Por Lilian Cristine Hübner e Ingrid Finger, da revista Neuroeducação
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O que é ser bilíngue ou multilíngue? Qual a melhor idade para aprender uma língua estrangeira? Existe uma relação entre inteligência e aprendizado de línguas? Aprender duas línguas ao mesmo tempo atrapalha uma à outra? Essas são apenas algumas das questões que vêm à tona nos debates sobre aquisição/aprendizagem e ensino bilíngue. Em um mundo globalizado, em que o acesso a bens acadêmicos e culturais muitas vezes passa pelo domínio e pelo uso de outra língua, o tema do bilinguismo infantil tem interessado cada vez mais pais, educadores e profissionais ligados à educação.
Estima-se que o número de crianças crescendo em ambientes bilíngues ou multilíngues no mundo hoje seja comparável ou até ultrapasse o número de crianças que crescem em um ambiente onde são expostas a somente uma língua na infância. Apesar disso, o bilinguismo infantil é ainda pouco compreendido e visto com enorme cautela por uns e com bastante preconceito por outros. Devido à falta de familiaridade e de conhecimento, pais e educadores muitas vezes têm dúvidas e temem consequências negativas a partir da exposição das crianças a duas línguas desde cedo. Essas preocupações estão particularmente presentes em contextos nos quais a grande maioria das crianças é exposta a somente uma língua na infância e os adultos percebem o monolinguismo como norma e o bilinguismo como o diferente, como ocorre no Brasil.
Todas as crianças são capazes de aprender duas línguas ou mais na infância, desde que contem com suficiente exposição a elas em contextos linguísticos variados e ricos. Devido à plasticidade do cérebro infantil, que, dito de forma simplificada, pode ser definida como a capacidade de aprender e se adaptar a novas situações, qualquer criança, dentro dos padrões da normalidade cognitiva e respeitadas as características de sua idade, pode aprender a(s) língua(s) que lhe é/são ensinada(s). Um aspecto interessante dessa discussão é que todos parecem ter opiniões, intuições, hipóteses ou crenças sobre o bilinguismo e sobre possíveis impactos que o conhecimento de mais de uma língua possa ter na vida de uma pessoa. Muitas vezes, entretanto, essas opiniões, intuições, hipóteses ou crenças não são construídas com base em evidência científica, mas sim em percepções e vivências pessoais, além de, infelizmente e com grande frequência, serem alimentadas por falta de informações adequadas e repletas de preconceito linguístico. A seguir, alguns mitos sobre o bilinguismo, analisados e discutidos com base nos resultados de estudos na área.
Mito 1: “Aprender duas línguas ao mesmo tempo pode prejudicar o desenvolvimento de ambas”
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O desenvolvimento da linguagem pela criança é um processo extremamente complexo. Apesar de toda essa complexidade, o que se observa é que todas as crianças passam por estágios semelhantes, aproximadamente no mesmo período da vida, independentemente da língua ou das línguas que estão adquirindo. Ou seja, as crianças balbuciam a partir dos 6 meses de idade, reconhecem os sons distintivos de seu ambiente linguístico por volta dos 10 meses, produzem as primeiras palavras entre o primeiro e o segundo ano de vida, iniciam as primeiras combinações de palavras já antes do final do segundo ano e, por volta do terceiro ano, começam a produzir frases estruturadas. E isso é o que ocorre também com crianças que são expostas a mais de uma língua na primeira infância. Elas passam pelos mesmos processos e estágios de aquisição da linguagem e tornam-se fluentes nas suas línguas maternas, desde que haja exposição e interação com adultos ou crianças mais velhas em quantidade e qualidade suficiente, aproximadamente no mesmo período. Em outras palavras, dentro do mesmo período de tempo que uma criança monolíngue leva para adquirir uma língua, as crianças bilíngues adquirem duas línguas e se tornam capazes de usá-las com propriedade e naturalidade, nas situações cotidianas mais diversas.
Uma evidência interessante nesse sentido origina-se nas pesquisas que analisam o processo de aquisição da língua de sinais em crianças surdas. Os estudos têm demonstrado que elas passam pelos mesmos estágios de desenvolvimento da linguagem que as crianças ouvintes, mais ou menos no mesmo período de vida. O balbucio manual silábico, que caracteriza esse estágio da aquisição da linguagem em bebês surdos, apresenta combinações que fazem parte do sistema fonético das línguas de sinais. Estudos comprovam que os bebês surdos e os ouvintes apresentam um desenvolvimento paralelo do balbucio oral e do balbucio manual, mas em determinado momento passam a desenvolver somente o balbucio da sua modalidade de língua, ou seja, o balbucio manual no caso das crianças surdas, enquanto os bebês ouvintes se concentram no balbucio oral.
É importante lembrar que existe grande variabilidade individual no processo de aquisição da linguagem e que algumas crianças adquirem as primeiras palavras ou são capazes de construir frases mais complexas muito antes de outras. Diferenças na velocidade com a qual as crianças atravessam esses processos não necessariamente significam atraso no desenvolvimento linguístico. As mesmas diferenças individuais também caracterizam o desenvolvimento de crianças bilíngues, que passam por estágios semelhantes nas suas duas línguas, e o padrão de desenvolvimento linguístico de crianças bilíngues vai depender do tipo e da qualidade da exposição à linguagem a que elas têm acesso.
Mito 2: “Confunde a criança”
Ao contrário de confundir, a possibilidade de aprender duas (ou mais) línguas ao mesmo tempo, na verdade, propicia à criança uma experiência cognitiva muito rica. Nesse processo, ela se torna capaz de organizar a estrutura linguística de cada uma delas, em termos de regras de uso e de significados, de modo a se comunicar perfeitamente em uma e em outra, mesmo que as línguas tenham estruturas bem diferentes, como, por exemplo, o inglês e o português brasileiro. É muito comum, no entanto, que, principalmente em fases iniciais de aquisição, em que as estruturas de regras das línguas e o vocabulário ainda estejam em formação, a criança misture línguas quando em contexto bilíngue (isto é, quando conversando com uma pessoa que, assim como ela, compartilhe as duas línguas). Ela o faz para compensar a falta de conhecimento na língua-alvo, utilizando-se de palavras que conhece melhor na outra língua. Essa atitude demonstra o interesse da criança em se comunicar e ser compreendida, usando os recursos de que dispõe. À medida que a proficiência vai aumentando, ela fará cada vez menos uso da transferência de uma língua para a outra. No entanto, a inserção de uma palavra de uma língua na outra (language mixing – mistura de línguas) e a troca de uma língua para outra (language switching – troca de línguas) é algo que sempre caracterizará a fala bilíngue, mesmo na idade adulta. Esses recursos são comuns entre falantes bilíngues de qualquer faixa etária que compartilham as mesmas línguas, como recurso pragmático. Em outras palavras, são usados para agilizar a fala, para causar algum impacto (por exemplo, algumas palavras em dada língua parecem representar melhor o que queremos dizer, por isso as escolhemos), ou ainda para causar algum efeito de humor. Em suma, o fato de a criança misturar as línguas ao usá-las não significa que uma língua está atrapalhando a outra.
Mito 3: “Só é bilíngue quem aprendeu as duas línguas simultaneamente na infância”
Este é um dos mitos mais comuns e enraizados entre as pessoas. Talvez sua origem esteja no conceito ou mito do “falante ideal”. Segundo esse (pre)conceito, um falante ideal seria aquele padrão ideal do falante nativo. No entanto, como seria o modelo de falante nativo, por exemplo, do português brasileiro? Seria aquele que domina a norma culta? Basta olharmos à nossa volta para percebermos que as pessoas “comuns” apresentam construções linguísticas que se desviam da norma culta e ainda assim se comunicam de forma eficiente. Ou seja, mesmo entre monolíngues percebem-se usos não cultos da língua. No caso específico dos bilíngues, ocorre uma evolução em termos de proficiência linguística. Quanto mais a pessoa for exposta a modelos linguísticos, da norma culta, padrão, de graus de coloquialidade variada, e interagir na segunda língua, maior será a sua chance de se tornar mais e mais proficiente. Essa proficiência pode alcançar níveis muito altos, de modo a tornar a pessoa proficiente, eficiente na comunicação, independentemente da idade em que tenha começado a adquirir a língua. Assim, atualmente, prefere-se usar as expressões “bilíngue menos proficiente” ou “mais proficiente”, dependendo no seu nível de habilidade linguística de comunicação, ou seja, do seu grau de eficácia em se comunicar e se fazer ser entendido. O grau de alcance de proficiência dependerá da qualidade e quantidade de exposição, bem como de fatores individuais como a motivação para aprender e a busca constante por situações de uso da língua. Algumas pessoas, assim, poderão desenvolver uma habilidade maior em uma ou mais competências linguísticas (fala, escrita, leitura ou compreensão oral), dependendo do enfoque dado para sua aquisição.
Mito 4: “Expor as crianças a uma língua estrangeira desde cedo na escola pode prejudicá-las”
Crianças que não apresentam problemas cognitivos demonstram grande facilidade para novas aprendizagens, o que inclui a aprendizagem de outras línguas, uma vez que, como já mencionado, encontram-se num período de grande plasticidade cerebral. Por isso, quanto mais cedo a criança for exposta a outras línguas, mais facilidade terá para aprendê-las, desde que as condições de exposição sejam também favoráveis. O que se sabe atualmente é que a idade inicial de aquisição é apenas um dos fatores que determinam o nível de proficiência a ser alcançado pelo falante e, na maioria das vezes, não parece ser o mais determinante. Entre esses fatores encontram-se a qualidade e a quantidade de exposição, a frequência de uso das línguas, a motivação e a necessidade para empregá-las, bem como o quão recente é o uso (nesse caso, por exemplo, enquadram-se as pessoas que eram muito fluentes em dada língua, mas que, por não continuarem usando essa língua, tornaram-se bem menos fluentes). Além disso, adolescentes e adultos podem se valer do conhecimento metalinguístico adquirido em sua língua materna para fazer associações ao adquirirem uma segunda língua. Portanto, aprender uma língua cedo não necessariamente é sinônimo de alcance de alta proficiência, do mesmo modo que aprender uma língua na adolescência ou fase adulta não é sinônimo de estar fadado ao insucesso quanto ao alcance de uma alta proficiência na língua ou existência de sotaque.
Mito 5: “A aquisição precoce de uma segunda ‘aumenta’ a ‘inteligência’”
Na mesma linha dessa crença, poderia se acrescentar a de que “crianças ‘inteligentes’ têm mais facilidade de aprender línguas”. Testes utilizados para avaliação da inteligência são limitados para testar todas as dimensões de construto complexo e multifatorial como a inteligência. Algumas pesquisas têm trazido evidências científicas de que crianças bilíngues, que usam as duas (ou mais) línguas com frequência e já atingiram certo nível de proficiência em ambas, demonstram vantagens cognitivas em relação às monolíngues. Algumas dessas vantagens foram percebidas em termos de habilidade metalinguística e de funções executivas. Em relação à metalinguagem, a capacidade de refletir sobre a linguagem usando a própria linguagem, os estudos têm mostrado que muitas crianças bilíngues possuem habilidades metalinguísticas mais avançadas do que as monolíngues. As funções executivas, por sua vez, representam um conjunto de processos cognitivos usados para direcionar comportamentos a metas, planejar, monitorar, avaliar e executar alguma tarefa. No que se refere ao bilinguismo infantil, pesquisadores verificaram que as crianças bilíngues demonstram maior capacidade de inibição, ou seja, de isolar um estímulo distrator para manter o foco de atenção, bem como de flexibilidade cognitiva – agilidade na troca de perspectiva sobre como resolver uma tarefa –, em comparação com monolíngues da mesma idade. Isso se daria pelo fato de as crianças estarem constantemente monitorando o uso das línguas de acordo com o contexto de fala e com o interlocutor, o que desencadearia essa vantagem cognitiva. A presença dessas e de outras vantagens cognitivas nem sempre é evidente em todos os estudos, até mesmo pela variedade dos perfis de bilíngues investigados ou pelo uso de tarefas que não mensuram exatamente os mesmos construtos, e por isso devem ser mais bem investigadas.
Logo, a aquisição/aprendizagem concomitante de duas línguas não atrapalha o desenvolvimento linguístico ou cognitivo da criança, e o que muitas vezes pode ser inicialmente percebido como confusão é uma característica normal do processo de desenvolvimento da linguagem e também caracteriza o uso da linguagem em bilíngues adultos, o uso de mais de uma língua em contextos comunicativos em que isso é aceito. Além disso, os bilíngues podem aprender suas línguas em qualquer momento da vida, e o nível de proficiência adquirido dependerá de vários fatores, não só da idade inicial.Ainda, ao invés de prejuízos cognitivos, as pesquisas indicam haver benefícios cognitivos advindos do bilinguismo, que parecem repercutir ao longo da vida do bilíngue, dando-lhe reservas cognitivas. Estudos mais conclusivos continuam sendo desenvolvidos no intuito de replicar e refinar essas vantagens. Ainda, inquestionável é o fato de que aprender um novo código linguístico, exercitar a atenção, a memória, ampliar o repertório de vocabulário, num ambiente de interação social e comunicativa, são ganhos valiosos para a criança. Aprender uma língua é também aprender a cultura a ela associada, o que amplia os horizontes da criança, fazendo-a ver o mundo sob perspectivas diferentes, incorporando aqueles valores associados a outra cultura, de modo a desenvolver menos pré-julgamentos, menos preconceitos, aceitando as diferenças. Para seu crescimento afetivo, social e cognitivo, isso é incomensurável. É importante que as decisões pedagógicas que norteiam o ensino de línguas no Brasil possam ser mais consistentes e baseadas em evidência científica, e não em mitos e crenças.
Leituras sugeridas
> Exame das funções executivas. L. Malloy-Diniz e outros, em Avaliação neuropsicológica. Artmed, 2010.
> The development of language. M. Barrett (ed.). Psychology Press, 1999.
> Cognitive and linguistic processing in the bilingual mind. E. Bialystok e F. Craik, em Current Directions in Psychological Science, vol. 19, págs. 19-23, 2010.
> Attention and inhibition in bilingual children: evidence from the dimensional change card sort task. E. Bialystok e M. Martin, em Developmental Science, vol. 7, págs. 325-339, 2004.
> Bilingual experience and executive functioning in young children. S. M. Carlson e A. Meltzoff, em Developmental Science, vol. 11, no 2, págs. 282-298, 2008.
> The effects of bilingualism on toddlers’ executive functioning. D. Poulin-Dubois e outros, em Journal of Experimental Child Psychology, vol. 1, págs. 1- 13, 2011.