NOTÍCIA

Edição 236

Pedagoga e psicanalista apostaram em experiências educativas libertárias no início do século 20

Sob forte influência de ideais comunitários, Maria Montessori e Anna Freud buscaram aplicar métodos de ensino que davam mais liberdade para as crianças

Publicado em 10/03/2017

por Myriam Chinalli

Maria Montessori Maria Montessori em meio a crianças | © Reprodução

Maria Montessori em meio a crianças

Maria Montessori em meio a crianças | © Reprodução

A partir do início do século 20, ocorreram diversas experiências pedagógicas que buscavam alternativas diferentes da pedagogia tradicional. Muitas dessas recentes instituições se alinhavam com as ideias marxistas e freudianas, acolhendo crianças pobres, muitas das quais eram vítimas de guerras e se encontravam privadas da convivência com suas famílias. A revolução comunista, ocorrida na Rússia, em 1917, também influenciava as ideias pedagógicas, que idealizavam um ser humano mais inteligente e solidário e uma vida social mais comunitária.

A médica e pedagoga Maria Mon­tessori (1870-1952) começou a aplicar seus métodos educativos para jardins de infância em 1906, nos bairros populares de Roma, onde as mulheres trabalhavam. No ano seguinte, fundou a primeira Casa dei Bambini (Casa das Crianças). Seu método, que consistia em deixar a criança livre para aprender por si mesma e sem constrangimentos, foi a origem de muitas experiências similares, de inspiração psicanalítica ou não.
Foi na Escola Montessori de Viena, a Haus der Kinder, que Anna Freud se iniciou na pedagogia, como professora de crianças. Em 1937, Anna criou a sua nursery (que incluía berçário e creche), destinada às crianças pequenas, e obedecendo ao modelo Montessori.
Também o filósofo e psicanalista Bruno Bettelheim (1903-1990) – sob a influência de sua esposa, discípula de Maria Montessori – criou a Escola Ortogênica de Chicago, que acolhia crianças classificadas como autistas. Essa escola esteve sob a direção do Dr. B., como era conhecido, durante 30 anos.
Na Rússia, a pedagoga e psicanalista Vera Schmidt (1889-1937) criou em Moscou, em 1923, uma casa pedagógica, o Lar Experimental para Crianças, que buscava praticar o que ficou conhecido como “freudo-marxismo”. Cerca de trinta crianças, filhas de dirigentes e funcionários do Partido Comunista, foram acolhidas ali, para serem educadas segundo métodos que combinavam os princípios do marxismo e os da psicanálise.
Depois da revolução de outubro de 1917, pedagogos e psicólogos criaram na Rússia um novo termo – a “pedologia” – para designar uma “ciência da infância” que almejava criar um “novo homem” soviético. No entanto, entre 1924 e 1930, freudo-marxistas e anti-freudianos travaram intensos debates, conforme endureceram as diretrizes gerais do comunismo, que passou a seguir as diretrizes de Stálin. Então, por decisão do Partido Comunista soviético, em 4 de julho de 1936, a pedologia foi condenada como “desvio” e foram extintas quaisquer tentativas de sua aplicação prática.
Mas não só na esfera política ocorreram resistências às ideias libertárias na educação. Esses novos ideais pedagógicos, que buscavam estimular ora a  liberdade individual ora a liberação social também eram debatidos nas sociedades de psicanálise, que passaram a se formar em diversas cidades europeias a partir do início do século 20. Discutia-se muito a maneira de tratar o Complexo de Édipo (teorizado por Freud) no interior de uma educação de tipo individual ou de tipo coletivo. Em geral, as posições dos dirigentes dessas associações nascentes eram conservadoras, dando-se preferência a experiências sem grandes riscos ou excessos.
Representante maior do pensamento tradicional da primeira geração da psicanálise, Anna Freud oscilou entre a busca de experiências pessoais e comunitárias libertárias, ao lado de um pensamento adaptacionista e conservador.

Pedagogia psicanalítica

Única dos filhos de Freud a participar dos círculos psicanalíticos, Anna Freud exerceu a profissão de professora primária durante toda a Primeira Guerra Mundial – exatamente de 1914 a 1920. No entanto, ao longo do tempo, abandonou essa profissão e transformou-se em discípula, confidente e enfermeira do pai. Essa posição provocou intensos questionamentos no movimento psicanalítico, mas em nada alterou o lugar de representante das ideias freudianas que ela ocupou até o final de sua vida. Some-se a esses questionamentos o fato de não se ter casado, mantendo uma relação íntima com a norte-americana Dorothy Burlingham desde 1925. Anna e Dorothy se dedicaram à educação dos quatro filhos do primeiro casamento da norte-americana, que era uma rica herdeira das lojas Tiffany. Anna desempenhou o papel de analista e de mãe para seus filhos. Após a morte de Freud, em 1939, Anna, Dorothy e seus filhos passaram a morar na mesma rua, em casas vizinhas em Londres. Alguns as acusavam de lesbianismo, o que Anna considerava uma extrema injúria. Em várias ocasiões, ela afirmou que a homossexualidade era uma doença, ao contrário do que seu pai acreditava. O fato é que Dorothy foi tratada como membro da família Freud, sendo Anna e Dorothy enterradas no mesmo túmulo, lado a lado, próximas do próprio Freud.
Foi como psicanalista de crianças que Anna apresentou seu primeiro trabalho, em 1922, intitulado “Fantasias e devaneios diurnos de uma criança espancada”. Ao lado de sua produção teórica, em sua maior parte voltada ao desenvolvimento da criança e do adolescente, foi assumindo responsabilidades institucionais que fizeram dela a grande representante do “pensamento oficial” vienense, num período em que sua rival Melanie Klein (1882-1960) formulava em Londres a grande revisão teórica da obra freudiana. Até o final da vida dessas duas mulheres não houve qualquer possibilidade de entendimento entre elas.
Cercada de notáveis discípulos de Freud da primeira geração (que depois se tornaram quase completamente desconhecidos, como Bernfeld, Aichoirn e Hoffer), Anna criou em 1925 o “Seminário de Crianças”, com o objetivo de formar terapeutas capazes de aplicar os princípios da psicanálise à educação das crianças.
Com o psicanalista austro-americano Erik Erikson e outros colaboradores, criou uma escola especial, frequentada por crianças cujos pais se analisavam. Segundo depoimentos de alguns pais, essa escola consistia numa experiência “progressiva e elitista, privilegiada, muito promissora, inspirada e animada por um ideal de humanidade mais puro e sincero, difundindo-se ali um autêntico sentido de comunidade”.
Anna considerava que uma criança era frágil demais para ser submetida a uma verdadeira análise, com exploração do inconsciente. Defendia que o tratamento deveria se dar sob responsabilidade da família e dos parentes, e sob a tutela das instituições educativas. Segundo ela, o Complexo de Édipo não devia ser examinado muito profundamente na criança. Na teoria de Anna, a prioridade da relação da criança era com o pai – e não com a mãe, ao contrário do que afirmava Melanie Klein.
Em 1937, ainda vivendo na Áustria, inspirada pelas experiências de Maria Montessori na Itália, Anna criou uma espécie de abrigo para crianças pobres, ao qual deu o nome de Jackson Nursery. O abrigo foi fechado pelos nazistas.
Obrigada a emigrar com a família para Londres devido à perseguição nazista, em 1938, enfrentou diversos conflitos teóricos com a escola psicanalítica inglesa, fortemente influenciada pelas ideias de Melanie Klein. Mas, na América do Norte, suas obras foram muito bem recebidas. Em Londres prosseguiu com suas atividades em favor das crianças pequenas, criando as Hampstead Nurseries, inspirada por sua experiência anterior em Viena.
Em 1952, sempre com o apoio de Dorothy, fundou a Hampstead Child Therapy Clinic, centro de terapia e pesquisas psicanalíticas, onde aplicou suas teorias em estreita colaboração com os pais das crianças atendidas.
Anna Freud morreu em Londres, em 1982, tendo reconhecidos seu devotamento, sua generosidade e seu senso de fidelidade.


Psicanálise e crianças, segundo Anna Freud

Anna Freud e Sigmund Freud

Anna Freud e o pai, Sigmund Freud | © Reprodução

 
– A análise de uma criança é completamente diferente da análise de um adulto, ao contrário do que ensinava Melanie Klein.
– A criança não é autônoma em relação aos pais, sendo, por isso, necessário incluir os pais em seu tratamento.
– A análise tem como principal objetivo o fortalecimento do ego do paciente, o que implica uma postura bem diretiva por parte do analista.
– Nas crianças, as patologias não são muito severas, em função de elas ainda estarem em fase de desenvolvimento.
– A criança deve ser conscientizada de seus “problemas”, para que aceite mais prontamente o auxílio do analista.
– O analista deve passar por um treino técnico cuidadoso para diferenciar seu papel do dos pais da criança.
– O analista deve buscar o diálogo com os educadores da criança, sempre que necessário.
– O analista deve ser também um educador, tendo a responsabilidade de modificar a relação da criança com seus pais, à medida que lhe fornece novas impressões para lidar com as imposições externas.
– O analista deve levar em conta não apenas as questões internas do paciente, mas também as forças externas que pressionam a criança no dia a dia.
– Deve-se evitar a todo custo a transferência negativa da criança para com o analista, fazendo-se todos os esforços para dissolvê-la e recobrar os afetos positivos com a criança.
Saiba mais
> O tratamento psicanalítico de crianças, de Anna Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1971.

Autor

Myriam Chinalli


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