NOTÍCIA
Em entrevista, autor de projeto financiado coletivamente afirma que quem critica o educador não leu sua obra
O último livro de Paulo Freire publicado em vida será explicado em uma série de 30 vídeos no YouTube, graças a um financiamento coletivo. O autor do projeto, o professor universitário André Azevedo da Fonseca, pretende discutir cada um dos capítulos e subcapítulos da obra “Pedagogia da Autonomia”, que questiona o autoritarismo em sala de aula e toca em questões concretas da prática docente.
Focado em disseminar as ideias de Freire e estimular a leitura do original, o educador e também pesquisador da Universidade Estadual de Londrina (UEL) planeja publicar, até novembro, um vídeo por semana com duração média de cinco minutos cada. Financiado no Catarse por 143 apoiadores, o projeto ultrapassou a meta inicial de R$ 8 mil e atingiu a marca de R$ 11.725. “Os recursos extras serão utilizados para melhorias no projeto, como legendas e traduções para inglês e espanhol no final da série”, esclarece.
Professor universitário há 11 anos, André acredita na atualidade da pedagogia de Freire e vê na era digital uma oportunidade de tornar a sala de aula um ambiente de troca de experiências. Em entrevista para o site da Revista Educação, o autor lamenta o fato de Paulo Freire ser mais citado do que estudado no país e comenta a onda crítica atual aos pensamentos do educador: “Discordar dele faz parte do método que ele mesmo propõe. Mas não há sentido em desperdiçar os ensinamentos que ele produziu”.
Nas últimas duas décadas o mundo se transformou consideravelmente. Qual a importância e a relevância de se falar em Paulo Freire hoje?
Paulo Freire produziu uma das reflexões mais relevantes sobre a condição histórica do conhecimento. A sua pedagogia está fundamentada na noção de que os conhecimentos não são estáticos, não são definitivos, não são fechados, mas estão em permanente transformação. E os estudantes devem participar desse processo de transformação dos conhecimentos para aprender. Por isso ele diz que “Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. E ao lado disso notamos a importância de o professor descobrir que, em vez de ensinar “aos” alunos, ele pode ensinar “com” os alunos, o que implica também, em uma educação que preza o diálogo, em aprender “com” os alunos. Nessa sociedade digital em que as novas gerações lidam com tecnologias com mais naturalidade do que os seus pais e professores, há grandes oportunidades de trocas de experiências e de conhecimentos em sala de aula, criando um ambiente em que todos aprendem.
Como professor, como você encara a formação dos docentes em relação a Freire? É muito ou pouco ensinado nas universidades?
Paulo Freire é desses autores muito citados, mas pouco lidos e estudados no Brasil, tanto por quem diz que gosta dele, mas sobretudo por quem diz que não gosta. Mas ele é reconhecido no mundo inteiro. É simples verificar isso. Basta conferir nas citações do Google Acadêmico. Em espanhol, há quase 20 mil citações de “Pedagogía del oprimido”. “Pedagogy of the oppressed”, em inglês, tem 47 mil citações. Em português, se juntarmos todas as edições, contando cinco citações de uma edição da obra, vinte citações de outra, não chegamos a cento e poucas citações! Enquanto que Edgar Morin, para mencionar um só exemplo, tem mais de 6 mil citações em português de um livro bem mais recente: “Os setes saberes necessários à educação do futuro”. Freire foi exilado e seus livros foram proibidos no Brasil pela ditadura militar. Seus textos são densos e exigentes. É um caso paradigmático de desperdício histórico de pensadores brasileiros, entre tantos que nós produzimos, porque desde “Educação como prática da liberdade”, seu primeiro livro, que foi publicado primeiro em outros países, suas análises pedagógicas têm uma relação visceral com a realidade brasileira. Além disso, devemos nos lembrar que professores universitários de cursos que não são ligados às licenciaturas, em geral, jamais tiveram formação pedagógica. No máximo cursaram uma disciplina de pedagogia na especialização ou no mestrado. E é comum também que professores de ensino médio, sobretudo aqueles que fizeram bacharelado, tenham uma formação pedagógica básica, sem a oportunidade de se aprofundar em autores brasileiros, historicamente negligenciados. Em suma, Paulo Freire é pouco estudado no Brasil.
Qual é sua opinião sobre críticos, alguns deles professores, dos pensamentos de Paulo Freire? Alguns dizem que a pedagogia do oprimido é a do “coitadismo”.
Não considero isso uma crítica, pois é evidente que quem diz isso não leu Paulo Freire. É apenas um preconceito. Paulo Freire é o contrário de “coitadismo”, pois a sua perspectiva pedagógica é precisamente o estímulo à tomada de consciência a partir das relações que o estudante faz entre os conhecimentos escolares e o mundo. Ele propõe justamente a autonomia dos estudantes, a liberdade de transformar os conhecimentos aprendidos para que todos possam produzir novos conhecimentos , a crítica às relações de autoritarismo em sala de aula, além de valores como a solidariedade, a ética e a liberdade. Por não conhecerem e por formarem a sua opinião a partir de comentários de terceiros que, claramente, também não o leram, estão acusando Paulo Freire de ser o contrário do que ele escreve. Espero que a série esclareça esses preconceitos e ofereça uma oportunidade para que todos possam conhecer melhor e formular as suas críticas com mais objetividade.
Certamente, devido ao fato de a tradição de pensamento de Paulo Freire ter origens na esquerda e na ética de solidariedade cristã que inspirou iniciativas como a teologia da libertação, por exemplo, esse espírito raivoso de polarização ideológica que vemos hoje tende a fazer com que o nome de Paulo Freire sofra uma rejeição automática daqueles que nutrem uma aversão incondicional a qualquer valor relacionado às esquerdas. Mas ao tempo em que Freire se posiciona claramente a favor dos movimentos sociais e contra as injustiças econômicas, o pensamento de Paulo Freire é muito mais amplo e complexo do que essa dicotomia que vemos atualmente. Há reflexões importantes que ele firmou para combater discursos sectários e fechados de esquerda e de direita, por exemplo. Ele mesmo deixa claro que seus livros foram concebidos para auxiliar a prática pedagógica de educadores conservadores e progressistas. Discordar dele faz parte do método que ele mesmo propõe. Mas não há sentido em desperdiçar os ensinamentos que ele produziu.
O novo vídeo da série pode ser conferido no canal do professor no Youtube.