NOTÍCIA
Para uns, faltam condições estruturais. Para outros, o problema é de formação e concepção da educação
Os movimentos sociais que marcaram a década de 1960, em especial nos Estados Unidos, chamaram a atenção para os prejuízos da segregação de várias minorias. Não só as mulheres, os negros e os homossexuais, para citar algumas delas, se fortaleceram nesse período, mas também as pessoas com deficiência, que passaram a ter seus direitos discutidos e, mais tarde, garantidos na forma de leis e outros dispositivos. O direito à educação também foi pavimentado nesse processo, inclusive no Brasil.
Hoje, há uma série de portarias, normativas, resoluções, decretos e leis para assegurar e regular o atendimento educacional de estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (leia texto na pág. 38). A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/15), que entrou em vigor em janeiro deste ano, é o mais recente documento legal a tratar do assunto. O instrumento reforça direitos já garantidos e traz algumas novidades, como a previsão de pena de reclusão de até cinco anos aos infratores.
Todas essas medidas produziram mudanças. De acordo com o Censo Escolar da Educação Básica, entre 1990 e 2014, o número de matrículas de estudantes com deficiência cresceu em torno de 160%, saindo de um patamar de 337.296 para 886.815. Além de absorver um número maior de estudantes, o sistema educacional também se tornou mais inclusivo. Enquanto o número de alunos inscritos em escolas exclusivamente especializadas ou classes especiais caiu 56% no período (de 293.403 para 188.047), a frequência em classes comuns aumentou quase 16 vezes (de 43.893 para 698.768).
Os números sugerem um quadro positivo, de avanços. Porém, no chão da escola, fora do universo das estatísticas, muitos desafios ainda precisam ser resolvidos na visão de especialistas. “Em muitas escolas, ainda, os alunos-alvo da educação especial vão para a sala de aula apenas para socializar-se. Dependendo do caso, eles passam quatro horas sem desempenhar qualquer atividade. Isso é inclusão?”, questiona Enicéia Gonçalves Mendes, professora do programa de pós-graduação em educação especial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores da Educação Especial (Abpee).
A situação descrita pela especialista se deve a uma série de fatores interligados. Na opinião dos professores, uma das razões é a falta de condições adequadas para a inclusão de alunos com deficiência. Esse problema foi destacado entre os três que precisam ser enfrentados com maior urgência por 20% dos entrevistados na pesquisa Conselho de classe – A visão dos professores sobre a educação no Brasil, realizada pelo Ibope Inteligência a pedido da Fundação Lemann. O levantamento foi feito com base em entrevistas pessoais com professores que atuam na rede pública, especificamente no ensino fundamental de escolas localizadas em áreas urbanas. Um pequeno percentual dos docentes (5%) também atua na rede particular. No total, foram feitas mil entrevistas.
Essa falta de condições se refere tanto a aspectos físicos (equipamentos e materiais pedagógicos, por exemplo) como de recursos humanos (acesso a programas de formação continuada e/ou apoio de profissionais especializados). “Os educadores estão dispostos a fazer o melhor em sala de aula para incluir os estudantes, mas não conseguem avançar por causa dessas barreiras”, enfatiza Marcos Mazzotta, professor aposentado da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp) e pesquisador membro-fundador do Laboratório de Estudos sobre Deficiências, ligado ao Instituto de Psicologia da USP.
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), instituído por decreto em 2008, foi uma das medidas criadas pelo Ministério da Educação para eliminar as barreiras que impedem a plena escolarização dos alunos-alvo da educação especial. Sua finalidade é complementar e/ou suplementar a formação dos estudantes, portanto, não devem substituir a escolarização, mas sim articular-se com a proposta pedagógica do ensino comum.
Prioritariamente, o serviço deve ser oferecido no contraturno, em uma sala de recursos multifuncionais equipada com mobiliários, materiais didáticos, recursos pedagógicos de acessibilidade e equipamentos de tecnologia assistiva. Outra orientação é que as atividades sejam conduzidas por professores especialistas em educação inclusiva e que estes promovam o ensino de linguagens e códigos específicos de comunicação e sinalização, orientem os alunos sobre como usar os recursos de acessibilidade à leitura e à escrita (lupas, lentes, cadernos de pauta ampliada etc.), incentivem o desenvolvimento da autonomia, desenvolvam programas de enriquecimento curricular, entre outras ações.
Para que seja bem-sucedido e suas finalidades sejam alcançadas, o AEE não pode prescindir do contato com o professor que está em sala de aula, que deve ser informado sobre as necessidades de cada aluno e orientado quanto às estratégias mais adequadas para efetivar a inclusão desses estudantes no ensino regular. O professor, por sua vez, deve fornecer subsídios para que o especialista em AEE mantenha-se alinhado com a proposta pedagógica adotada.
Essa interação poderia prover aos docentes, pelo menos parcialmente, as tais condições adequadas para promover a inclusão. No livro Pesquisas em educação inclusiva: questões teóricas e metodológicas (Pipa Comunicação, 2016), o professor José Ribamar Batista Jr. relata suas experiências com o AEE de seis escolas públicas, sendo duas em Brasília, duas em Fortaleza (CE) e duas em Teresina (PI). Sua avaliação é positiva quanto à parceria entre o professor da classe comum e o professor da sala de recursos. Estes fazem a adaptação dos conteúdos e das provas, quando necessário, e ainda vão verificar em sala de aula se a inclusão está “funcionando”. “Eles também perguntam aos docentes se há alguma demanda especial, se querem que seja trabalhada alguma habilidade específica na sala de recursos”, exemplifica. E ainda que faltem materiais, eles se “viram” com o que têm, utilizando materiais recicláveis, para não deixar nenhum aluno para trás, como gosta de frisar o professor.
Contudo, não são todas as instituições de ensino que têm AEE. Dados do Censo Escolar de 2014 compilados pelo portal Qedu mostram que somente 14% das escolas (26.316) estão equipadas com sala para atendimento especial. Na segmentação entre públicas e privadas, nota-se ainda que nas particulares esse índice é de apenas 5%; nas públicas, ele é de 16%. Esse quadro é possível porque, de acordo com a resolução do Conselho Nacional de Educação, o atendimento especializado pode ocorrer fora da instituição de ensino, ou seja, em um centro de AEE da rede pública ou em instituições conveniadas. Quanto à diferença entre públicas e privadas, um dos fatores centrais é o aporte financeiro extra do MEC às redes públicas. As matrículas dos estudantes com deficiência são computadas duas vezes no âmbito do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para que as escolas possam tornar o serviço viável. As salas também são equipadas pelo governo, desde que as administrações locais providenciem espaço físico para tal.
A capacitação dos professores das salas de recursos é outro problema. Ele é reconhecido por vários especialistas e foi apontado em uma pesquisa realizada em escolas de 50 municípios, pertencentes a 18 estados brasileiros. O levantamento foi feito entre 2010 e 2014 por uma rede de pesquisadores de todo o país, o Observatório Nacional de Educação Especial (Oneesp), coordenado pela professora Enicéia, da UFSCar.
Dezenas de escolas foram visitadas a fim de verificar três grandes aspectos: quem eram os alunos atendidos nessas salas; o perfil dos professores responsáveis; e a qualidade do atendimento oferecido – especialmente sua adequação ao currículo escolar. “Encontramos muitos problemas nessa investigação”, adianta a pesquisadora. Muitos professores de AEE reconheceram o despreparo para atender todas as deficiências e uma das prováveis razões disso é o fato de a maioria ser graduada em pedagogia ou psicopedagogia, e não em educação especial. “Existe uma lacuna na formação desses professores difícil de ser preenchida com os programas on-line [de formação em educação especial] do MEC”, ressalta a pesquisadora. Contribui para agravar o quadro o fato de que muitos estão alocados no serviço por decisão da diretoria da escola, ou seja, de forma involuntária e até a contragosto, segundo Enicéia.
Alunos em atividade na sala de recursos especiais da Emef Rogê Ferreira, em São Paulo |
As impressões também foram negativas quanto ao atendimento. “Os alunos vão a essas salas uma ou duas vezes por semana, onde permanecem por, no máximo, duas horas”, relata. Isso acontece na rede pública de São Paulo também. Renata Garcia, coordenadora do Núcleo de Educação Especial da Secretaria Municipal de Educação São Paulo, informa que a duração das sessões varia conforme a necessidade do aluno, mas a frequência com que ele visita a sala de recursos é de duas vezes na semana.
Ao contrário do que acontece na capital paulista, como assegura Renata, nas escolas visitadas pela equipe da professora Enicéia, as atividades do AEE são, em geral desconectadas do currículo. Cada professor faz o que “dá na telha”. Alguns trabalham a questão da autonomia, ensinando os alunos a escovar os dentes e a usar o banheiro, enquanto enfatizam atividades de socialização, por exemplo.
Nessas condições, o suporte que esse professor poderia prestar aos docentes que estão em sala de aula se torna precário, quando não inexistente. A sobrecarga de trabalho também contribui para isso. “Eles atendem alunos autistas, com síndrome de Down, deficientes auditivos, deficientes visuais, cadeirantes, tudo numa mesma sala”, reforça Mazzotta. Inevitavelmente, eles se voltam para os estudantes, sobrando pouco tempo para os docentes.
Mais um aspecto crítico é o fato de que os recursos pedagógicos especiais não costumam ir para a sala de aula, como recomenda a literatura de inclusão. É nessas escolas que a inclusão acontece apenas nos dados estatísticos.
A falta de efetividade na inclusão também se deve ao modelo educacional vigente na maioria das escolas, à formação dos professores e à concepção que estes têm da educação inclusiva, na visão de Maria Teresa Eglér Mantoan, professora do programa de pós-graduação em educação da Unicamp e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped). “Hoje a escola trabalha com um modelo único de aluno e baseia suas atividades numa capacidade média de aprendizagem. Os que escapam desses parâmetros são considerados diferentes”, analisa. “Essa lógica leva os professores a perseguir um desempenho padrão. Quando não conseguem isso de alguns alunos, justamente daqueles que são considerados diferentes, eles usam esse argumento de que não têm o preparo adequado”, complementa.
Também é comum que o professor se refira aos alunos com deficiência como “os alunos de inclusão”, conta Mazzotta. Essa diferenciação é prejudicial em sua opinião, pois muitas vezes faz com que alguns docentes, ainda que inconscientemente, negligenciem a educação desse grupo. Enicéia ainda acrescenta que não há controle sobre o que é ensinado aos alunos-alvo da educação especial. “Algumas escolas acham que eles têm de ser aprovados automaticamente, até por não saber ou não ter condições de adaptar as provas. Muitas também impedem os alunos com deficiência de fazer a Prova Brasil, estimulando-os a ficar em casa no dia do exame”, relata.
Por isso, os especialistas concordam que o problema é muito mais complexo. Solucioná-lo implica transformar a educação como um todo, e não apenas as políticas de educação inclusiva. Um dos primeiros passos nessa direção seria melhorar a formação dos professores para que eles adquiram, no mínimo, noções básicas sobre as necessidades educacionais especiais e, principalmente, reflitam sobre o sentido da inclusão e sua importância. Na opinião de Mazzotta, a construção desse alicerce teórico já seria suficiente para os docentes assumirem o dever de ensinar todos os alunos, sem desmerecer ou negligenciar a educação dos portadores de deficiência.
Para Maria Teresa, a questão envolve compreender que cada estudante (deficiente e não deficiente) é único e, por isso, merece ser avaliado individualmente. “O progresso deve ser medido não em relação à média, mas em relação à trajetória pessoal de cada aluno. A escola não é um concurso”, defende a professora da Unicamp.
Também é importante que os docentes deixem de esperar um determinado padrão de rendimento do aluno com deficiência, expectativas que muitas vezes acabam por desestimulá-los a promover a inclusão. Nessa perspectiva, a participação em sala de aula se daria na medida das possibilidades de cada um, uma concepção realista e coerente baseada na crença de que a escola existe para formar as novas gerações, e não apenas alguns de seus futuros membros.
Nesse processo de revisão do modelo educativo, os docentes ainda abandonariam a crença de que precisam do suporte de um profissional ou de uma formação específica para aprender métodos de ensino específicos para esta ou aquela deficiência. Sem desmerecer os dois aspectos, a especialista ressalta que não há regras gerais, manuais, práticas ou técnicas mais ou menos apropriados. “O que o professor precisa é abandonar o ensino transmissivo, dependente do livro didático e dissociado das experiências e interesses dos alunos – o que vale para qualquer turma – e acreditar na capacidade de progresso deles”, assinala Maria Teresa Mantoan.
Justamente porque as individualidades não são respeitadas, os direitos educacionais dos alunos com deficiência são garantidos com a oferta de um serviço “tamanho único”, na definição de Enicéia, da UFSCar. Demonstrando a dependência dos fatores – materiais e conceituais -, a pesquisadora não exime a falta de condições adequadas de trabalho nas escolas como barreira para a inclusão efetiva. “Turmas lotadas, falta de reconhecimento e necessidade frequente de trabalhar em mais de uma escola são fatores que não podem ser deixados de lado quando se analisa o porquê das dificuldades dos professores em promover a inclusão”, pondera. Por isso, a especialista é enfática ao pontuar que não é só a educação especial que tem de avançar. Nenhuma escola pode recusar a matrícula de um aluno com deficiência. Isso já havia sido estabelecido em outros documentos e foi reforçado com a Lei Brasileira de Inclusão. Porém, sem uma reformulação das práticas pedagógicas e sem resolver os problemas estruturais do sistema educacional, a inclusão fora das planilhas estatísticas continuará emperrada.
Estudantes atendidos pela educação especial |
Por muito tempo, acreditou-se que a educação especial deveria ser organizada de forma paralela à educação comum e que esta seria a forma mais apropriada para garantir o direito à educação das pessoas com deficiência. No entanto, o desenvolvimento de estudos no campo da educação e a ampliação dos debates acerca dos direitos humanos mudaram essa lógica. A ideia de que educação especial deve integrar a proposta pedagógica da escola regular está consolidada e assegurada por um amplo aparato legal, que garante a matrícula, em classes comuns, dos estudantes nas seguintes condições: ■ Alunos com deficiência: aqueles que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, intelectual, mental ou sensorial. ■ Alunos com transtornos globais do desenvolvimento: aqueles que apresentam um quadro de alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas relações sociais, na comunicação ou estereotipias motoras. Incluem-se nessa definição alunos com autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo da infância (psicoses) e transtornos invasivos sem outra especificação. ■ Alunos com altas habilidades ou superdotação: aqueles que apresentam um potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou combinadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade. |