NOTÍCIA
É preciso que a administração funcione de acordo com as necessidades do setor, defende Fernando Abrucio, da FGV
A educação é uma das formas pelas quais a gestão pública se expressa, não é algo descolado do Estado, da administração pública. O funcionamento da escola, da secretaria, dos grandes planos da educação, tudo isso tem a ver com a engrenagem da administração pública. Se Deus está para a formulação, o diabo está para a implementação, fundamental no desenho das políticas públicas. É o que toda a literatura internacional sobre políticas sociais tem dito há três décadas: políticas sociais e educação dependem de uma boa qualidade da gestão pública. Logo, o Plano Nacional de Educação (PNE) depende da qualidade de quem faz as políticas municipais, estaduais. E, do mesmo modo que precisamos ter uma receita federal, uma diplomacia, um banco central qualificados, é preciso ter uma burocracia nas secretarias estaduais e municipais se não do mesmo nível, ao menos de um nível similar ao das grandes carreiras do Estado. A educação precisa refletir mais sobre o papel da gestão pública, que não é igual em todas as áreas. A natureza da política pública também tem parte sobre a gestão pública. Uma política pública de educação é uma política de massa, em que o elemento humano tem um peso muito grande na ponta. E não adianta fazer um grande PNE se ele não chegar à ponta. É o Street Level Bureaucracy [Burocracia do Nível de Rua] que implementa a política de educação. Do mesmo modo que a educação tem de utilizar mais a reflexão contemporânea sobre a gestão pública, a gestão pública tem de se moldar à natureza específica da educação. Médico não é igual a professor. Não quer dizer que seja melhor ou pior. A forma de trabalho é diferente.
Quando falamos que há problemas de gestão pública que afetam os resultados da educação, falamos de três coisas. Primeiro, da estrutura institucional da educação, que precisa ser azeitada. De um lado, há uma cultura muito centralizadora, decorrente de um vírus suprapartidário que dá em Brasília e faz as pessoas acharem que podem desenhar o mesmo modelo de creche em Rio Branco e em Porto Alegre. Basta lembrar que o maior financiador da educação brasileira, o FNDE, não tem representação de estados e municípios. Segundo, de como funcionam os processos. São os problemas do direito administrativo da gestão pública que chegam à educação, processos longos e burocratizados, estruturas de carreira que ficam entre o amadorismo e o completo engessamento (ou temos professores temporários por 20 anos, ou uma carreira em que você só é demitido se matar alguém, com testemunha), sem clareza das responsabilidades. Terceiro, a qualificação das pessoas. As secretarias estaduais e municipais não têm uma burocracia qualificada, com certo grau de continuidade, que pense políticas para além do curto prazo.
Também temos ou amadorismo ou engessamento, com o maior índice de diretores sendo indicados politicamente. Não são formados para serem diretores de escola. Não existe essa formação no Brasil, nem nas faculdades de pedagogia nem nos cursos de administração. No mundo inteiro, o que tem acontecido nos últimos 30 anos é criar espaços de formação para o que chamam de lideranças escolares, como na Inglaterra, no Canadá, na Austrália.
É o melhor caminho, termos mestrados profissionais formando dirigentes para as secretarias e escolas. É bom que sejam formados em pedagogia ou em licenciaturas, mas não é necessário. É bom que um diretor escolar tenha alguma vivência de escola, mas isso pode ser dado ao longo do curso. Precisa conhecer gestão, ser capaz de unificar uma comunidade escolar em torno de objetivos de educação. Diretor de escola não é um CEO, a natureza da escola não é a mesma da empresa. Por isso, essa liderança escolar precisa conhecer gestão não só para criar mecanismos e processos melhores, mas deve ser alguém muito capaz de lidar com o elemento humano. Um grande pensador americano da gestão pública fez um estudo sobre as escolas em que mostrava que a liderança escolar é aquela capaz de criar processos mais racionais do ponto de vista da administração, ao mesmo tempo que cria mecanismos para mobilizar pessoas. Mas prefiro falar em gestores, no plural, pois isso pressupõe que haja uma equipe para isso.
Sim, e nesse ponto o Brasil é bastante avançado comparado à América Latina, onde essa figura existe em poucos países. Mas não pegou por completo. A ideia é correta, mas seu grau de efetividade no Brasil é pequeno, são poucas redes ou escolas que usam bem o coordenador pedagógico.
Tem a ver com aquelas três coisas (estrutura institucional, processos e elemento humano) e, em alguns casos, também falta formação, pois temos muita falta de capital humano no Brasil. Do mesmo jeito que hoje há o [Programa] Mais Médicos – e mesmo com as críticas vai continuar, pois não temos médicos – há outras coisas para as quais não temos capital humano. Para coordenador pedagógico é difícil preencher cargos em várias partes do país. Teríamos de fazer uma boa aliança entre faculdades que lidam com a educação no sentido estrito (licenciaturas e pedagogia) com cursos de gestão, para produzir mestrados profissionais em larga escala. É preciso lembrar que o resultado do trabalho do professor é um resultado coletivo.
Sim. A educação é uma agregação de conhecimentos. Talvez o momento em que o professor tenha um papel mais próximo de ser o grande responsável individualmente pelo resultado dos alunos é o fundamental 1. E mesmo aí, em outros países e em algumas redes do Brasil, ele divide com outro professor, pois é importante ter na sala alguém que esteja com uma parte da turma, enquanto a outra parte revisa conteúdos ou tem trabalhos específicos para aqueles que estão avançando menos, pois é preciso haver equidade entre os alunos.
Mais ainda a partir do fundamental 2, pois amplia-se muito o leque de conhecimentos e disciplinas. Toda essa discussão de flexibilização do ensino médio, por exemplo, é correta, mas ainda continuaremos a ter o problema da coordenação dos professores. Não pense que, pelo fato de o aluno poder escolher disciplinas, tudo estará solucionado. Se isso não for coordenado, ele não aprende nada.
Óbvio! Se você for à USP ou à GV, a maior parte dos bons cursos tem eletivas, mas elas estão numa certa trilha, com uma coordenação. Os melhores colégios privados já fazem isso no Brasil há alguns anos, e todos têm uma coordenação. É preciso lembrar que figuras de gestão, como diretor e coordenador pedagógico, são muito importantes para o sucesso final do professor. Ele não é o responsável último pelo resultado do aluno, está em uma equipe escolar. Aliás, uma das coisas que escrevo no livro é que os professores têm de aprender a trabalhar em equipe, e eles não foram ensinados a fazer isso. Sou professor, já dei aula em escola pública e nenhum de nós foi ensinado a fazer isso. Fomos ensinados a ministrar um determinado conteúdo e, no final, a dizer, no máximo, “boa sorte”. Essa competência do trabalho em equipe é essencial. Se você pegar as escolas no Brasil que têm melhores resultados, aquelas apontadas no estudo da Fundação Lemann sobre excelência e equidade, é trabalho de equipe. Não existe um herói em cada sala de aula, produzindo resultados maravilhosos sem conversar com seus pares.
O Brasil tem 5.570 municípios, muito desiguais e heterogêneos entre si não do ponto de vista econômico ou orçamentário, mas do ponto de vista do capital humano. O Mais Médicos é essencial, pois em muitos lugares não há médicos. Temos de pensar que parte da gestão educacional não deveria ser federal, estadual ou municipal, e sim regionalizada. Os próprios distritos escolares nos EUA tinham essa imagem na cabeça quando foram pensados. É preciso ter mecanismos consorciados de atuação para produzir, por exemplo, formação de professores e gestores. O município sozinho não dá conta disso. Isso pode ser feito de forma regionalizada em parceria com o Estado, de forma consorciada. O material pedagógico (que não é só o livro didático), o transporte escolar. É preciso lembrar que a escola não está na casa das pessoas. Em regiões metropolitanas, a gratuidade do transporte público está reduzindo a evasão escolar. Em áreas mais distantes, o problema é enorme, há regiões em que as pessoas vão de barco às escolas. Parte das soluções deveriam ser regionalizadas, consorciadas, de forma a ter mecanismos de cooperação horizontais e verticais, tanto entre municípios, como entre municípios e estados, algo muito frágil no Brasil salvo algumas raras exceções, como o Ceará, o Acre, Tocantins, e agora Pernambuco, Bahia. Em geral, há muito mais competição do que colaboração entre estados e municípios, isto é, o gestor estadual trata da rede estadual, não dos alunos do seu estado, o que é uma tragédia.
Vamos ter de mudar a lei e os intérpretes da lei. O modelo é limitador porque o modelo do direito administrativo brasileiro é muito engessado e os leitores desse modelo – fundamentalmente os tribunais de contas – só criam obstáculos para isso, o que vale não só para educação. Na Constituição de 1988, o Brasil optou por descentralizar para estados e municípios a implementação das políticas sociais. Isso não está errado. A ideia do Cristovam Buarque de federalizar a educação é impossível em termos de gestão, não faz o menor sentido. Nenhum país federativo fez isso. Zero. Ao contrário. O México está municipalizando mais fortemente a educação que era estadual. As coisas estão mudando, pois há um problema de escala de gestão. Por outro lado, a mera municipalização é um desastre do ponto de vista das condições dos municípios. O que precisamos fazer é um caminho do meio, que é a colaboração. Ela depende de um novo desenho dos consórcios no país, mais mecanismos de incentivo. A lei recente de resíduos sólidos, dos deputados Arnaldo Jardim (PPS-SP) e Paulo Teixeira (PT-SP), de partidos diferentes, obriga que qualquer transferência voluntária da União para esse fim seja feita apenas para consórcios. Depois dela, explodiu o número de consórcios. É um exemplo. É preciso mudar esse arranjo administrativo, político e jurídico nos consórcios. Não adaptamos o nosso modelo de educação a um modelo consorciado. Isso permitirá maior eficiência, gastar melhor o dinheiro.
Um dos resultados mais impressionantes é o do Ceará. E a maior parte da explicação tem a ver com colaboração entre estado e municípios. Não tem grandes engenharias institucionais. Tem uma enorme colaboração que permitiu que o estado e municípios fossem parceiros e que adotassem uma estratégia alicerçada em três coisas: formação docente, avaliação e apoio. Você forma os melhores em cooperação, avalia, para saber onde está cada um, e cria mecanismos, a partir da avaliação, de apoio e competição. Competição administrada, isso vem da teoria econômica, da teoria dos contratos. É uma competição para criar patamares de incentivo com o apoio. Todo esse modelo do Ceará só foi possível por haver confiança entre estado e municípios. Os resultados são impressionantes principalmente se olharmos o ponto de onde partiram, pelo nível de recursos que o Ceará tem. Se os estados mais ricos fizessem isso, estariam com o Ideb lá em cima. Não precisamos nem da lógica de centralização, nem da lógica de um municipalismo autárquico.
O dado parte do censo escolar e de uma pesquisa que fiz em 2014. É uma estimativa de que 49% dos professores de educação básica se aposentem até 2025 ou 2026, ou seja, cerca de metade dos professores vão se aposentar nos próximos dez anos. Por um lado isso é uma janela de oportunidades, pois podemos formá-los melhor, já que hoje a formação é falha. Mas temos de garantir que os mais antigos ajudem esses novos professores. A docência é uma combinação de conhecimentos aprendidos na teoria com conhecimentos aprendidos na prática. E a escola precisa ter – é o que a experiência internacional diz – uma combinação entre profissionais jovens e outros mais maduros. Tanto é que quase em todo o mundo não existe só a carreira do professor, em que você vai subindo por escolaridade ou por idade. O cara vai trabalhar como professor coordenador, professor mentor, ter vários tipos de atuação pedagógica. Em geral, o que a maior parte do mundo chama de coordenador pedagógico é um professor que virou isso depois de várias experiências. O conhecimento desses mais antigos tem de ser absorvido pelos mais novos.
A Polônia teve um dos maiores avanços no Pisa. Houve um trabalho forte para mudar o modelo de formação e atuação do professor. Alguns estados americanos têm feito mudanças interessantes. Austrália, Inglaterra. O que há de comum entre eles? Primeiro, fazer com que desde o início de sua formação o professor tenha experiência prática, que isso seja central; segundo, fortalecer a formação de didáticas e metodologias de ensino; terceiro, uma conexão muito forte entre os centros formadores e a escola. No fundo, já desde o início da formação inicial, há uma cara de formação em serviço. Para criar essa ponte entre a universidade ou centros formadores e a escola é fundamental que, da parte dos formadores, haja uma estrutura criada para fazer isso, e do lado da escola também. Ninguém na Inglaterra ou na Finlândia acredita que alguém que acabou a faculdade, no dia seguinte, ao entrar na escola, já seja professor. Você vira professor ao longo de um conjunto de anos de prática. Boa parte da formação se dá ao longo da carreira. O que eles têm feito, ao aproximar o centro formador da escola, é que desde o início da graduação o aluno já tem experiência na sala de aula, tem um mentor que o ajuda. Mas depois, quando você entra na carreira, há mecanismos para voltar ao centro formador, para garantir que a formação continuada esteja direcionada para o que efetivamente seja problema na escola.
No Brasil, não só na educação, mas na gestão pública, formação continuada serve para muita coisa e para nada ao mesmo tempo. Ela tem de ser sobre o problema efetivo do lugar onde o sujeito trabalha. Se trabalha na secretaria municipal de Educação, a formação continuada tem de ser sobre os problemas que a secretaria enfrenta; se é professor de uma escola, tem de ser sobre os problemas daquela escola. Esses países estão tentando juntar mais a teoria e a prática no processo formativo. É importante dizer que continuam tendo problemas. Uma das coisas mais comuns do mundo ainda é a perda de docentes. As pessoas são mais bem formadas, têm um modelo, novas metodologias de ensino, mas podem ter novas oportunidades de trabalho e desistir da escola. Isso em parte pode ter a ver com renda, mas não só, pois os salários dos professores têm melhorado em boa parte do mundo. Ser professor exige certas qualificações, preferências, características pessoais que a gente só descobre efetivamente que as tem depois de alguns anos dando aula. O turnover de professores não tem a ver só com salário ou condições de trabalho, que têm melhorado, e sim com o fato de que é um ofício que exige não só vocação, mas alguns adjetivos e características pessoais que certas vezes só descobrimos se temos ou não no exercício prático da profissão.
Como o do consumidor também. Mas há uma diferença grande entre o aluno e o consumidor de serviços. Outras empresas podem mudar seu modelo de negócios. A escola tem de continuar ensinando e formando alunos. Os serviços públicos – e essa é a definição clássica da teoria da gestão pública – se caracterizam pela continuidade, pois frequentemente é preciso exercer um fim, ainda que se possa fazê-lo por meios diferentes. Ou seja, é preciso continuar formando os alunos. Nos serviços, na área de comunicação, por exemplo, os jornais escritos podem migrar para a internet, ainda que muitos estejam quebrando nesse processo. Mas a escola não vai parar de formar alunos. A educação é um direito, não um bem de consumo. Portanto, essas mudanças que estão ocorrendo em todas as áreas afetam o professor, como afetam outros profissionais. Mas, na educação, criam um mundo mais confuso em algo que tem de ser contínuo. Inegavelmente, é mais complicado. De todo jeito, esses novos modelos de formação têm tido resultados interessantes. Somaria aí a questão de cada vez mais valorizar o trabalho coletivo e as competências interpessoais. Cada vez mais, formar o professor é formar alguém que vai trabalhar coletivamente — que além de saber matemática ou história — terá de ter um conjunto de competências interpessoais essenciais para o ofício do professor. É preciso entender qual é o contexto da escola, do aluno, com quem ele tem de trabalhar coletivamente. Ou seja, o que o aluno aprende na sala de aula também depende de uma série de outras atividades que acontecem na escola.
Envolve três capacidades: conhecer o conteúdo a ser ensinado, a forma pela qual vai ensinar (as didáticas) e ter competências educativas que envolvem leitura do contexto, capacidade de trabalhar em equipe – aspectos que as faculdades de educação e os cursos de licenciatura no Brasil não ensinam. Essa é uma preocupação recente, há 20 anos não ensinavam isso em país nenhum. Somos um país interessante para o analista. Como a transformação da educação em direito teve início muito tarde (de 1988 para cá), é como se estivéssemos vivendo uma combinação de dois tempos históricos distintos. De um lado, um tempo histórico muito atrasado pelo nosso déficit histórico; por outro, a gente tem de correr para onde os outros estão correndo. É mais difícil fazer reformas educacionais no Brasil do que na Finlândia, e não só pelo número de pessoas. É o tempo histórico da educação. O Brasil está atrasado em comparação com a Argentina, Chile, Uruguai, Costa Rica. Temos de fazer uma reforma educacional que acompanhe as grandes tendências internacionais num país que tem um déficit histórico enorme e que é muito heterogêneo. É um baita desafio.
Primeiro, metodologias de ensino. No Brasil, se você for a uma faculdade típica de pedagogia ou licenciatura, o patinho feio é a didática. O que tem acontecido nos últimos 20 anos [fora do Brasil] é que o patinho bonito é a didática. Ou seja, o que é importante é pensar metodologias de ensino, e o Brasil está atrasado nisso. Esse é um tema de pesquisa no qual temos de avançar mais. Segundo, acompanhamos pouco os alunos. O que é a pesquisa em boa parte do mundo? Ver o efeito longitudinal da educação, da escola sobre os alunos. E, além disso, a pesquisa sobre gestão escolar no Brasil é muito pequena. Em outros países, há 30, 40 anos gestão escolar é o centro. Desde as respostas ao célebre Relatório Coleman [do sociólogo americano James Samuel Coleman, da Universidade de Chicago, lançado em julho de 1966], na década de 70, quando diziam que ele estava errado e a escola tinha sim algum efeito, onde foram buscar? Clima escolar. Há uma literatura gigantesca sobre clima escolar na década de 80. Se você for procurar no Brasil, vai ter, num ou noutro lugar, o pessoal da UFMG, da Unicamp, mas o tamanho dessa pesquisa é muito pequeno diante do tamanho do Brasil. Temos de estudar mais gestão educacional, e não para ensinar aos alunos o que diz a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Precisamos saber o que faz diferença. E isso não é privatista. As escolas dos países que estão estudando gestão educacional são majoritariamente públicas, incluindo os Estados Unidos.
Há muita dissertação, muito artigo de estudos de caso no Brasil, e poucos estudos comparados de um N maior, seja qualitativo ou quantitativo. É preciso ter um número maior de evidências empíricas sobre educação no Brasil. É uma falha de todos aqueles que estudam educação – pedagogia, sociologia, economia. Essa fragilidade tem a ver com aquilo que disse sobre os dois tempos históricos no Brasil – a educação nunca foi importante para os grandes pensadores do desenvolvimento do país. Enfim, precisamos de mais pesquisa sobre didática, gestão, alunos e comunidade escolar. A escola desconhece muito seu entorno. Se você perguntar a um diretor de escola onde é o Cras [Centro de Referência de Assistência Social] mais próximo, ele vai perguntar o que é um Cras. Isso é absurdo, porque a maior parcela dos alunos, no caso da escola pública, estuda em comunidades carentes, vulneráveis. O diretor de escola teria de saber onde é a UBS [Unidade Básica de Saúde] e o Cras. E não sabe.
Sem dúvida, a intersetorialidade é muito frágil, sobretudo na ponta do sistema de políticas sociais no Brasil. Temos de ter maior intersetorialidade, e isso começa na pesquisa. A formação na teoria já não é intersetorial. Temos de pensar que para formar melhores alunos temos de entender o entorno onde eles vivem. Recentemente, saiu uma matéria no New York Times sobre diretores de um estado americano que perceberam que a evasão estava aumentando. Eles foram atrás das famílias. Não sozinhos, mas com a assistência social. Eram alunos do ensino médio. Descobriram que boa parte não ia por não ter máquina de lavar. Eles se sentiam envergonhados ante os outros, pois tinham poucas roupas, então faltavam. Mandaram uma carta para uma grande empresa de eletrodomésticos que doou máquinas de lavar às famílias, fez o seu marketing, e reduziu a evasão escolar. Moral da história: só é possível mudar a educação se seus líderes sabem o que é o entorno escolar. Em termos de prática na ponta, só há barreiras para a intersetorialidade, há pouquíssimos incentivos. Uma das grandes mudanças com efeitos positivos na educação do Brasil foi o Bolsa Família, que ao garantir a permanência do aluno na escola, melhorou o fluxo. Para ter o Bolsa Família há duas grandes condicionalidades, a frequência escolar e a carteira de vacinação. Mas isso não aproximou a escola nem da assistência social, nem da saúde.
O Brasil segue ainda a máxima do [jornalista e acadêmico] Austregésilo de Athayde, que dizia que é o país que nasceu ao contrário – dinastia antes do rei. Fizemos avaliação sem ter currículo. E agora vamos ter currículo sem ter formação de professores. Isso é um problema lógico. Não é o que é esperado de um desenho de política pública. De todo modo, as avaliações foram muito importantes, pois não tínhamos a menor ideia de como estavam os alunos. Acho que elas continuam sendo importantes como termômetros. Mas termômetro não resolve o problema da doença, mostra a febre. Por um lado, é muito importante ter avaliações. Mas elas dão certo quando você sabe o que fazer com ela. Ideb não procria Ideb. O que gera Ideb são os instrumentos da política pública. Os países que usaram bem a avaliação a utilizaram como termômetro a partir do qual pensaram quais insumos geravam o resultado X ou Y. Da maneira como o Ideb é feito hoje: olha menos distribuição e mais média do ponto de vista estatístico. Isso é um problema. Você pode melhorar o Ideb fazendo com que os melhores entre os mais pobres melhorem, do ponto de vista da nota, e os piores entre os mais pobres não melhorem. É claro que há esses problemas, mas sou defensor da avaliação, trouxe muitos avanços ao Brasil, mesmo pelo caminho pelo qual ela foi estabelecida. Precisamos sempre melhorá-la, mas avaliação só alcança seu objetivo final de estancar a febre se houver instrumentos de gestão. Se olharmos na experiência internacional, onde deu certo é onde houve casamento de avaliação com instrumentos pós-avaliação. O Brasil não pensou em instrumentos pós-avaliação. Tem casos interessantes. O Rio estava quase no último lugar no Ideb dos estados e foi para 6º lugar porque começaram a criar provas que depois tinham acompanhamento pedagógico nas escolas. O caso do Ceará é antigo, de 1992, um sistema voltado à avaliação, para que cada um saiba o seu lugar, e à criação de instrumentos para quem tem os problemas. Temos de pensar que avaliação depende muito dos instrumentos pós-avaliação, os insumos adequados, a descoberta do que produz um resultado x ou y.
É um modelo do qual você até pode reclamar do ponto de vista técnico, pois há muitas provas. Mas o que eles fazem é formação de professor, formação de diretor, material pedagógico superestruturado e acompanhamento dos alunos. Não adianta fazer avaliação se você não for capaz de mudar o desempenho do aluno. Os países que fizeram reformas recentemente, Polônia, Finlândia, Inglaterra, todos eles tiveram acompanhamento específico dos alunos. No Brasil, o pós-avaliação é ainda um mundo aberto. A gente usa a avaliação, por exemplo, com bonificação. Mas com isso você não melhora os piores resultados. Nos Estados Unidos, há vários modelos de avaliação que não estão olhando apenas o aprendizado do aluno, mas certos patamares de insumos casados aos alunos, que são impressionantes. Esse é um dos grandes terrenos hoje da avaliação. Como você cria avaliações que, a partir de cada resultado, oferecem um leque de alternativas do que fazer. No dia seguinte ao que o MEC apresenta o Ideb, o que os governos (federal, estaduais, municipais) deveriam ser capazes de fazer: “diante desses resultados, o nosso leque de alternativas é x,y,z”.
No primeiro momento pós-Constituição de 1988, tivemos uma fase importante que foi a de garantir o acesso e a universalização da educação como direito. Um segundo momento foi ter diagnósticos e termômetros, saber, como dizia o Paulo Freire, que educação serve para ensinar (o que parece uma obviedade, mas no Brasil não era). Agora estamos numa terceira fase, cujo ponto fundamental é “como”, acreditando-se que educação é um direito, fazer com que todos, do mesmo modo, possam ter condições e oportunidades. Segundo, que temos de buscar resultado, ver onde eles [os alunos] estão. Se não sabemos onde eles estão, não sabemos fazer. Ou seja, a terceira onda é vinculada ao “como”. E o como é formação de professores, gestão escolar, a relação com a comunidade escolar, temos de entrar nesses “comos” – podemos chamá-los de insumos se pensarmos na literatura de sistemas, daí que vem o input e output, falta o outcome, que é o impacto, acompanhar onde vai parar o aluno depois, coisa que o Brasil nem sabe onde vai parar, como sabem os Estados Unidos. Essa terceira onda não é descasada das outras, pois não queremos um “como” para uma pequena parte dos alunos, queremos para todo mundo. Quando entrou a temática da gestão democrática, que já vem do debate da Constituinte e da LDB, foi para dizer que todo mundo tem de ter acesso à educação. Ao juntar isso com os instrumentos que dão os diagnósticos, que têm de ser contínuos e aperfeiçoados ao longo do tempo, temos de entrar numa fase agora de construir insumos melhores para produzir melhores políticas públicas. Não acho que isso seja descolado da avaliação. Isso é um erro. Se não tivermos avaliação, não saberemos os efeitos dos insumos. Nenhum país do mundo com boa educação ignora a avaliação e vai para os insumos. Não conheço nenhum caso. Estatisticamente é zero. Mas os que melhoraram fizeram o pós-avaliação. O Brasil não caminhou quase nada no pós-avaliação.
Há vários tipos de certificações. Você pode ter uma certificação sobre saberes básicos do professor, sejam da disciplina que ele vai dar, sejam de técnicas de didática. Isso ocorre em vários países. A própria ideia de um exame nacional de professores é um pouco isso. No Ceará há um concurso estadual de professores para fornecer docentes para os municípios. Pode haver certificações mais próximas dos estados e municípios, não nacional, como ocorre em alguns estados americanos em que você acompanha o avanço do professor – se ele faz mais um curso, o seu resultado – formas de pontuá-lo perante as escolas. O que é mais importante nisso é ter mecanismos através dos quais a gente saiba se os professores têm certas habilidades e competências necessárias à educação. E eu diria com toda certeza que o concurso público é a pior forma de fazer isso no momento atual, pois mede saberes e decorebas numa prova escrita quando o que se quer saber é se o professor é bom na prática. Sobral fazia concurso para dez professores. Dez eu consigo avaliar. Em grandes redes, aqueles que passam em primeiro lugar porque são muito bons academicamente em algum assunto ou tem dinheiro para fazer bons cursinhos de concurso público, quando chegam no primeiro dia na sala de aula é um desespero. É preciso avaliar a educação por critérios próprios, certificação é para isso. Pode-se ter certificações que ajudam a reduzir custos de transação, como fez o Ceará, ou você pode ter coisas mais descentralizadas. Ainda temos muito o medo da flexibilidade para estados e municípios. Precisamos colocar grandes regras, alguns parâmetros, ajudá-los, mas ter estados e municípios que façam coisas diferentes não é ruim, a gente aprende ao longo do tempo. É muita pretensão achar que a gente sabe todos os resultados das políticas públicas sem mensurá-las, sem acompanhá-las.
O modelo brasileiro é rede-orientado, não é escola-orientado. Por um lado é ruim, pois você diminui muito a autonomia da escola. Mas por outro lado não é tão ruim, pois o modelo rede-orientado tem a ver com uma enorme desigualdade entre as escolas e entre os municípios. Se o Brasil já é desigual entre os estados e mais entre os municípios, imagine entre as escolas. É como se você fosse medindo a desigualdade e ela fosse aumentando gradativamente. Algum grau de coordenação é muito importante, pois o sucesso da educação envolve ter gente qualificada na gestão e na sala de aula, envolve ter bons processos e instituições, mas envolve ter mecanismos de atração dos profissionais. E se o Brasil fizesse isso por escola, qual seria o resultado? Aumentaria a desigualdade. O sistema rede-orientado é bom para reduzir a desigualdade. Por outro lado, podemos dar graus de autonomia às escolas segundo certos resultados e interligação com a comunidade escolar, parecido com o modelo dos distritos escolares americanos. Isso pode ser feito. Só não transformaria o Brasil num modelo escola-orientado por completo porque isso aumentaria a desigualdade, como as charter schools aumentam a desigualdade. Isso é um dado empírico, não é um dado ideológico. Então é preciso fazer algo para coordenar. A partir dessa coordenação, posso criar incentivos que favoreçam maior autonomia da escola segundo seus resultados em avaliações educacionais, junto à comunidade escolar. Poderia haver indicadores para isso. Quando o Brasil começou a ter programa de dinheiro direto na escola era uma forma de aumentar a autonomia. Só que dão o dinheiro e falam “boa sorte”. Esse dinheiro ajuda as escolas, há estudos que mostram isso. Mas ninguém sabe o que é feito com ele. Se tivéssemos mais avaliação de algum tipo de autonomia dada à escola, poderíamos alargar esse processo segundo resultados mensuráveis.
Primeiro, numa série temporal, atraí-lo o mais cedo possível, desde o ensino médio, que é o que se faz em boa parte do mundo. Criam-se incentivos, no médio, na faculdade, mecanismos de bolsa, bolsas vinculadas à atuação desde o ensino médio ou na faculdade já na vida escolar de uma determinada escola. Segundo, fazer com que o aluno desde cedo tenha contato com a escola para que saiba se tem vocação ou não. Terceiro, como se constitui a carreira inicial? Em geral, o mais importante para atrair alguém a uma profissão é o salário da carreira inicial. No Brasil, no caso da educação, é o inverso das carreiras típicas de Estado. Se você for para Magistratura, Ministério Público, Receita Federal, o salário inicial é muito mais alto do que deveria ser. Na carreira de professor e mesmo de médico, não é que o salário final é muito mais alto do que deveria ser, mas é mais próximo do que deveria ser, e o salário inicial é muito ruim. Tem um efeito de seleção adversa, não consegue atrair os melhores. E aí aqueles que conseguem sobreviver ao sistema ganham um salário razoável no final da carreira, em alguns estados isso significa R$ 8 mil, R$ 9 mil, R$ 10 mil. Mas tem de começar com um salário muito baixo, aí você não atrai os melhores. Fora isso, você tem de ter um professor que trabalhe somente em uma escola. Se o professor estiver apenas em uma escola – e já fizemos pesquisa qualitativa sobre o assunto – isso é mais importante que o salário. Onde ele possa ter educação continuada, e também a possibilidade de ser não só professor de sala de aula, mas professor coordenador, mentor.