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Entrevistas

Do falado ao escrito

Lingüista discute os caminhos do ensino do português no Brasil

Publicado em 10/09/2011

por Redação revista Educação



Mais do que ferramenta da comunicação, o idioma é um meio pelo qual a pessoa se organiza e reflete. O fato de pensar em português e não por idéias puras mostra o poder do idioma, de acordo com o lingüista Ataliba Teixeira de Castilho, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "A modalidade falada é mais rica que sua versão escrita", diz ele.


Castilho é o organizador da
Gramática do Português Culto Falado no Brasil

, cujo primeiro volume (de cinco previstos) foi lançado recentemente (Ed. Unicamp, 552 págs., R$ 58). O projeto envolve o esforço de 32 pesquisadores de 12 universidades, desde 1988, e retoma outra pesquisa,
Norma Urbana Culta

(NURC), que entre 1970 e 1978 gravou 1.500 horas de falas em cinco capitais (cada hora corresponde a 40 páginas de transcrição).


A análise gramatical das gravações, no entanto, só foi realizada na
Gramática

. Nesta entrevista a
Luiz Costa Pereira Junior

e
Viviane Rowe

, Castilho fala sobre os resultados da pesquisa e os limites do ensino.




Por que uma gramática da fala?

Porque não dá para entender o idioma só pelo estudo da variedade escrita. A gramática que lançamos vai do texto à fonética. A tradicional, da fonética para a sentença, e pára por aí. Mas não dá para entender bem a sintaxe se não se parte do texto. A sentença só tem realidade no texto, onde foi criada. Não é uma entidade autônoma.




Qual a diferença em relação à gramática tradicional?

Nunca se fez gramática da oralidade. Parte-se da idéia de que devemos aprender gramática para saber escrever. Mas a tradicional nunca trata do texto, quando é preciso partir daquilo que, em tese, seria mais completo: o discurso. Depois é que posso descer a outros níveis, até o som, essa entidade mínima que já não é mais portadora de sentido. A gramática tradicional escolarizou nossa percepção sobre as línguas, como se essa disciplina tivesse um fim em si mesma. Nenhuma gramática limitada à oração tem tal autonomia. O texto, o discurso, é que tem. Falamos por texto. Lemos, pensamos, somos texto.




O que é preciso para tornar o ensino gramatical eficiente?

Levar o aluno a refletir sobre sua fala e escrita, como ponto de partida. Formular perguntas sobre as características do idioma, de forma sistematizada, assistindo o aluno na busca das respostas. Com o tempo, ele será levado a se apropriar de escritas mais elaboradas, o que é obrigação da escola. Ele precisará desse conhecimento para ir do seu mundo familiar para um maior, o da sociedade. Mas não pode começar desse ponto em seu percurso escolar. O engano nas aulas é colocar o ponto de chegada como de partida. Achar que o ensino tem a ver com o que está codificado e encerrado na gramática – a partir do que devemos fazer exercícios – significa afastar o aluno da reflexão. Devemos começar a prática escolar com aquele mundo lingüístico primeiro em que ele está envolvido.




Como um professor pode ensinar a entender a língua?

Invertendo o jogo. Se puser o aluno a indagar de forma sistemática, a aula não se limitará à exposição professoral. Será uma busca científica do aluno. No nível dele, é claro. Ele deve ser estimulado a buscar respostas a suas perguntas, em lugar de receber respostas a perguntas que não fez. Isso exige do professor um forte conhecimento lingüístico, pois há um programa pela frente no ano letivo e ele deve ter noção do rumo que toma. O que está por trás de uma gramática da fala é trocar a idéia de curso pela de percurso.





Uma gramática do falado permite o "percurso"?


Sim, justamente porque na oralidade encontramos intacto o processo de criação lingüística, quase invisível na escrita. Se o aluno fizer transcrição de entrevistas, os processos ficarão evidentes, facilitando a formulação de perguntas. O aluno pode comparar seus achados com os dos pesquisadores e cada resposta levará a mais perguntas. Ele será envolvido num raciocínio sem fim. A reflexão sobre a língua é isso: não tem fim. Nunca se vai dizer que se descreveu tudo. Esse é outro problema da gramática tradicional. Ela passa a impressão de que lá está tudo. A língua é mais complicada que isso. O interessante é mostrar essa complicação e como podemos nos movimentar em meio a ela. As pessoas acham o português chato porque lhes foram dadas respostas a perguntas que não fizeram.




Quais as grandes diferenças entre o culto e o popular?


Não é tão grande a distância. Há, é claro, pontos bem marcados na estrutura da língua em que existe diferença, como a concordância nominal e verbal. O culto faz uma concordância repetitiva, redundante. Já no registro popular, a aplicação da regra é mais econômica: marca só o primeiro elemento. Em "as revistas impressas", duplicamos a marcação do plural. No popular, "as revista impressa", só o primeiro elemento, o artigo, está marcado. Em outras línguas românicas, isso virou padrão culto. Em dado momento, o francês culto passou a pôr plural só no artigo, não em todas as formas. Incorporou a regra popular e hoje ninguém mais diz
les hommes bons

("os homens bons") e sim
les homme bon

("os homem bom"), mesmo que na escrita continuem anotados os "s" do plural.




Há outros fenômenos populares no português culto?

A idéia de que o verbo concorda com o sujeito nem sempre se aplica. Na linguagem culta, o sujeito concorda quando vem antes do verbo. Quando vem depois, sobretudo se entre o verbo e o sujeito aparecem várias expressões, não há concordância. Os entrevistados no Nurc [
modalidade culta oral, base para a gramática da fala

] com freqüência produzem orações como "Chegou, depois de muita espera e teimosia de minha parte, os números da revista que eu queria." Veja que não se diz "chegaram". Mesmo a pessoa culta já cancela a concordância, nesse caso. É um passo para a perda total da concordância marcada morfologicamente, como o inglês já faz.




Alterações ocorrem mais no sentido do popular para o culto do que o contrário?


Em geral, a linguagem popular é mais criativa. A pessoa não está pautada pela escola, que não freqüentou. Não tem a idéia de tradição. A pessoa culta é conservadora, pois herdeira de 6 mil anos de história. Mudamos menos a língua nessa variedade, pois nos sentimos patrulhados. As mudanças tendem a vir do popular, que em dado momento a classe culta aceitou.




O português culto não se confunde com o normativo?

O culto é uma variedade falada por uma classe social. As regras normativas são calcadas na observação de como essas pessoas falam e escrevem. O gramático não inventa. Observa os dados de língua e, quando suspeita que algo já começou a ser aceito, registra o fato sob a forma de regra. Veja o caso do "ele" como objeto direto ("vi ele"). Há 30 anos seria inaceitável. Mas você vê isso nas gravações do Nurc.




Sua gramática é, portanto, descritiva, e não normativa.


Exato. O descritivo é o ato de coletar dados de uma variedade, descrever os diferentes sistemas gramaticais, anotar o que os dados nos ensinam sobre como as palavras foram construídas, como estão organizadas numa sentença e como a sentença está articulada num raciocínio. É observar dados a partir de um elenco de perguntas que você fez. Uma gramática descritiva é um retrato, a partir do qual vou procurar as flutuações para uma mesma estrutura e verificar as situações sociais em que elas se aplicam. Uma gramática normativa recolhe o conjunto de variáveis e verifica qual a classe de maior prestígio social considera a melhor. Nesse momento, há uma decisão subjetiva; na descrição, há um processo objetivo. Na normativa, nós perguntamos sobre o que fica melhor, mais adequado, bonito. E pára-se por aí. Para um público acostumado a certos e errados, fica difícil aceitar outra idéia. É preciso ajudar as pessoas a verem que gramática é mais do que regras.




Se a escola deve ensinar o padrão, como o professor deve lidar com o preconceito pela língua?

Primeiro, a escola precisa deixar o padrão para o fim de cada curso, pondo no início a observação das variedades lingüísticas. O aluno precisa, é claro, ser informado que a sociedade exige o padrão. Nós nos julgamos, nos avaliamos o tempo todo. Se você quer ser bem avaliado, não pode escapar do padrão. Tem de optar por aquilo que foi chancelado pela classe que dita os padrões no país, não só na língua, mas na roupa, na vida, no pensamento. Ocorre que há cada vez menos expressões consideradas menores por preconceito. Muita coisa condenada tem freqüência de uso cada vez mais alta, principalmente porque a diferença lingüística entre uma classe e outra no Brasil não é, de fato, grande, e com isso deve diminuir ainda mais a quantidade de coisas condenadas. A condenação ainda não acabou, mas a sociedade brasileira está mais aberta à variedade. As próprias pessoas que fabricam os padrões já acolhem um maior número de expressões como padrão.




O que mudou?

A urbanização do país. Hoje, 80% da população mora na cidade. Se recuarmos a 1950, era o contrário. A urbanização intensa colocou em proximidade física as diferentes camadas que até então estavam separadas no espaço. O sujeito ignorante e analfabeto morava na roça. O escolarizado, na capital. Agora, que o pessoal da roça se mudou para a capital, as classes sociais tiveram maior contato, reduzindo o preconceito. Não o fez desaparecer. A urbanização fez as pessoas se aceitarem mais, passado o estranhamento inicial. Esse processo e a ascensão social dos operários mais qualificados permitiram eleger um presidente que não vinha das elites.




Temos um museu, 23 milhões de livros sobre português todo ano e até a Mangueira fará tributo ao idioma. O Brasil vive o seu "momento língua portuguesa"?

Acho que sim. O futuro da língua está no Brasil. Temos uma dinâmica social maior, e mais falantes. Esses fenômenos não devem estar ocorrendo ao acaso. Devem ser conseqüência da urbanização, da expansão das escolas, da tentativa de ensino universal, tudo isso está ocasionando mudanças na linguagem e na perspectiva das pessoas. Nos lugares em que isso ocorreu de forma plena, não há tanta preocupação de falar certo ou errado. Mesmo nos EUA, a diferença é entre o inglês do branco e o do negro. Entre brancos, entre negros, não se questionam o certo e o errado. Se isso ocorrer no Brasil, vamos nos concentrar no que importa, que é raciocinar sobre um fenômeno tão complexo como a linguagem, o maior produto do engenho humano.




É um passo enorme para a estrutura de ensino brasileira…

O objetivo da escola é formar o cidadão a falar de modo prestigioso. Mas a aula pode virar um lugar de problematização, não de transferência de achados feitos pelos gramáticos e lingüistas. Eles são os peritos, chegaram antes no pedaço. São profissionais, mas eu, aluno do fundamental ou do médio, posso pensar a minha língua. Posso fazer descrições e ver o que eles acham, se coincidem comigo, se perceberam coisas que não notei. Posso comparar o meu resultado com o do outro. É isso o que, acho, vai rolar nas escolas. É tarefa para a geração que tem hoje entre 30 e 40 anos, que dá aula hoje.

Autor

Redação revista Educação


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