NOTÍCIA
Em entrevista, a pedagoga Luiza Lameirão fala sobre o desenvolvimento da criança pelo olhar da pedagogia Waldorf, o qual abrange todas as dimensões humanas; ela enfatiza a autonomia do brincar
Publicado em 30/12/2018
Os sete primeiros anos de vida, conhecidos como primeiro setênio pela pedagogia Waldorf, são cruciais para o desenvolvimento do indivíduo e devem ser respeitados e impulsionados de acordo com a necessidade de cada criança.
A pedagoga e escritora Luiza Lameirão tem uma longa experiência com formação de professores Waldorf e, atualmente, é uma das professoras convidadas da Faculdade Rudolf Steiner. Além disso, presta consultoria para escolas antroposóficas no Brasil e Portugal e atua no Instituto Olinto Marques de Paulo, que desenvolve projetos de educação infantil em creches públicas e ONGs.
Educação entrevistou a pedagoga que revela como a pedagogia de Steiner, que ano que vem completa 100 anos, lida com o desenvolvimento das meninas e meninos.
Que linguagem e atividade a escola deve abordar na educação infantil a fim de respeitar o processo da criança?
Na educação infantil a criança está se tornando hábil na sua própria casa que é o corpo. Então, basicamente, a criança precisa ter: autonomia para mover-se, e mover-se sempre por meio da iniciativa delas — correr, saltar, pular são ações derivadas do aprendizado do andar. Sendo assim, o que ela mais precisa é ativar o seu corpo a partir da postura ereta que ela conquistou.
Esse lado da movimentação é privilegiado se a criança tem um espaço que ela possa explorar por conta própria. Também a criança é bem aberta para o que ela percebe no mundo. Então, o espaço com muitas informações imprime nela vivências que podem inibir seus movimentos autônomos.
O que o educador(a) precisa saber sobre os sete primeiros anos da criança, segundo Rudolf Steiner, pai da pedagogia Waldorf?
Nesses primeiros sete anos, do ponto de vista da pedagogia Waldorf, baseada no legado de Rudolf Steiner, a criança passa pela educação infantil e basicamente precisa ser cuidada naquilo que ela ainda não é autônoma. O ser humano é o ser vivo mais dependente do adulto; a criança precisa ser cuidada do ponto de vista da alimentação, do sono, do ambiente adequado para que ela se ative e ela precisa ter possibilidades de se ativar.
Sendo assim, eu preciso conhecer o que a criança pode em cada período.
Esses primeiros sete anos contêm as três primeiras conquistas que diferenciam o ser humano de todos os outros seres vivos que são: a conquista da postura ereta e o andar, a conquista da fala — que torna a criança sociável entre os seres humanos — e a conquista de perceber-se como um ser único quando a criança diz Eu para si mesma. Isso não ocupa os primeiros sete anos, ocupa os três primeiros anos, mas estão contidos nessa faixa etária.
Esse primeiro período é fundamental para a vida e os primeiros sete anos alargam e ampliam a conquista do andar. Por isso, a movimentação é tão importante. Mas precisamos compreender de que maneira isso acontece.
Existe um binômio básico de aprendizado. A criança mostra, logo ao nascer, que ela quer mover-se; a princípio, os movimentos dela são caóticos ou reflexos, até que ela conquiste direcioná-los. Além disso, a criança está muito aberta, entregue ao mundo. Assim, movimentação e percepção andam juntas e constituem esse binômio. Quando percepção e movimento se encontram, a imagem percebida entra em ação e surge o tempo da imaginação, do faz de conta. E poder levar o faz de conta como uma realidade é muito importante para as crianças no primeiro setênio.
E, por fim, elas chegam a colocar intenção, objetivo na ação típica da infância que é o brincar e quando a criança coloca a intenção é porque consegue, interiormente, reapresentar alguma vivência que ela quer reavivar no brincar.
Por exemplo, se ela passou o fim de semana com os avós e pescou, talvez ela queira brincar de pescaria. Ou se foi ao circo, ela vai querer brincar de circo. Só que a qualidade não é mais puramente baseada na imaginação, é baseada na capacidade de representar internamente aquelas vivências e escolher por uma delas. E essa escolha que eu chamo também de intencionalidade é a base para o ser humano se tornar adulto, autônomo, direcionando sua própria vida de acordo com seus próprios propósitos. Isso acontece ainda na primeira infância.
Qual a relação dos pequenos com o tempo e como as escolas devem compreender e respeitar?
A relação com o tempo, nos nossos dias, vem se tornando cada vez mais apressada e temos a sensação de que o tempo passa mais depressa. Eu, com a minha idade, já acho que o tempo passava um pouquinho mais devagar quando eu era mais jovem. Essa pressa impede que nós desfrutemos do momento presente. E a criança, no mundo, não vive no passado e nem no futuro, ela vive no presente.
Um grande pensador português que viveu no Brasil, Agostinho da Silva [1906-1994], disse que “as crianças quando brincam suspendem o tempo”. É como se o tempo deixasse de ser um fluxo que eu possa apressar e passa a ser um tempo vertical, um tempo daquele momento. E é por isso que ela pode até nos contar assim: “amanhã eu pesquei com meu avô”. Ou “amanhã eu fui ao circo com meus primos”. Ela está falando de uma coisa que já aconteceu, mas ela ainda não coloca no fluxo do tempo. E respeitar isso é dar oportunidade para que as crianças realmente se coloquem em atividade por conta própria e não apressá-las, avisando que já é hora de fazer outra coisa.
O exercício de desenho de formas, que trabalha com reta e curva, foi desenvolvido por Rudolf Steiner. Por que a pedagogia Waldorf afirma que essa atividade auxilia no desenvolvimento da escrita?
O desenho de formas é uma atividade típica do ensino fundamental, que nas escolas Waldorf tem início no segundo setênio. A escrita, assim como todos os sinais gráficos, utiliza a linha como instrumento. Então, traçamos linhas com os alunos. Na medida em que a criança começa a escrever, a linha ganha um significado. Sendo assim, se a criança puder traçar a partir do movimento, sempre partindo das linhas retas e da curvas, exercitará o traçado antes da alfabetização, portanto, já terá a habilidade de mãos para poder escrever. Além disso, terá contemplado linhas que favorecem a compreensão e o cálculo geométrico. Essa é uma característica peculiar da pedagogia Waldorf. Desenho de formas e Euritmia são os conteúdos que a diferenciam de outras propostas pedagógicas.
Qual a contribuição da senhora na Faculdade Rudolf Steiner?
A Faculdade Rudolf Steiner é recente [2018], mas a formação de professores Waldorf no Brasil vem de longa data. Desde a década de 70 do século passado, já existia a necessidade de formar professores para uma pedagogia tão específica, e para ampliar o repertório do educador, oferecendo-lhe instrumentos de como lidar com as crianças.
Eu trabalho com formação de professores há 26 anos. Acompanhei o surgimento desse sonho que é a Faculdade Rudolf Steiner e hoje trabalho como docente convidada.
A senhora pode contar um pouco dos seus projetos e atividades recentes?
Além de lecionar nas pós-graduações da Faculdade Rudolf Steiner, também trabalho no Instituto Olinto Marques de Paulo (IOMP), que há 11 anos atua na formação continuada de educadores em creches públicas e ONGs, no âmbito da educação infantil. O objetivo é ampliar a percepção que se tem das necessidades das crianças, e em especial dar oportunidade para que os pequenos se ativem brincando, também levando um novo ritmo de trabalho, que respeite essa relação com o tempo. Além disso, eu presto consultoria para escolas Waldorf no Brasil, em Portugal, e mais recentemente em países da América Latina.
E estou transformando em livros esses anos todos de trabalho dedicado à preparação de aulas. Entre as publicações já disponíveis, com foco na educação infantil, estão Criança Brincando! Quem a educa?, Bola e Boneca, e o mais recente Seixos Rolados [os três da Editora João de Barro], que traz informações importantes para contadores de histórias, uma atividade, aliás, cujo preparo é indispensável aos educadores nos jardins de infância Waldorf. É assim que me ocupo ultimamente.
Como aproveitar o impulso de meninos e meninas para fazê-los crescer? E por que a senhora diz que devido à relação com o sol as escolas para crianças deveriam funcionar no período da manhã?
Os cronobiologistas dizem que a criança amanhece os tempos. Quando li essa frase, pensei: até parece que eles são poetas. Mas os cronobiologistas estudam os ritmos biológicos. E assim como existe o ritmo do dia em que amanhece, o sol se levanta e depois anoitece, existe o ritmo da vida humana. O amanhecer na vida humana é a infância, depois tem o sol quente que vai decrescendo até a idade madura, que é quando o idoso pode colher a sua própria vida, assim como no fim de cada dia a gente pode colher o que fez naquele dia.
As crianças estão no amanhecer da vida e a gente tem que aproveitar esse impulso que surge em cada amanhecer que é ter a disposição para o que virá. A criança está aberta, entregue, confiante e perseverante para o que virá. Por isso é mais propício o período da manhã do que o da tarde.
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