NOTÍCIA
Filósofo faz duras críticas à política educacional do atual governo e defende o exercício do pensamento crítico na sala de aula
Publicado em 28/06/2019
Assim que o novo ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciou a intenção de abater a chumbo grosso os já combalidos orçamentos dos cursos e pesquisas de filosofia e sociologia das universidades e institutos federais do país, surgiu a necessidade de pedir a um representante graduado dessas áreas uma análise dessas propostas. Educação foi ouvir o paulistano Ruy Fausto – e o peso de seu currículo justifica plenamente a escolha.
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Filósofo e advogado pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em Filosofia pela Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), livre-docente e professor emérito também da USP, integrante do corpo editorial dos Cadernos de Ética e Filosofia Política, escritor indicado para o Prêmio Jabuti de Humanidades, Fausto é uma das vozes mais respeitadas e requisitadas do país em sua área. Nesta entrevista, ele não economiza críticas à confusão em que o MEC foi envolvido nos primeiros meses do novo governo e à própria gestão Bolsonaro. Confira:
Jamais vi coisa semelhante. Há sempre alguma confusão no início dos governos, mas o que se tem agora é da ordem do caos, se podemos nos expressar dessa forma paradoxal. Medidas estapafúrdias se multiplicam, algumas anuladas em benefício de outras ainda piores. Um desfile de personagens exóticos a quem se entrega as alavancas do poder. Do governo Kennedy, dizia-se que reunia the best and the brightest, os melhores e os mais brilhantes. Aqui, com Bolsonaro, se tem, ao contrário, os piores e os mais obtusos. Dois ministros se sucederam, um pior do que outro, e o que fizeram até aqui foi simplesmente desastroso.
O governo se apoia sob uma porção de grupos, mas o dominante é o núcleo fanático composto pelo próprio Bolsonaro, seus filhos e Olavo de Carvalho. Há no MEC, como em outros setores, uma disputa entre esse grupo e o dos militares com postos no poder. Há também outros setores com influência no MEC, como os evangélicos, além dos quadros técnicos, que continuam subsistindo.
O anúncio da redução de verbas para as universidades onde reinaria baderna; a ampliação da medida para as outras; a ameaça de restrição de recursos para cursos de filosofia e sociologia e a pesquisa ligada a eles; e o corte das bolsas, não só as das ciências humanas e filosofia, o que já seria um grande erro. Antes disso, a desastrosa e ilegal tentativa de obrigar alunos a repetir, cantando, frases da campanha de Bolsonaro, com recomendação de que o espetáculo fosse filmado e enviado ao ministério. E ainda as declarações de ministros que parecem mais discursos de propaganda de chefes de Estado no tempo da guerra fria, e também a incitação ao controle policialesco dos professores através da manipulação dos alunos.
Não nos enganemos: estamos diante de uma ofensiva contra as instituições democráticas. Bolsonaro, seus filhos, seu ideólogo e os acólitos de todos eles são alérgicos a democracia. Seu projeto é o de transformar o Brasil em algo da ordem da atual Hungria ou da Polônia. Vejo com prazer um número importante de jornalistas, intelectuais e universitários que se situam na centro-direita, ou mesmo na direita, convencidos de que estamos em um cenário que ameaça seriamente a democracia no Brasil.
Verdade. Há uma querela – senão ruptura – entre boa parte dos militares que participam do governo, incluindo o vice-presidente, general da reserva Hamilton Mourão, e o núcleo bolsonariano-olavista. Fica evidente a divergência entre o núcleo de fanáticos que quer a “revolução conservadora” e militares, que, aparentemente, não desejam ruptura da ordem democrática.
Exatamente, pois os militares se ilustraram como os protagonistas de um governo ditatorial que torturou e matou muita gente. Só que, desde pelo menos os idos dos anos 1960 e 1970, houve mais de uma ala dentro das forças armadas. Uma parte aceitou a democratização. Outra desejava não apenas manter, mas radicalizar a ditadura. O bolsonarismo-olavismo se identifica explicitamente com esta última, a das forças mais radicais, que se opôs, pela violência, à abertura final.
Não nos esqueçamos: essa gente não apenas torturou e matou, mas preparava um grande massacre, que só não ocorreu por circunstâncias mais ou menos fortuitas ou individuais, como a explosão de uma bomba nas mãos de terroristas de farda e a delação corajosa da conspiração criminosa por um militar honrado que pagou caro por sua coragem. As forças dominantes no atual poder político saúdam expressamente o que se chamou de “porão da ditadura militar”. E, como no passado, enfrentam a oposição de um setor considerável das forças armadas que se opõe a essa aventura.
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Sinceramente? Não teria sentido buscar um ou outro micro acerto em meio a esse desastre. O dito “novo regime” institui-se graças a um “terror informático” – que continua.
Nunca vi coisa parecida. Comentei a cantoria do hino. Foi uma mistura de primarismo, ultrarreacionarismo, prepotência, ignorância e infantilidade. O coquetel explodiu na mão dele. Ele acabou se indispondo com o próprio padrinho e, em parte por isso, foi catapultado. Só que no lugar dele entrou um outro da mesma farinha.
Uma das principais características desse governo, talvez a principal, é a mediocridade extrema dos seus representantes. Tem-se a impressão de que catam a dedo os mais medíocres. Não sei nada dos trabalhos desse senhor – e ninguém sabe, provavelmente porque eles não têm nenhuma relevância. Quanto às declarações e atitudes, examinei algumas das primeiras, como a ilustração que ele fez dos seus atos utilizando barras de chocolate. Seria risível, não fosse trágico.
Tiveram um enorme progresso quantitativo e qualitativo nas últimas décadas. O progresso no último meio século foi notável. As melhores universidades brasileiras têm hoje um nível que não é inferior ao das melhores europeias. Não é pouca coisa. E é isso que os Vélez e Weintraubs da vida querem destruir.
Foram notoriamente arbitrários e injustificáveis. Basta ver os motivos alegados: baderna, gente “pelada” no campus, essas coisas. Quanto à falta de recursos, nunca é demais lembrar que a legislação tributária brasileira é brutalmente injusta. A alíquota máxima do imposto de renda é a mesma para gente que dispõe de recursos muito desiguais. Nos principais países da Europa, a lei reconhece pelo menos mais dois níveis de taxação. Uma reforma tributária – que fosse verdadeira, e não contrarreforma – geraria recursos consideráveis. Poderiam seguir caminhos como esse. Mesmo sem a reforma, é falso, puro pretexto desonesto, o argumento de que o desenvolvimento do fundamental e do médio exige o sacrifício das universidades. A dotação vem de fontes diferentes.
Prefiro não me estender muito a propósito desse senhor. Já existe um número importante de textos críticos a respeito dele. De minha parte, creio que escrevi o suficiente. Sem dúvida, num primeiro momento, um trabalho de análise crítica dos seus escritos e declarações era necessário, mas, na situação atual, é preciso se concentrar no mais importante. Mas que a pessoa que hoje ocupa a presidência dependa da palavra de uma espécie de guru, ainda por cima domiciliado no exterior, para fazer nomeações tão importantes como as dos ministros da Educação e das Relações Exteriores, é realmente estranho e preocupante.
Não se trata apenas da nomeação de ministros, mas também dos quadros dos ministérios. E quando uma nomeação se revela infeliz no entender do próprio presidente, dá-se uma segunda chance a quem de “direito” e vem a segunda escolha, normalmente ainda mais desastrosa. Com isso, o governo Bolsonaro não enfraquece e desmoraliza apenas a si próprio, mas também as instituições. O resultado é que, hoje, o Brasil é objeto de preocupação ou de ironia por parte da opinião pública mundial.
O decisão e o argumento são a tal ponto primários que é difícil discutir. O ministro nos descreve uma tragédia: um modesto agricultor conseguiu assegurar ao filho o ingresso numa universidade, mas que desgraça: o filho virou antropólogo. Uma mistura de atraso, reacionarismo, ignorância do país, dos homens, do mundo e de tudo mais. Uma barbárie.
Elas nos ensinam sobre o mundo, incluindo o nosso país. Além disso – coisa muito importante – formam o espírito crítico. Precisamos de sociólogos e de filósofos que analisem muitas coisas, e em primeiro lugar o Brasil, que nos forneçam análises e dados rigorosos sobre o que se passa entre nós. Mas, acima de tudo, precisamos de gente com espírito crítico e lucidez suficiente, entre outras coisas, para garantir a democracia. Ela corre risco. Nesse sentido, explica-se bem que aqueles que planejam liquidar o regime democrático queiram asfixiar o ensino da sociologia e da filosofia e a pesquisa e a reflexão nas duas áreas. Querem gente com mente embotada, mal-armada intelectualmente, suscetível de aceitar as enormidades que eles propõem no quadro de sua filosofia obscurantista e reacionária.
Há tudo isso: vingança, ressentimento, preconceitos morais e ideológicos, tudo reunido. Talvez haja também interesse econômico: promove-se certo ensino universitário privado, ao qual, pelo que se diz, está ligado um familiar de um dos ministros. Se esse elemento também estiver presente, completa-se a ciranda de iniquidades. De um modo ou de outro, a universidade está ameaçada e é preciso defendê-la por todos os meios.
É um enorme sofisma para o que representa, na realidade, o projeto de uma escola “com partido”. Divulgou-se a lenda de um ensino superpolitizado e ideologizado. Não posso garantir que isso não aconteça em algum caso individual – e lamentável –, mas é falso que seja o caso geral ou que aconteça em grande escala. Mesmo se isso ocorresse, a solução não seria incitar os alunos a que filmem os professores. Um procedimento perigoso, que liquida a liberdade do educador, polui as relações entre alunos e professores e também entre os próprios estudantes.
Dizem alguns que se o mestre for “imparcial” não terá nada a temer. Ilusório. Basta, por exemplo, que um professor de história chame – como deve chamar – a tomada do poder pelos militares em 1964 de golpe para que ele se torne suspeito e, eventualmente, venha a ser punido. E ele não fez mais do que chamar a coisa pelo nome. Existe um clima inquisitório nas escolas. Os professores temem dar aulas. Principalmente os de ciências humanas.
Quem quer que já tenha trabalhado no ensino secundário ou universitário sabe que é impossível exercer bem a sua profissão em tais condições. Ninguém tem condição de ensinar com rigor e eficácia quando sabe que, a qualquer momento, um aluno, açulado por pais fanáticos, pode sacar um telefone e registrar o que se passa em aula não para estudar, mas para esse fim lamentável. Não se trata, simplesmente, de gravar uma aula. Isso se faz, frequentemente, para fins úteis, e com o consentimento do professor. O que temos é outra coisa: registrar uma intervenção ou diálogo para delação. Ocorre algo que não acontecia nem sob a ditadura militar: alunos que denunciam professores.
Não sei se chegaremos ao estágio mais avançado, em que filhos denunciarão os pais. Creio que se pode dizer que já vivemos num regime de transição da democracia para alguma coisa que talvez se possa chamar de “democratura”, ou seja, uma ditadura com aparência de democracia. Mas ainda há tempo para sustar a efetivação desse processo.
Os militares têm, é claro, direito de participar de atividades públicas, mas há intervenções e intervenções. Não sei dessa, nas escolas públicas. Parece-me estranha. O fato é que o governo golpeia quase todas as instituições educacionais, mas poupa as escolas militares. Isso não é normal.
As mobilizações populares mostraram que o nervo do Brasil não está morto. E alteraram, ao menos momentaneamente, o clima político geral do país.
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