NOTÍCIA
Em 2016, número de leitores em relação ao total da população era de apenas 56%; formação docente é entrave para melhorar cenário
Se em maio de 2007, quando a revista Educação completava dez anos de existência, um filme da década anterior, Central do Brasil (1998), mostrou-se como a alegoria mais adequada para falar das dificuldades de estender o acesso à leitura para a maioria da população brasileira, agora, quando esta publicação completa 20 anos, o primeiro título que vem à lembrança para tratar do mesmo problema é o americano Feitiço do tempo (1993), com Bill Murray.
Nele, um repórter que se dedica à cobertura de questões metereológicas é enviado a uma pequena cidade americana por ocasião da Festa da Marmota, uma comemoração provinciana pouco empolgante. Ele o faz de má vontade, pois a “sorte” de acompanhar a efeméride lhe é atribuída já há alguns anos. Mas eis que, talvez como prêmio a seu comportamento arrogante e pouco profissional, ele fica preso naquele dia. A cada vez que acorda, o suplício se repete e ele não consegue sair do indesejado claustro.
É mais ou menos o que parece acontecer com a relação entre os brasileiros e a leitura, seja no plano da educação, seja na sociedade como um todo. E, pior, se em 2007 o país começava a respirar ares de euforia, em 2017 eles descambaram para uma espessa melancolia e desalento.
E(in)voluções
Mas talvez o desânimo generalizado, proveniente das crises política, econômica e social, sirva mais para escancarar os problemas do que para mostrar alguns pontos em que parece ter havido evolução, ainda que não generalizada.
Entre 2011 e 2016, por exemplo, intervalo que separa as duas últimas edições da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, houve pequena evolução seja no número de leitores em relação ao total da população, passando de 50% a 56%, seja na média de livros lidos por ano, que passou de 4 para 4,96 por leitor. No levantamento, são considerados leitores aqueles que leram um livro, total ou parcialmente, nos três meses anteriores à pesquisa.
Se dão alento, os números chamam a atenção para alguns aspectos delicados: dos 4,96 livros lidos em média, apenas 2,88 o foram por vontade própria; do total de leitores, apenas um em cada quatro, 25%, declararam ler “por gosto”. Uma proporção um tanto pequena para um país que mais do que duplicou o total de habitantes com formação superior na década passada.
Quanto aos problemas recorrentes, aqueles que nos fazem viver o eterno dia da marmota, vale listar alguns: descontinuidade das políticas públicas, escasso acesso ao livro nas camadas sociais mais pobres, concorrência de novos meios de comunicação, em especial os digitais, e precária formação inicial e continuada dos docentes.
No quesito da descontinuidade das políticas públicas, um exemplo claro está no próprio Plano Nacional do Livro e Leitura, política lançada em 2006 com o intuito de dar visibilidade e multiplicar ações já em prática, patrocinadas por diversas instâncias sociais, públicas e privadas. Dela, decorreram ações como aquela que resultou em lei que obriga todas as escolas a terem bibliotecas até 2020.
Assentado em quatro eixos (democratização do acesso; fomento à leitura e formação de mediadores; valorização da leitura e comunicação; apoio à economia do livro), o PNLL passou por mudanças ainda nos governos do PT. Nos primeiros anos, o então secretário-executivo José Castilho Marques Neto dava mais ênfase aos dois primeiros quesitos. Substituído no primeiro governo Dilma Rousseff pelo jornalista Galeno Amorim, o programa voltou-se mais ao apoio à economia do livro. Marques Neto voltaria no segundo governo Dilma e sairia no ano passado. O atual governo diz que o PNLL é projeto prioritário e que está “empenhado em aprofundar relações com os entes federados”.
Formação docente
Mas, como diz a professora Magda Soares, referência em letramento e alfabetização com projeto de destaque junto à rede de Lagoa Santa (MG), o problema central continua a ser a formação docente, especialmente no que tange aos professores da educação infantil e do fundamental 1. Falta a esses docentes, em geral, formação específica para alfabetizar, particularmente no que diz respeito ao modo como as crianças aprendem.
“É grande a frequência com que professores acusam as dificuldades de aprendizagem das crianças – que chamo de “dificuldades de ensinagem” –, atribuindo culpa às famílias. Isso não é justo, pois não se pode exigir daqueles que não tiveram o direito de uma alfabetização regular e completa que deem ajuda à criança para a sua escolarização”, diz, em relação a uma das principais justificativas para o insucesso escolar.
A educadora, no entanto, vê alguns indícios de evolução. Como exemplo, cita o Programa Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic), que, além de partir do reconhecimento de que é preciso buscar educação de qualidade, ofereceu formação de mais longo prazo.
“Trata-se de uma política pública importante, com um ano de formação, e não 40 horas ou 20 minutos aqui e ali. É preciso que tenhamos ações sistemáticas, voltadas, sobretudo, à sala de aula”, avalia Magda Soares. Mas acrescenta: “As políticas públicas de formação já vêm com o material pronto para ensinar o professor através da leitura e discussão desse material. Não é isso que forma um professor. É preciso trabalhar em articulação com a prática e a realidade do professor em sala de aula”.
Para que essas políticas sejam mais efetivas, Magda questiona a oferta por adesão. No Pnaic, por exemplo, as redes escolhiam aderir ou não ao programa. E os professores daquelas que aderiram também faziam essa escolha.
“Se você está buscando qualidade na educação, não se trata de adesão. Todo mundo tem de se qualificar, pois todas as crianças e jovens têm direito à educação de qualidade, não só aquelas que estão sob o professor que decidiu se especializar. Caso contrário, não é uma ação de impacto”, defende.
Sintoma
Mas, se as políticas públicas têm caminhado, o ambiente geral do país anda crítico em tempo de marmotas. Uma das boas contribuições dadas pelos institutos empresariais nos últimos anos havia sido a criação e medição frequente do Indicador de Alfabetismo Funcional, o Inaf, realizado em parceria pelo Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, e pela ONG Ação Educativa. Em sua última versão, inclusive, o Inaf havia sofisticado o indicador, criando uma nova categoria que dividia os leitores considerados plenos em intermediários e proficientes. O que mostrou, aliás, que apenas 8% da população adulta está no nível mais alto. Mas, com a venda do Ibope a um grupo estrangeiro, o IPF saiu do projeto. Como em relação a tantas outras coisas, resta a dúvida: o Inaf continuará a existir?