NOTÍCIA
Para educador e ex-ministro português, a escola precisa aliar-se aos projetos de vida dos alunos para que estes possam descobrir um sentido nas relações de ensino
Publicado em 10/09/2011
O professor Roberto Carneiro, ex-ministro da Educação de Portugal e atual presidente do Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, poderia ser chamado de um intelectual multitarefas. Consultor de diversas organizações, escritor, palestrante, educador, é também o diretor da cadeira de licenciatura em Comunicação Digital e Interativa da Universidade Católica Portuguesa.
Mesmo fazendo a defesa do potencial libertador da tecnologia, Carneiro preserva o olhar de educador ao defender que a escola deve centrar-se no permanente, sem deixar-se fisgar por toda e qualquer novidade. E credita a crise atual de educadores à ausência de disponibilidade para ouvir o outro, condição essencial à relação educativa. Leia, a seguir, a entrevista concedida ao editor
Rubem Barros.
O senhor costuma mencionar a questão da troca de tecnologias e seus efeitos. Qual sua visão sobre essa questão?
Há vários estudos sobre a chamada Lei de Moore, que diz que de 18 em 18 meses a capacidade tecnológica de um computador é duplicada. E a Lei do Desgaste Tecnológico, das aplicações cotidianas, na minha ou sua casa, no posto de trabalho, diz que, no mínimo de dez em dez anos, 80% das tecnologias são repostas. Esse prazo está se encurtando. Hoje, já não são mais dez anos, são oito ou sete anos. O prazo da vida humana comporta pelo menos dez ciclos ou doze ciclos tecnológicos, o que exige um grau de adaptabilidade muito maior do que antes, do que quando a sociedade era pachorrenta, lenta, estável. O arquétipo de ontem era o mesmo de amanhã. Agora, já não há estruturas permanentes, mas sim projetos. O futuro é mais importante que o presente.
Essa velocidade é a velocidade com que essas tecnologias são disponibilizadas ou apropriadas?
Apropriadas. Na verdade, nunca chegam a ser totalmente apropriadas. É a velocidade a que o cérebro e o coração humanos são capazes de levar as tecnologias a criar valor para sua vida cotidiana. Ou seja, para sua vida pessoal, familiar, de cidadão e profissional.
Isso implica um cenário difícil no âmbito escolar, porque as escolas incorreriam no risco de absorver coisas que seriam descartadas do uso escolar e social muito rapidamente. O que a escola deve efetivamente absorver?
A filosofia da educação sempre se bateu entre dois pólos, entre a permanência e a mudança. Entre a continuidade e a renovação. O que a escola deve fazer é essencialmente aquilo que é permanente, que é contínuo. Aquilo que é intrínseco à unidade do ser humano desde que ele se conhece por ser humano. A busca da felicidade, a construção do sentido, a vida relacional, em sociedade, os valores, isso é permanente. Qualquer que seja a tecnologia emergente, seja a internet ou, no passado, o rádio, a televisão, a eletricidade, ou a imprensa, são meros instrumentos para ajudar o ser humano a ser mais humano. Portanto, a escola tem de ser capaz de entender a apropriação tecnológica ao serviço das grandes questões invariantes da educação desde sempre. Essa é a mensagem fundamental. A escola não deve andar a correr atrás da última moda, ela se desgasta com isso. Ela deve ter uma idéia estratégica sobre as questões de fundo que importam para a educação, e de como a tecnologia pode ajudar ou não a realizar esses objetivos.
Numa sociedade como a brasileira, com várias carências, inclusive a formação dos professores, estrategicamente qual a maior contribuição que a tecnologia pode dar?
A tecnologia pode democratizar o acesso, o que é muito importante. Ainda há vastas zonas no Brasil que têm um acesso difícil à educação. Pode ajudar a melhorar a eficiência da educação; a aumentar os resultados por unidade de recursos, de inputs; a melhorar a qualidade da educação, oferecendo recursos mais diversos e construídos mais em favor dos alunos. E pode ajudar a eqüidade, o que é bem difícil e importante no Brasil. Nenhuma sociedade que produz iniqüidades, desigualdades, pode ser sustentável. A sociedade sustentável é aquela que combate as desigualdades, que consegue encontrar modos e tecnologias materiais e humanas que sejam capazes de resolver o problema da exclusão, o problema da apropriação por poucos, o problema da multidão que não tem acessos. O Brasil tem esse grande desafio à sua frente, e a tecnologia pode ajudar em todas essas dimensões: do acesso, da qualidade, da eficiência e da eqüidade.
O senhor menciona sempre o fato de a educação precisar ser significativa para o estudante e para o professor. Hoje, no Brasil, as luzes estão se voltando para o ensino médio, em razão de uma grande evasão. Qual caminho pode tornar essa etapa mais significativa para os estudantes?
Libertar em cada aluno o seu sonho e sua ambição.
Como se faz isso?
Em 1963, o senhor Martin Luther King disse "I have a dream". Isso mobilizou toda uma geração, a minha. Se o aluno do colégio não tem um sonho, uma ambição, dificilmente tem uma motivação, dificilmente constrói sentido. O sentido é construído em torno de uma visão do futuro, de uma intencionalidade, chamada de mente intencional, em torno de um sentido cultural, de missão, daquilo que quer fazer vida afora. E a escola tem de fazer sentido para isso. A escola, o currículo, o professor, os estudos. Portanto, faz parte da escola ajudar a orientar a libertar. Não é dar um sonho, pois cada um tem de construir seu próprio sonho. O sentido tem de ser construído por cada aluno, na exata medida em que é capaz de formular uma ambição para si. A falta de ambição faz-nos viver no rés do chão da vida, esse labirinto em que estamos enclausurados todos os dias. É preciso ser capaz de ascender no elevador da vida, encontrar horizontes mais vastos e perceber como os estudos e a educação são essenciais à realização dos sonhos e da missão de cada um.
Desse ponto de vista, a escola não deveria ter como missão ser um contraponto à velocidade em que vivemos fora dela?
Com certeza. A escola tem de educar para não sermos aprisionados à vertigem. O sentido da vida tem como parte integrante não deixar arrastar-se pelas conjunturas, ser autônomo, perceber que existem mensagens permanentes que nos rodeiam – publicitárias, políticas etc. – que não são verdadeiras. Toda escola tem de ser capaz de libertar o ser humano da prisão, do cárcere, da ignorância, do preconceito – para a construção do conceito e para a capacidade de ser autônomo, livre, independente e participante. Esse é o objetivo fundamental da educação.
Levamos às vezes uma vida inteira para perceber o sentido profundo de coisas com as quais convivemos muitos anos. Como o educador pode despertar o interesse do aluno para essas coisas quando há tantas outras que o fisgam pela instantaneidade?
Temos uma crise de educadores na sociedade. O educador é aquele que consegue acompanhar as viagens da alma, as viagens interiores de cada pessoa. Consegue acompanhar as metanóias, as conversões interiores que cada um vai fazendo ao longo da vida para encontrar o rumo, o caminho. Isso é complicado, porque implica disponibilidade para a escuta. Nenhum educador o é verdadeiramente se não escutar atentamente o seu educando – o seu filho, o seu aluno. É no ministério da escuta que se realiza a libertação do ser humano para o seu projeto educativo. É no ministério da fala, da intenção, que se realiza o projeto da prisão, da escravatura. Queremos projetar no outro aquilo que queremos que ele seja. Deixe que ele seja aquilo que ele é, o que pode ser. Portanto, essa é a noção fundamental. E perceber que no fundo há um mistério na educação. Sou professor há 30 anos e cada aluno que encontro pela vida afora – são milhares – não é senão a outra metade de mim próprio. Isto é, a minha realização como pessoa, como educador, é feita encontrando minha completude no outro que procuro ajudar a ser educado. Nenhum professor pode ser verdadeiramente professor sem ser pobre dos seus alunos. Quem é rico de si próprio está autocentrado. Quem é pobre do outro, está centrado no outro, alterocentrado. Isso é muito difícil, pois exige uma grande generosidade, a humildade de saber que o outro tem direitos e deveres também, e que o grande direito é ser o que é, e não aquilo que eu acho que ele deve ser.
O que o senhor acha da oposição entre as idéias de desescolarização e da utopia da sociedade educativa?
Vou contar uma história de um senhor europeu chamado Jean Monnet (1888-1979), que é um dos pais-fundadores da Europa. O continente estava completamente destruído pela guerra, pela beligerância, pela incapacidade de viver juntos – alemães contra ingleses, contra franceses, contra italianos. E Jean Monnet tinha essa utopia da construção européia. Um dia um jornalista perguntou a ele como ele era tão otimista. ‘Otimista não, sou determinado’, ele disse. O futuro não é aquilo que vai fatalmente acontecer, independentemente da minha vontade. É aquilo que a minha vontade como cidadão, a vontade do conjunto comunitário em que trabalho, vai fazer acontecer. Portanto, vamos fazer acontecer aquilo que é o futuro apropriado ao Brasil, a Portugal, ao mundo, pois essa é a vontade das pessoas. Um grande filósofo português chamado Leonardo Coimbra (1883-1936), que viveu no princípio do século 20, disse o seguinte: "o homem não é uma inutilidade num mundo já feito. Antes, é o obreiro de um mundo por fazer". É essa a nossa responsabilidade.
Até que ponto a ubiqüidade da internet nos aproxima dos totalitarismos que conhecemos?
Os totalitarismos existem sempre, e procuram instrumentalizar tudo a serviço de sua idéia de domínio do mundo e dos outros. A internet, como qualquer instrumento tecnológico, pode estar a serviço do totalitarismo ou a serviço da liberdade humana. Temos de vencer o totalitarismo, de lutar contra aquelas intenções que querem fazer à deriva da tecnologia para utilizá-la em propósitos totalitários. Apesar de tudo, hoje o mundo é mais livre do que o era sem internet. A internet é por definição um espaço livre, não tem dono. Um espaço em rede onde todos somos iguais, todos temos internet por igual. Todos podemos criar um avatar por igual no Second Life, podemos recriar-nos a nós próprios. A grande cidade moderna chama-se internet. Eu e você, com idéias completamente estapafúrdias, podemos criar um site e pôr lá o que pensamos. Ninguém tem uma restrição, se for dentro dos limites éticos, se não houver pornografia, limites normais da afirmação de idéias. É o espaço democrático por excelência, é o espaço da afirmação de opiniões. A tecnologia libertou a expressão das minorias na cidade moderna, ainda que corramos o risco da dominação lingüística, pois temos de afirmar línguas diferentes na internet, não pode ser apenas o inglês. O português que é uma grande língua de comunicação, com 220 milhões de falantes, tem de ser uma grande língua na internet. Temos de afirmar modos de ver o mundo, afirmar essa capacidade enorme de ver no outro a outra metade de mim próprio. Esse é o grande desafio da internet.