fazer a parte dele. Com o Fundeb, especificou-se que os recursos do salário-educação não podem entrar. Então a União tem de colocar recursos do orçamento, mas é um percentual pequeno. Quando somamos os recursos, vemos que, proporcionalmente, houve redução do Fundef para o Fundeb. Como foi divulgado na ocasião da sanção da lei que regulamentou o Fundeb, o número de estudantes atendidos pelo fundo passou de 30 milhões [no Fundef] para 47 milhões, um aumento de 56,6%. Em contrapartida, o montante do fundo passou de R$ 35,2 bilhões para R$ 48 bilhões, um acréscimo de apenas 36,3%. Então, proporcionalmente, houve redução. O PDE traz essa debilidade. Embora aponte na direção certa, está organizado de um modo que as chances de êxito são problemáticas.


Como o senhor define qualidade em educação?

Não é uma pergunta fácil, mas há parâmetros, até mesmo nas avaliações, para aferir a questão da qualidade. Claro que são parâmetros relativos e podem ser discutidos. No entanto, se tomarmos a educação escolar como tendo o objetivo principal de permitir o ingresso na cultura letrada, via alfabetização, e a partir daí, o domínio dessa cultura, via apropriação dos conhecimentos sistematizados, veremos que os componentes principais dessa cultura, dados pelo currículo da escola elementar – o domínio da língua, dos cálculos matemáticos, das ciências da natureza e das ciências sociais – são referências para as avaliações, tanto nacionais como internacionais. Então, diríamos que a escola é qualitativamente satisfatória quando permite o domínio desses conhecimentos, e é mais desenvolvida quando permite melhor o domínio desses conhecimentos, e não é tão desenvolvida quando fica na média e permite isso apenas em graus intermediários ou reduzidos. A precondição para se atingir níveis melhores de qualidade de ensino é a preparação dos professores. Desconfio de cursos que estabelecem metas específicas que podem ser definidas mês a mês, semestre a semestre ou ano a ano, porque os jovens não vão adquirir uma formação consistente por esse procedimento. É preciso fazer com que vivenciem um ambiente de rico, intenso e exigente estímulo intelectual. Se a universidade dispuser desse ambiente, os jovens terão uma formação sólida, e vão atuar nas escolas nessa mesma direção.

Autor

Rubem Barros


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