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Entrevistas

Incluir os bebês é preciso

A pesquisadora Fúlvia Rosemberg alerta para a discriminação da faixa do 0 aos 3 anos, o que se reflete na falta de atendimento escolar a essas crianças

Publicado em 15/09/2014

por Camila Ploennes

 

Com mais de 40 anos dedicados a estudos sobre educação e crianças, a psicóloga, professora e pesquisadora Fúlvia Rosemberg é uma das principais referências em questões sobre educação infantil, políticas públicas, construção social da infância e relações de gênero, raça e idade do Brasil. Desde 2008 à frente de uma pesquisa a respeito dos discursos dos adultos sobre a posição social do bebê e de sua educação e cuidado na sociedade brasileira contemporânea, Fúlvia apresentou algumas de suas constatações durante a 35ª reunião anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), realizada em outubro, em Pernambuco. E fez um alerta: os bebês são um grupo social discriminado. Doutora em psicobiologia da infância pela Universidade de Paris e pós-doutora em políticas públicas e psicologia social pela Universidade René Descartes (França), a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora da Fundação Carlos Chagas (FCC) explica na entrevista a seguir os dados que apontam para essa discriminação etária, fala sobre a diferença entre os tratamentos dados aos bebês no âmbito público e no âmbito privado e afirma que avaliar a educação infantil – e não suas crianças – é uma necessidade.

Na apresentação de seu trabalho na Anped,a senhora afirmou que os bebês constituem um grupo social discriminado. De que forma isso acontece?
Não me refiro ao espaço privado e às relações interpessoais, mas ao espaço público. Não são os pais e mães quem discriminam os bebês. Individualmente, as pessoas adoram paparicá-los na rua, mesmo em detrimento da própria criança, sem pensar em como o contato com o corpo pode provocar algum contágio, por exemplo. No entanto, convido o leitor e a leitora a refletir, por exemplo, sobre quantos bebês veem diariamente no transporte coletivo, em parques, praças e ruas. O espaço público brasileiro, urbano, não é um espaço acolhedor para os bebês tanto quanto é para crianças maiores e adultos. Parto do princípio de que a sociedade é “adultocêntrica” e que os estudos sociais da infância e dos direitos da criança são modos de diminuir esse adultocentrismo. Ainda assim, quando se fala em estudos sociais da infância, fala-se da criança de 5 ou 6 anos para cima, que já anda, fala e tem certa autonomia. Ao pensar que a Convenção Internacional dos Direitos da Criança inovou porque garantiu os direitos de proteção e de liberdade, também está se falando sobre as crianças maiores. Afinal, não se sabe o que é liberdade quando se fala de bebês.

Como isso se reflete na educação infantil?
Pensando no sistema educacional e na educação infantil, a creche constitui a etapa mais desvalorizada no sistema educacional brasileiro. Mais do que discriminação de raça, econômica, rural e urbana, regional, a educação infantil faz discriminação de idade. Os microdados do Censo Demográfico do IBGE, de 2010, mostram que praticamente não há diferença entre brancos (51,2%) e negros (50,6%) no que diz respeito à frequência de acesso à educação infantil. Há diferença significativa entre a região Norte (40,5%), com a menor taxa, e Sudeste (54,7%), com a maior taxa do Brasil. O quartil mais rico das crianças também vai mais à escola (63,2%) do que o quartil mais pobre (45,1%), e o índice no espaço rural (41%) é aquém do índice no espaço urbano (52,9%). Mas nenhuma diferença é tão grande quanto a que se observa entre as taxas de frequência por faixas etárias. E é isso o que chamo de discriminação de idade. De 0 a 3 anos, a frequência é de 23,5%, enquanto é de 80,1% para a faixa entre 4 e 5 anos e de 95% para os 6 anos. É muito comum ouvirmos falar da pirâmide educacional brasileira, com uma base grande que vai se afunilando até chegar ao ensino médio. Mas ela não é exatamente uma pirâmide, porque as crianças de 0 a 3 anos já estão fora, como se não pertencessem ao sistema educacional. O formato de pirâmide acontece só se levarmos em conta as crianças a partir dos 7 anos. Ao incluir os menores nessa análise, particularmente as crianças de 0 a 3 anos, há um funil de entrada e um funil de saída.

Então a senhora considera que a educação infantil ainda está distante dos bebês?
Falar de educação infantil como se fosse algo homogêneo, de 0 a 5 ou de 0 a 6 anos, é uma mentira, porque o acesso das crianças de 0 a 3 anos, essencialmente as de 0 a 2 anos, ao sistema é absolutamente insignificante em relação ao conjunto da etapa. Portanto, quando dizemos que a educação infantil está se desenvolvendo, nós nos referimos particularmente à faixa dos 4 anos para cima.

Essa é uma característica brasileira?
Se o bebê fosse uma prioridade mundial ou nacional, nós já teríamos decifrado linguagens relacionadas, por exemplo, à dor e à fome. Há pesquisas que mostram a existência de variações do som no choro do bebê, que tem significados específicos conforme as situações. O mundo ocidental não investe em pesquisas sobre a linguagem do bebê; não em número suficiente para que nós, cidadãos comuns, tenhamos acesso. A mãe sabe que existe uma linguagem, mas ela também se equivoca. O bebê, as suas necessidades e os seus direitos se resumem hoje ao espaço do privado, à casa e ao meio familiar. No Núcleo de Pesquisa Relações de Gênero, Raça e Idade (Negri), que eu coordeno na PUC, estamos pesquisando o que o brasileiro entende por bebê, perguntando para mães e pais. Há um consenso de que essa etapa da vida vai até os 2 anos e que depois disso a criança, que já fala e anda, está menos frágil para o espaço público. Mas essa fragilidade não é só intrínseca à idade. É também uma vulnerabilidade estrutural, dependente das condições da sociedade. Se a nossa sociedade colocasse o bebê no centro, como etapa prioritária, nós não deixaríamos de modo nenhum haver mortalidade infantil por causa evitável, índice que praticamente não caiu de 2000 até 2005, por exemplo.

O que isso quer dizer em relação ao cuidado?
Um alto índice de mortes por causas evitáveis [que poderiam não ter ocorrido se houvesse prevenção, tratamento ou serviço de saúde efetivo] significa dizer que a sociedade está descuidando dos bebês como um grupo social. Se não está diminuindo, é porque as políticas públicas não estão funcionando ali, seja saneamento básico, seja atendimento hospitalar, da mãe e da criança. Há uma série de políticas públicas que beneficiaram mais as pessoas idosas, como a aposentadoria rural. Todo mundo tem o direito. As opções por políticas públicas são determinadas por barganhas sociais, dependem de negociações, e existem atores sociais mais fortes do que outros. A posição que o Brasil ocupa em expectativa de vida é melhor do que a posição do país em termos de mortalidade infantil, por mais que ela esteja caindo. Ou seja, a sociedade brasileira está dando mais atenção a outros momentos da vida.

O que melhorou nas últimas décadas?
Quando foi definida a lei do Fundeb, em 2006, muita mobilização foi necessária para incluir a creche e para que o valor fosse igual ao destinado à pré-escola. À frente da Coordenação de Educação Infantil (Coedi) do MEC, a professora Rita Coelho tem conseguido algumas melhorias. Antes, o custo da alimentação da merenda escolar para a creche era inferior ao custo da alimentação nos outros níveis, e não é mais assim. Não podemos ter o discurso da tragédia. Antes não havia sequer informação sobre a educação de crianças de 0 a 4 anos, o que teve início em 1995. Até os anos 2000, não se falava em qualidade. Hoje se fala, e existe alguma mobilização política, como o Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil.

Quais são as medidas necessárias mais urgentes para as crianças de 0 a 3 anos?
Eu considero que seja a melhoria da qualidade com equidade. No Brasil, hoje, o período de adaptação da criança à creche praticamente nem é tema de pesquisa. Ninguém leva isso a sério, e não há nenhuma política pública relacionada ao emprego dos pais. Teria de ser reconhecido legalmente, como é a licença-maternidade, o período em que aquela criança precisa de atenção especial dos pais para se adaptar. Mas isso não é objeto de pesquisa e debate. Há discussão sobre a obrigatoriedade da pré-escola a partir dos 4 anos, mas não sobre essas questões. Aliás, houve um erro de difusão da informação sobre a obrigatoriedade, que não significa universalização. A obrigação é da família de matricular e zelar pela frequência, e não do Estado de financiar e garantir seu funcionamento. Se a família não toma as providências, ela pode incorrer em abandono intelectual.

A senhora é coordenadora, no Brasil, do Programa Internacional de Bolsas de Pós-graduação da Fundação Ford/Fundação Carlos Chagas. Os estudos sobre os bebês são significativos?
Acabamos de fazer um levantamento das teses e dissertações na base de dados da Capes, que tinham o termo creche, e as áreas que se interessam pelo assunto são Educação, Psicologia, Serviço Social, Medicina e Nutrição. No Brasil, a creche não é objeto de discussão em comunicação, economia, arquitetura, urbanismo, antropologia, sociologia e história. Não é um tema nacional. E se você vai para os países escandinavos, por exemplo, esse é um tema nacional e está todo dia na mídia. O CNPq, a Capes e o MEC incentivam pesquisas sobre a mulher, o negro, os indígenas, mas não sobre o bebê, porque privatizamos o bebê. Ele é da família.

O MEC discute um modelo de avaliação da educação infantil. Como a senhora avalia essa proposta?
A proposta da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) da Presidência da República era a de aplicar teste nas crianças, mas há uma grande reação para que esse modelo não seja igual ao do ensino fundamental. Eu acredito que é preciso avaliar o sistema e não a criança.

A senhora considera que a avaliação dessa etapa pode ajudar o Brasil a ter um padrão básico de qualidade da educação infantil?
Pode, mas não se ficar no papel. Os critérios nós já temos. Todo ano o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) pergunta para as creches se têm banheiro, berçário, parquinho. E todo ano nós sabemos que não são todas que têm o básico. Mas não acredito que o problema seja só do governo. Eu acho que os movimentos sociais contemporâneos também não estão interessados nessa etapa da vida. Eles estão mais preocupados com o que chamamos de justiça de reconhecimento, política identitária, do que em justiça distributiva, de igualdade no que diz respeito ao acesso a bens materiais.

A senhora pode citar um exemplo de como se dá esse desinteresse dos movimentos sociais?
Acabei de analisar os dados do Censo Escolar 2010, e nele há diversas questões sobre as chamadas localizações diferenciadas: terras indígenas, quilombos e assentamentos da reforma agrária, por pressão dos respectivos movimentos sociais. O questionário do Inep é enorme. Sobre as condições de qualidade, ele é cheio de detalhes. Perguntam se há água filtrada e se é de poço e por aí afora. Há quase 30 anos eu analiso esses dados, que não continuam iguaizinhos, mas são parecidos. Há muita pergunta, mas não perguntas do tipo: a escola tem livro; tem brinquedo? Pergunta-se tem computador, mas não se tem livro e brinquedo. E, mesmo não perguntando se tem livro, questiona-se tem livro para atender aquela determinada população no que diz respeito à diversidade. Ou seja, há mais preocupação em responder ao movimento social e sua política identitária do que preocupação em saber se a instituição tem livro e brinquedo.

Qual sua visão sobre as metas do Plano Nacional de Educação para a educação infantil?
Não entendo por que acham normal existir uma meta para a creche diferente da pré-escola. A sociedade está propondo o objetivo de ter 100% da pré-escola até 2016 e de ter 50% de creche

*Entrevista publicada originalmente na edição 4 da revista EI – Educação Infantil

Autor

Camila Ploennes


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