O Prêmio Nobel de Física de 2018 foi concedido a um trio de cientistas, dois homens e uma mulher. Pela primeira vez em 55 anos, uma mulher recebeu tal honraria. Esse fato revela de maneira cristalina aquilo que é aceito por muitos com naturalidade: a sub-representação das mulheres em carreiras das áreas de ciências e matemática — as chamadas STEM (do inglês: ciência, tecnologia, engenharia e matemática). Frequentemente, essa menor participação das mulheres é atribuída a diferenças biológicas existentes entre os gêneros. Um estudo publicado recentemente na revista Science of Learning, do conceituado grupo Nature, apresenta evidências de que essa concepção pode estar equivocada.
Diferenças de gênero nas habilidades matemáticas têm sido estudadas há bastante tempo. Os resultados desses estudos não são consensuais, mas a maior parte deles relata que, quando avaliados em idade escolar, meninos têm melhor desempenho em habilidades matemáticas quando comparados às meninas. Por exemplo, diferenças são encontradas em tarefas que envolvem a cognição espacial – as quais são boas preditoras do sucesso nas STEM –, como navegação e rotação mental. As habilidades de rotação mental são tradicionalmente medidas pela capacidade de reconhecer um objeto, como blocos em 3D, em suas variantes rotacionais ou sua imagem especular.
Meninas e meninos possuem a mesma capacidade de aprendizagem (foto: Shutterstock)
Segundo Susan Levine, professora da Universidade de Chicago – e uma das principais autoridades na área de desenvolvimento do pensamento matemático –, diversos fatores biológicos que explicam essas diferenças já foram identificados e o que devemos investigar é como as predisposições biológicas interagem com a experiência para que o pensamento espacial se desenvolva na criança. Segundo Levine, sabendo que o treinamento melhora as habilidades em ambos os gêneros, essas investigações poderiam fornecer subsídios para que a escola desenvolva atividades com o objetivo de atingir a equidade de gênero.
É muito difícil identificar se essas diferenças emergem a partir de fatores biológicos ou se são resultado de diferenças na experiência com conceitos matemáticos, já que meninas são menos expostas aos mesmos desde os primeiros anos de vida. Para respaldar a premissa de que as diferenças têm origem biológica, elas deveriam ser identificadas já nos primeiros anos de vida.
Com o objetivo de testar essa hipótese, os autores do artigo publicado na
Science of Learning compilaram resultados de diferentes estudos realizados com mais de 500 crianças, o que permitiu uma análise mais abrangente da cognição matemática nos primeiros anos de vida, incluindo percepção numérica, aquisição da contagem verbal e conceitos básicos de matemática. Os testes variavam em função da faixa etária.
Em um deles, crianças de 3 a 7 anos realizaram uma tarefa computadorizada na qual eram apresentadas a dois conjuntos de pontos e tinham que responder em qual deles o número de pontos era maior. Por exemplo, um conjunto possuía 30 pontos e o outro 10 pontos, proporção 3:1. Quanto menor a proporção entre eles, mais difícil é a discriminação. Adultos são capazes de discriminar proporções de até 10:9. Bebês com seis meses de idade já discriminam proporções 2:1. Aos quatro anos, as crianças já são capazes de discriminar 4:3. A partir da análise dos resultados, os autores concluem que existem fortes evidências de que meninos e meninas apresentam habilidades matemáticas comparáveis durante os primeiros anos de vida. Afirmam ainda que há uma forte influência cultural sobre a aprendizagem matemática ao longo da infância e que diferenças resultam da experiência, a qual pode afetar a autoimagem, o tratamento e as oportunidades das mulheres.
Os estereótipos criados têm, portanto, efeitos prejudiciais ao desempenho das mulheres em matemática. Além disso, estudos mostram que professores de ciências e matemática são mais propensos a encorajar meninos a elaborar e responder questões, a explicar conceitos e a interagir mais tempo com meninos. Pais influenciam seus filhos a respeito da percepção de suas próprias habilidades e muitos acreditam que existe a superioridade dos homens. Ao estudar pais que ajudam os filhos com frequência em tarefas de casa, Susan Levine mostrou que quanto mais ansiosos são os pais em relação à matemática, pior o desempenho de seus filhos. Mais uma evidência de como o desempenho é afetado pelas relações sociais.
Em resumo, as diferenças de gênero observadas na representação das mulheres nas ciências e na matemática têm, portanto, explicações sociológicas complexas e não podem ser reduzidas a diferenças biológicas de aptidão. Ao longo da história, as mulheres foram desencorajadas a participar dessas áreas e existe um longo legado de sexismo no meio acadêmico. Diante das evidências, pais e professores devem estar mais atentos à sua atitude perante a aprendizagem de meninos e meninas para que estereótipos não sejam reforçados. A sociedade só terá a ganhar com isso.
Fernando Louzada é doutor em Neurociências e Comportamento pela USP e pós-doutorado pela Harvard Medical School.
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