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Raquel Alves

Filha do educador Rubem Alves, foi presidente do Instituto Rubem Alves. É escritora, palestrante e fundadora da Arquitetura do Sensível

Publicado em 22/11/2022

Torço para que a técnica de dar aulas dê espaço para a humanização

Educação não é coisa da ciência exata. Educação é coisa de gente. E gente só se educa quando sentimentos são respeitados

Little,Boy,Have,Fun,Playing,With,Kite,Outdoors,,Focus,On Foto: Shutterstock

Quando criança meu pai me ensinou a empinar pipas segurando a linha esticada. Eu não entendia a razão de segurar a pipa se a graça é justamente vê-la voando o mais alto possível:

—Papai, se a gente cortar a linha a pipa não voa mais alto? Perguntei.

—Não, Queca, se não segurarmos a linha esticada, a pipa cai! Ele me respondeu olhando sorridente para aquele pontinho vermelho no céu.

Embora isso pareça paradoxal, muitas coisas na vida são exatamente como a pipa: só ficam bem quando tem outra pessoa segurando a linha do outro lado. A convivência é um bom exemplo disso, pois para nos relacionarmos bem, precisamos de limites. Não podemos falar ou agir de qualquer jeito… Regras de convivência estabelecem limites, como se de um lado tivesse uma pipa e do outro uma mão que tensiona a linha. E só voamos bem se a linha da convivência estiver bem estabelecida, não é? 

Outro exemplo disso, até mais acentuado que o anterior, são as crianças. É sabido que crianças que têm limites se sentem seguras. A gente não deixa a criança de quatro anos ir sozinha ao banheiro do shopping, por exemplo. O caminho é longo, cheio de entradas e placas, além de pessoas que podem ser mal intencionadas. Para a criança ficar segura, a gente vai junto, segurando pela mão. Mas se ela já tiver 10 anos, souber ler e conhecer o caminho, pode ir sozinha e se sentirá segura, desde que saiba onde nos encontrar quando terminar de fazer o seu xixi. 

A gente vai esticando cada vez mais a linha e a criança ganha mais espaço e coragem para fazer suas coisas e conquistar autonomia. Isso se chama segurança emocional.

Pessoas com segurança emocional voam alto, se destacam em empresas, se arriscam a inovar e pensar seus próprios pensamentos. A gente precisa saber que nossa linha não será cortada caso a gente erre, seja lá em que situação for. Quando nossas linhas são cortadas, o relacionamento acaba, somos desligados do trabalho e nos vemos forçados a nos reconstruir.


Leia: E o alfabetismo emocional?


Reconstruir a vida pode ser ótimo e renovador, mas viver em frequente renovação é sinônimo de nem alçar voo… A segurança emocional implica em uma construção de pensamentos, de formas de se relacionar e de maturidade cognitiva, psicológica e emocional. É um desenvolvimento constante, onde a humanidade existe, tanto em suas competências quanto em seus pontos fracos. E consequentemente, exige tempo. Não existe segurança emocional que se construa imediatamente, da mesma forma que a pipa antes em nossas mãos não vira um ponto minúsculo no céu de uma hora para outra.

Oferecer segurança emocional pode ser algo intuitivo. Tem gente mais sensível que tem mais facilidade. Mas se não for intuitivo, essa capacidade pode – e deve – ser desenvolvida. 

Essa é a meu ver uma atribuição fundamental dos educadores: oferecer segurança emocional. Ir para escola, estudar, assistir aula e fazer provas não deve ser um campo de guerra em que podemos ser aniquilados a qualquer momento. A maturidade psicológica e emocional se constrói dentro das salas de aula também.

A regra é simples: enquanto humanos, somos o espelho perfeito do que deve ser feito. Se não gostamos quando apontam o dedo para nós enfatizando nossos erros e falhas, por exemplo, por que fazer o mesmo? A gente sabe que, para não machucarmos as pessoas, precisamos ressaltar seus pontos positivos e apontar o que precisa ser melhorado. Com carinho e empatia, da mesma forma que gostaríamos que fizessem conosco.

Pessoas com sentimentos feridos e segurança emocional abalados são como o motorista que fecha a janela do carro quando um pedinte se aproxima: com medo de ser atacado, blinda-se e protege-se… Dificilmente conseguimos acesso. Fica um de um lado e outro do outro, sem linha nenhuma que os liga, fingindo que convivem e reconhecem. 

Já imaginou essa relação entre alunos e professores, em que um se defende do outro? Como se estabelece a relação de ensino e aprendizagem?

Educar sem acessar o íntimo, tanto o racional quanto o emocional, é tão eficaz quanto tampar o sol com meia arrastão. Alunos não podem olhar para os professores como sujeitos perigosos dos quais precisam se proteger…

Então professores, não se esqueçam de seus espelhos… Olhem-se, admirem-se, reconheçam seus pontos a melhorar, humanizem-se e lembrem-se de vez ou outra resgatarem os tempos em que se sentavam nas carteiras dos alunos. Só assim nosso espelho reflete, só assim a pipa voa alto, só assim oferecemos a segurança emocional tão preciosa.

Torço para que um dia a técnica de dar aulas dê espaço para a humanização. Educação não é coisa da ciência exata. Educação é coisa de gente. E gente só se educa quando sentimentos e pensamentos são respeitados e preservados. Então educadores, empinem suas pipas e deixem que voem alto, segurando a linha da construção humana bem firme.

Escute nosso episódio de podcast:


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