NOTÍCIA

Entrevistas

Autor

Marina Kuzuyabu e Fernanda Teixeira*

Publicado em 03/10/2014

A ciência busca a educação

Diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, Roberto Lent explica como a neurociência brasileira está se aproximando da educação e os avanços que podem surgir dessa parceria

Gustavo Morita
Roberto Lent: a neurociência pode influenciar até a grade curricular

A neurociência tem uma série de contribuições a fazer na área educacional, mas raramente as descobertas científicas conseguem transcender os domínios dos laboratórios e chegar às salas de aula. Médico de formação, com uma carreira de mais de 15 anos dedicada à pesquisa científica, o neurocientista Roberto Lent, diretor do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), defende o estreitamento do diálogo entre a comunidade científica e os educadores. Segundo ele, muitos estudos que poderiam ser aproveitados pelos professores não o são ou por falta de conhecimento, ou de integração entre as áreas. Por isso, Lent lidera um movimento para começar a construir essas pontes, como explica na entrevista que segue. Entre outros assuntos, o especialista também fala sobre o TDAH e os erros de diagnósticos que têm levado crianças a serem desnecessariamente medicadas. “Para muitas, uma intervenção pedagógica resolveria”, declara.
No campo da pesquisa, a neurociên­cia tem uma série de contribuições a fazer na área da educação. Quais os desafios de fazer essa transposição do laboratório para a sala de aula?
O maior obstáculo é a falta de integração e o desconhecimento. Por exemplo: o professor e pesquisador Ivan Izquierdo, da PUC-RS, tem trabalhos da maior importância na área da memória. Mas não há uma integração entre o trabalho dele e a prática da educação. E o motivo é simplesmente porque o processo não foi conduzido para isso – e não porque não há intenção. A maioria dos contatos dele está na medicina, onde existe a busca por medicamentos que possam aprimorar a memória, o que teoricamente é possível. Isso levanta uma série de questões e algumas tangenciam a educação. Será que a gente pode usar medicamentos pró-memória para facilitar a aprendizagem das crianças, que é baseada na memória? Há toda uma questão ética a ser pensada também. Será que é correto usar um fármaco para uma criança aprender? Questionamentos desse tipo mostram que o trabalho do Ivan Izquierdo, que é do primeiro time internacional na área de memória, não conversa com a área de educação. Daí a ideia de uma rede de integração. Se o laboratório do Ivan Izquierdo fizer parte da rede e dessa rede fizerem parte também os gestores, pessoas multiplicadoras na área de educação, a gente pode, a partir daí, começar a construir a ponte, trabalho que vai demandar anos. O educador que está na sala de aula sabe de coisas que a gente ignora completamente. Deve haver conversa, não pode haver uma relação de superioridade. É isso que estamos querendo construir: uma rede inicialmente constituída por neurocientistas do Brasil que se proponham a conversar com gestores, professores, educadores de modo geral, para que daí possam vir sugestões, indicações, novas práticas.
Como anda o projeto de construção dessa rede?
Há vários laboratórios no país trabalhando em neurociência com temas que são aplicáveis à educação. Mas falta um movimento integrador. Essa é a ideia da rede, que ainda não existe. O Brasil tem uma comunidade de neurociência bem estabelecida, só que os laboratórios ainda são desarticulados em relação à educação. As maiores articulações se dão em torno de problemas de saúde, neurológicos, psiquiátricos etc. O primeiro passo desse projeto é prospectar quais laboratórios no país trabalham com linhas em neurociência que possam ser aplicáveis à educação. Estamos fazendo essa lista. Feito isso, vamos contatar essas pessoas, reuni-las e ver como elas podem conversar com professores, educadores, gestores e diretores de escola da mesma forma que os neurocientistas já conversam com os médicos. Então, a ideia é inaugurar um processo de diálogo com quem está no chão da escola ou com quem é gestor na parte de educação, de forma que o que a gente produz no laboratório possa ser útil como sugestões à educação na parte prática.
Que tipo de propostas podem surgir da integração entre as duas áreas? Podemos esperar ideias para melhorar o ambiente escolar e a relação professor-aluno, por exemplo?
Tem um milhão de possibilidades, mas que precisam ser testadas, pois a gente não tem certeza se funciona. Por exemplo, existem pesquisas que mostram que, quando você associa o ensino da matemática com o ensino da música – o ensino da música precedendo a aula de matemática – , as crianças apresentam melhor desempenho quando comparadas com aquelas que vão direto para a aula de matemática. Isso tem uma explicação neurocientífica, que se chama plasticidade transmodal, que é o fato de que a criança aprende a focar a atenção usando a música, que lhe causa o maior interesse. Quando ela vai para a matemática, ela transfere esse foco atencional para algo que não lhe causa o mesmo interesse, mas seu rendimento ainda assim é maior, porque está focada. Seu cérebro aprendeu a focar a atenção usando a música, e aplica depois essa atenção na matemática. Se for o contrário, não dá certo, porque a matemática é muito abstrata. Sem motivação, ela não foca a atenção e apresenta dificuldade para aprender. Com base nisso, alguém poderia dizer ‘então essa é a solução: muda a grade curricular de todas as escolas do Brasil e coloca aulas de música antes da matemática’. Eu não sei dizer, pois a resposta envolve outro departamento. Os gestores, professores, diretores é que vão ter de equacionar essa dificuldade. A gente dá uma sugestão baseada na neurociência e os educadores é que vão de fato verificar se isso funciona. E há outras questões a considerar. A começar pela questão: será que todas as escolas têm instrumentos para dar aula de música, mesmo que seja um pandeiro, uma gaita?
Atualmente, o diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é baseado em sintomas clínicos. E o senhor acabou de falar em “aprender a focar a atenção”. É possível que esse transtorno seja uma dificuldade da criança em focar atenção e não necessariamente um problema neurológico?
Não se sabe com certeza. Os pesquisadores estão procurando marcadores cerebrais dos transtornos psiquiátricos e psicológi­cos, que existem claramente para algumas doenças, mas para outras, não. E o problema é que, quando achamos um marcador, ele não necessariamente ocorre em outras pessoas que apresentam o transtorno. E, da mesma forma, ocorre em pessoas sem esse marcador. Então, a questão é a seguinte: 90% das pessoas com TDAH têm um sinal qualquer no cérebro. Considere o exemplo de uma classe de aula com três crianças com diagnóstico de TDAH. Um exame de ressonância magnética poderia constatar que duas delas têm o marcador, a outra não. Aplicado à sala inteira, o exame apontaria outras tantas crianças com o marcador, mas que não apresentam os sintomas do transtorno. Isso quer dizer que não é possível confiar inteiramente naquele marcador. O estudo da neurociência tem se voltado muito para a descoberta de marcadores que possam ser fidedignos, e isso é muito difícil de fazer. Para que você possa então basear a intervenção de um modo orientado cientificamente, você fica sabendo o que de fato há de diferente no cérebro dele. E não estou nem falando de doença, porque às vezes é apenas uma diferença.
Sobre medicação de aprimoramento neural, como a ritalina, quais os efeitos sobre o cérebro infantil e o adulto?
A ritalina tem efeito de propiciar maior nível de atenção na criança. Mas esse efeito não se reproduz depois da adolescência – e não se sabe por quê. O mesmo medicamento funciona de um jeito em uma idade e de outro jeito mais tarde. Mas na criança, a ritalina tem um efeito positivo, porém, o diagnóstico pode ser malfeito e levar à medicação de crianças que não precisam do medicamento. Crianças inquietas não têm necessariamente TDAH. Para muitas, uma intervenção pedagógica resolveria. A inquietude também pode estar relacionada com uma deficiência no processo de ensino.
Pais e professores expressam sempre grande preocupação com a influência que as novas tecnologias de comunicação podem ter sobre o funcionamento do cérebro e o desempenho neuropsicológico das crianças. O que as pesquisas têm indicado a esse respeito?
Não existe ainda uma resposta completa sobre isso. A princípio, tudo que é exagerado não é bom. Se a criança ocupa oito horas por dia assistindo à televisão, isso não é bom. Mas também não é bom se ela ocupar essas oito horas lendo ou mesmo brincando. Deve haver um bom senso, um equilíbrio – e talvez a neurociência possa ajudar a descobrir esse equilíbrio. O mesmo vale para as novas tecnologias. A criança que fica todo o tempo no celular, e a gente está caminhando para isso, está tendo o desenvolvimento de outras áreas – sensibilidade, emocionais – sacrificado. Não estou falando de ciência, mas bom senso. O que a ciência pode mostrar? A neurociê-ncia mostra, por exemplo, que existem videogames que podem estimular comportamentos antissociais. Mas tem outros tipos que são positivos para treinamento de atenção – em alguns, a criança foca o centro da tela, mas ao lado vão surgindo outros elementos, como um herói. Isso é bom para o treinamento de atenção na modalidade visual e propicia o chamado desatrelamento do foco atencional (muda atenção de um ponto para outro). Esse tipo de videogame é bom. Há tecnologias e tecnologias e modos e modos de usá-las. (*Fernanda Teixeira é subeditora da revista Mente & Cérebro).


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