NOTÍCIA

Entrevistas

István Mészáros: filósofo húngaro encara a educação baseada em ruptura com a “lógica do capital”

Publicado em 03/10/2017

por Rubem Barros

meszaros Crédito: Divulgação

O filósofo húngaro István Mészáros morreu no último domingo, 1º de outubro, aos 86 anos. O pensador, professor emérito da Universidade de Sussex, na Inglaterra, foi um importante intelectual marxista.
Reveja, abaixo, entrevista concedida por Mészáros à revista Educação:

István Mészáros

Crédito: Divulgação

Fazer da educação um instrumento crítico de compreensão do mundo e das relações humanas, e não apenas uma engrenagem de formação de mão-de-obra para o mercado de trabalho. É sob essa perspectiva que o filósofo húngaro István Mészáros defende uma mudança radical no modo de encarar a educação – pensando-a a partir da ruptura com a “lógica do capital”, que denuncia insistentemente.
Nascido em 1930, na Hungria, Mészáros foi assistente, a partir de 1951, do filósofo e crítico literário marxista Georg Lukács (1885-1971), a quem deveria suceder na Universidade de Budapeste. Em 1956, porém, a parceria foi interrompida em razão da invasão soviética, que o levou a sair do país. Na Universidade de Sussex (Inglaterra), levou a cabo uma das obsessões de Lukács: a de analisar, à luz de seu desenvolvimento no século XX, o sistema capitalista, numa espécie de atualização de O Capital, de Karl Marx (1818-1883). O resultado dessa empreitada foi Para Além do Capital (Boitempo, 1.104 págs., esgotado).
Em A Educação para Além do Capital (Boitempo, 80 págs., R$ 20), Mészáros busca estabelecer as relações entre sistema econômico e educação. Como diz na entrevista a seguir, concedida por e-mail a Rubem Barros, crê que é preciso “ativar a totalidade de recursos da nossa cultura e da educação em todos os domínios, incluindo instituições educacionais formais, para criar um modo alternativo de reprodução metabólica do social”.
O senhor diz que, felizmente, boa parte de nossa aprendizagem acontece fora das instituições educacionais formais. Em países como o Brasil, porém, se requer cada vez mais das escolas, principalmente por causa da perda de espaços públicos em função de fatores como violência e corrupção. O ensino formal pode ser um instrumento de retomada do espaço público?
A educação formal poderia dar uma contribuição vital para nos desembaraçar dessa situação, desde que assuma uma posição crítica, consciente, para com as forças que produzem as deploráveis manifestações das nossas cada vez piores condições de existência. A magnitude dessa tarefa está definida pela natureza da própria crise, que afeta tanto as dimensões formais quanto as não formais das nossas práticas educacionais. Pois, ainda que a educação formal esteja restrita a um número limitado de anos da vida dos indivíduos, seu sucesso é impensável sem um intercâmbio criticamente orientado – uma cooperação consciente, num sentido positivo – dos setores formais e não formais da nossa cultura e educação.
Qual seria a natureza dessa crise? 
É uma crise histórica da época do metabolismo social, sobre o qual devemos reproduzir nossas condições de existência ou de morte.
O fato de a dimensão ameaçadora dessa possibilidade “de morte” ter surgido no horizonte da humanidade nas últimas duas décadas – pelas vias militar e ecológica – faz dela uma crise única e grave. O problema não é o de como, por meio de um melhor esclarecimento educacional, cessar com os tiros nas favelas do Rio de Janeiro ou nos subúrbios de Londres. Diz respeito a questões fundamentais sobre como ativar a totalidade de recursos da nossa cultura e educação em todos os domínios, incluindo instituições educacionais formais, para criar um modo alternativo de reprodução metabólica do social. Um modo que não só erradique a atual onipresença da violência e da corrupção, mas que coloque algo positivo em seu lugar, ao invés de recompensar, da forma mais perversa, seus perpetuadores, entre eles, os que se autopromovem à condição de profissionais do estado de violência (inclusive a guerra) e de corrupção do estadoNão esqueçamos que Max Weber (1864-1920), partidário apaixonado da ordem social capitalista, definiu o estado como o monopólio, autolegitimado, da violência. 
Como se articularia a “livre associação entre os produtores” que o senhor menciona? Que papel a tecnologia desempenharia nesse processo?
A verdadeira questão é: quem está no controle das forças produtivas da sociedade e do bem-estar social disponível? Como as coisas estão postas hoje, a tecnologia e a ciência, circunscritas pelas determinações fetichistas do capital, são usadas também para aumentar a insegurança do trabalho, ao jogar massas de pessoas fora de seus empregos. Uma prática justificada como “economia de produção” em nome do “avanço tecnológico”. A verdadeira questão humana está à mercê de determinações inumanas, nesse mundo em que a economia se apresenta de cabeça para baixo, em que a tecnologia parece ter ganhado uma forma independente de vida, com vontade própria e poder incontestável.
Tendo em vista suas conseqüências destrutivas, não pode haver dúvida de que é desejável a aquisição de controle sobre a ciência e tecnologia, alienadas sob o capitalismo. Jürgen Habermas (1929-) costumava fantasiar sobre o que chamamos de “cientificação da nossa tecnologia”. O que de fato ocorre é exatamente o oposto. No último século de desenvolvimento produtivo capitalista, o que testemunhamos foi uma sempre crescente “tecnologização da ciência”, determinada pelas contradições do sistema e, nas últimas quatro décadas, por sua crise estrutural. É imperativo obter controle sobre as forças que têm lógica própria e independente, que possuem caráter hostil e impacto destrutivo evidente.
A sociedade de produtores livremente associados nunca poderia abraçar a ilusão do “pequeno é lindo” e sua tecnologia igualmente ilusória. Tal princípio orientador é tão realista quanto esperar a reforma do capitalismo pela adoção da Taxa Tobin [idealizada em 1972 pelo economista James Tobin, que propunha taxar as transações financeiras para combater a volatilidade do capital e a pobreza]. A sociedade necessita do mais alto nível de tecnologia criativa para satisfazer as aspirações legítimas das grandes massas. Assim, poderá livrar-se das restrições paralisantes e das limitações do tempo de trabalho exploradas pelo capitalismo.
Qual o impacto da ação dos meios de comunicação frente ao processo educacional?
Nossa abordagem não pode ser confinada ao setor formal quando falamos das condições sob as quais a educação pode preencher seu potencial vital de emancipação. A mídia tem adquirido um papel cada vez mais importante graças, também, aos desenvolvimentos tecnológicos no campo da comunicação. Dada a sua aptidão para exercer um impacto maciço na orientação da consciência, é utilizada pelo capital não só para finalidades ideológicas, no serviço do sistema de valor dominante, mas para contribuir com objetivos de produção, por meio da propaganda e da manipulação dos desejos dos fictícios “consumidores soberanos”. Espera-se que a educação formal participe dessa empreitada, em completa harmonia com a mídia, assegurando a reprodução do sistema capitalista de valores, confinando o debate crítico às margens estreitas de intercâmbios mais ou menos ritualizados e “seguros”, privados de qualquer poder de decisão significativa.
O imperativo de conformidade é a regra geral imposta a todas as formas de comunicação – das instituições formais de educação à própria mídia – com a ajuda da legislação e da manipulação dos cordões do sistema. Porém, o pensamento crítico genuíno não pode nunca ser extinto, nem sob as condições de uma ditadura militar, como o povo brasileiro testemunhou, pois a permanente repressão das vozes críticas conflita com as necessidades de reprodução do próprio sistema capitalista. Elas podem ser suprimidas sob determinadas circunstâncias históricas, mas, de modo algum, permanentemente. Não é acidental que, com o passar do tempo, estados de emergência impostos por ditaduras militares gerem sua própria crise, trazendo consigo a reconstrução da “normalidade” capitalista, com suas “regras do jogo” tradicionais e instituições políticas correspondentes.
Nesse cenário, qual papel cabe ao professor da escola formal?
O grande desafio de nosso tempo é o de como ampliar as margens do pensamento crítico – tarefa para a qual tanto a educação formal quanto a não formal podem contribuir substantivamente. As pessoas que participam das instituições educacionais formais podem dar sua importante contribuição de duas formas distintas, mas interligadas. Em primeiro lugar, podem fazer com que seus alunos estejam atentos para o papel vital da consciência crítica, remetendo os temas maiores da crise de nossa ordem social, contra a tendência dominante de evasão institucionalizada. Sem mencionar a autocomplacência pretensiosa do tipo Pangloss [preceptor do jovem Cândido em Cândido e o Otimismo, de Voltaire (1694-1778), caracterizado por visão ingenuamente otimista dos homens e das coisas o caracteriza], pregando que “vivemos no melhor de todos os mundos possíveis”.
Em segundo lugar, podem trabalhar com diversas outras pessoas que têm as mesmas preocupações, incluindo aqueles da mídia que se recusam a aceitar o papel apologético a eles destinado, criando formas alternativas e estruturas auto-sustentáveis de educação. Devemos nos lembrar que nas fases iniciais do desenvolvimento do movimento trabalhista havia muitas experiências educacionais gerenciadas – com a finalidade de seu próprio desenvolvimento político e intelectual – pelos seus participantes. Uma das principais figuras do movimento socialista, Rosa Luxemburgo, foi professora de economia política em uma dessas escolas informais, de criação e sustentação autônomas.
As pessoas que atuam no campo da educação formal não podem desempenhar plenamente seu papel emancipador caso se mantenham isoladas desse potencial – viável na prática e socialmente necessário – de desenvolvimento educacional alternativo. Mas o que elas podem atingir juntas é de grande importância.
Como a sociedade pode se articular para pensar a educação a partir de uma matriz diversa da do capital?
A situação está bem ilustrada na citação de ensaio de Minqi Li feita em A Educação Além do Capital.
Vale a pena repetir aqui pontos reveladores: “Segundo a ONU, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, 
o 1% mais rico do planeta recebe tanto quanto os 57% mais pobres. O intervalo de rendimentos entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viviam com menos de 2 dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a qualquer forma melhorada de serviços de saneamento e uma em cada seis crianças em idade de freqüentar a escola primária não o fazia. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não agrícola está desempregada ou subempregada”. Não pode haver esperanças de melhoria significativa sem mudanças radicais na maneira pela qual hoje reproduzimos as condições de nossa existência.
Isso significa que a matriz das aspirações de emancipação não pode ser o próprio sistema capitalista. Devemos visualizar uma ordem metabólica social na qual as determinações e defeitos estruturais do capital sejam removidos, se estivermos seriamente interessados na plena realização do papel emancipador da educação como um todo, nas suas dimensões formal e não formal. Devemos estar cientes de que são necessários muitos passos para atingir esse estágio e que não podem ser dados em um futuro hipotético.
Essa caminhada deve se iniciar agora, no presente, tomando-se posse das mediações e alavancas concretas que o progresso pode nos dar. É importante termos uma avaliação apropriada de nossas forças e recursos, definidas pelas restrições atuais e pela capacidade mediadora, mais ou menos limitada, que está à nossa disposição. Mas não conseguiremos o menor avanço se não tivermos um quadro estratégico de orientação – uma meta superior.
O convite de nos orientarmos pela estratégia da “mudança gradativa” pode soar superficialmente tentador. Na realidade, essa estratégia é enganadora e não faz qualquer sentido se não estiver integrada a um quadro estratégico completo, que neutralize seu uso puramente retórico. É por essa razão que a meta final do “educar para além do capital” deve ser o quadro estratégico de nossos muito necessários esforços e aspirações práticas.

Autor

Rubem Barros


Leia Entrevistas

saberes indígenas

Cris Takuá: escola viva e os saberes indígenas invisíveis

+ Mais Informações
Rita EJA

“Tá na hora de você ir pra EJA”

+ Mais Informações
filosofia-sociologia

Por que tentam excluir filosofia e sociologia do currículo escolar?

+ Mais Informações
Ailton Krenak_Andrea Nestre_destaque

Ailton Krenak: florestania para aprender a ouvir o rio e a montanha

+ Mais Informações

Mapa do Site