NOTÍCIA

Edição 235

Autor

Myriam Chinalli

Publicado em 13/12/2016

Pedagogia e psicanálise não devem se misturar

Segundo a psicanalista Melanie Klein, práticas devem ser guiadas por profissionais diferentes

Liberar a fantasia: o objetivo da educação psicanalítica a partir da perspectiva defendida por Melanie Klein | © Gustavo Morita

Liberar a fantasia: o objetivo da educação psicanalítica a partir da perspectiva defendida por Melanie Klein | © Gustavo Morita

A discussão a respeito da posição de quem trata crianças – se é educador ou analista – existe desde os primórdios da psicanálise, causando debates teóricos acalorados. Melanie Klein (1882-1960) teve um posicionamento radicalmente contrário à ideia de “comunhão” entre psicanálise da criança e educação. Acreditava que a análise de crianças não diferia em quase nada da análise de adultos. Buscava eliminar qualquer intervenção pedagógica de seus atendimentos. Considerava que psicanálise e educação eram processos absolutamente distintos, que deviam coexistir, mas orientados por pessoas diferentes.
Em sua primeira comunicação pública, na Conferência da Sociedade Húngara de Psicanálise, em 1919, Melanie Klein apresentou o trabalho “Influência do esclarecimento sexual e o afrouxamento da autoridade no desenvolvimento intelectual das crianças” como tentativa de substituir a “educação tradicional” de Fritz, 5 anos (seu primeiro caso, que na realidade era seu filho Erich), por uma “educação psicanalítica”. Criticou a educação tradicional por diminuir a inteligência e a capacidade criadora das crianças. Também dizia que esse tipo de educação impunha a ideia de Deus e a repressão sexual, envolvendo a sexualidade infantil nos “véus do segredo, da falsidade e do perigo” e cobrindo-a de mistério.
No começo de 1924, apresentou uma comunicação altamente controvertida sobre a psicanálise de crianças pequenas, na qual começava a questionar certos aspectos do complexo de Édipo, ideia desenvolvida por Freud. Em 17 de dezembro do mesmo ano, Melanie Klein foi a Viena para fazer uma comunicação sobre a psicanálise de crianças e, nessa ocasião, confrontou-se diretamente com Anna, filha de Freud. O debate estava então aberto, e trataria do que deveria ser a psicanálise de crianças: uma forma nova e aperfeiçoada de pedagogia (posição defendida por Anna Freud) ou a oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento (como queria Melanie Klein).
Mudando-se para Londres, Melanie experimentou suas teorias, tratando dos filhos perturbados de alguns de seus colegas. Sua personalidade invasiva provocou à sua volta paixões e repulsas. Em março de 1927, Anna Freud fez uma comunicação ao grupo berlinense, que constituiu um verdadeiro ataque às teses kleinianas. Houve críticas a Anna, e Freud irritou-se. A discordância entre ambas não parava de crescer: Anna circunscrevia a análise de crianças apenas como extensão do mal-estar de seus pais, enquanto Melanie via a criança de forma autônoma, tanto em sua demanda quanto em seu tratamento.

Construções e transformações

Para Klein, durante a análise de uma criança, devia-se explorar a relação desta com seus pais em profundidade, sendo desnecessário e mesmo incompatível que o analista exercesse qualquer influência educativa. Encarava o papel dos pais da “realidade” de forma bastante diferente dos pais internalizados pela criança, postulando que as imagens destes, mesmo em crianças pequenas, já sofreram distorções e transformações.
A base técnica de Melanie Klein era a mesma utilizada com adultos: a criança podia expressar-se associando os assuntos e as palavras livremente. Para sustentar a posição do analista, Klein defendia que sua função deveria se afastar das tarefas do educador que, muitas vezes, se ocupava em proibir e tolher, enquanto a do analista deveria concentrar-se em permitir e liberar certos comportamentos, sobretudo por meio dos jogos e das brincadeiras.
Klein afirmava que era preciso educar as crianças com o mínimo de repressão de sua sexualidade e protegê-las dos “perigos da ignorância” por meio do esclarecimento. Assim é a educação que ela buscava realizar com Fritz (Erich, seu filho): uma educação baseada sobre a “franqueza irrestrita”, capaz de liberar e satisfazer sua curiosidade, agindo contra a repressão e a inibição de sua capacidade intelectual. Suas perguntas sobre o nascimento das crianças eram respondidas com absoluta veracidade e, quando necessário, numa base científica apropriada ao seu desenvolvimento, mas tão breve quanto possível.
Nesse primeiro momento, em 1919, a educação psicanalítica deveria combater ainda a onipotência em todas as suas frentes: a ideia de Deus, os contos, as fantasias e tudo o que manifestasse a “megalomania incurável do ser humano” – pesada ameaça que pairava sobre o pensamento e que, segundo ela, punha em risco o desenvolvimento intelectual e a aprendizagem.
Já em 1921, no desenvolvimento do caso Fritz-Erich, a proposta de perseguir as fantasias em nome da liberdade de expressão sofreu uma transformação: o objetivo da “educação psicanalítica” passou a ser a “liberação da fantasia”. Essa relação educativa e psicoterápica de Melanie Klein com Fritz-Erich marcou a origem da técnica kleinista da psicanálise das crianças por meio do brincar.

Poderosa chefe de escola

Diversamente do annafreudismo, o kleinismo não foi simples corrente. Constituiu-se como um sistema de pensamento a partir de um mestre (no caso, uma mulher) que modificou inteiramente a doutrina e a clínica freudianas, desenvolvendo novos conceitos e instaurando uma prática original de análise, da qual decorreu um grupo de formação didática diferente da do freudismo clássico.
Melanie Klein e seus sucessores fizeram escola, integrando na psicanálise o tratamento das psicoses (esquizofrenia, casos borderlines, distúrbios da personalidade ou do self), inventando o próprio princípio da psicanálise de crianças (por uma rejeição radical de qualquer pedagogia tradicional) e, por fim, transformando a interrogação freudiana sobre o lugar do pai, sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da sexualidade numa investigação da relação arcaica com a mãe, numa evidenciação do ódio primitivo (inveja) e, por último, numa busca da estrutura psicótica (posição depressiva / posição esquizoparanoide), característica de todo sujeito. Assim, os kleinianos inscreveram a loucura na vida de todos os sujeitos humanos.
A história particular de Melanie também foi marcada por intensos conflitos. Em 1932, sua filha Melitta Schmideberg, casada com Walter Schmideberg, amigo da família Freud, tornou-se analista e se afastou de Melanie. A partir de 1933, Melanie Klein passou a sofrer ataques incessantes de Melitta, em público.
Além disso, alguns meses depois da chegada dos Freud a Londres, em 1939, as hostilidades com Klein irromperam efetivamente, provocando a partir daí intensas reuniões públicas para discussões teóricas. Os confrontos assumiram tal intensidade que o pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott (1896-1971), então partidário de Melanie, interrompeu durante a Segunda Guerra uma noite de debates para observar que um ataque aéreo estava ocorrendo e era urgente procurar abrigo – e ninguém havia se dado conta.
Nunca tendo se reconciliado com sua filha Melitta, deixando inacabada uma autobiografia, Melanie Klein morreu de câncer de cólon em Londres, a 22 de setembro de 1960, sem nada perder de seu dinamismo e combatividade intelectual até o final da vida.


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