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Autor

Luciana Alvarez

Publicado em 01/12/2015

Base em construção

Duas décadas depois de a LDB determinar sua criação, a Base Nacional Curricular Comum toma forma, não sem suscitar críticas e debates, o que já era esperado. Mas, uma vez finalizada, será preciso não só um grande esforço para implementá-la, como reconhecer que ela não elimina muitos outros problemas estruturais da educação brasileira

© Shutterstock

Por quase 20 anos, o país passou ao largo do artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB, de 1996), aquele que determina a criação de uma “base nacional comum”.  Hoje, finalmente, há um esforço concreto para produzir o documento que guiará a Educação Básica em todo o Brasil, da educação infantil ao ensino médio.

Embora a própria necessidade da existência da Base Comum seja motivo de disputa entre acadêmicos, o MEC apresentou em setembro um texto de referência, aberto para críticas e sugestões via internet até dia 15 de dezembro no link http://basenacionalcomum.mec.gov.br.

A próxima etapa do trabalho será agregar as contribuições da sociedade, para então submeter a nova versão de texto a consultas públicas e, na sequência, ao Conselho Nacional de Educação até julho de 2016. Se o cronograma se mantiver, será o fim da espera.

Enquanto a Base era apenas um plano para um futuro indeterminado, quem assumiu o papel de orientar os professores de forma centralizada foram as matrizes de avaliações externas – Prova Brasil e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), por exemplo – assim como os materiais didáticos, que embora sejam avaliados pelo MEC, são feitos por empresas particulares. E, de forma mais genérica, as diretrizes curriculares e os parâmetros, mais específicos.

O processo atual foi desencadeado pelo Plano Nacional de Educação, aprovado em 2014, ao estabelecer um prazo de dois anos para a redação de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Com um prazo apertado e muitos interesses em jogo, chegou a haver uma proposta paralela, conduzida pelo então ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger. Mas foi a versão coordenada pelo MEC que acabou legitimada e agora está avançando.

A principal razão alegada para produzir a BNCC é garantir os direitos de aprendizagem para todas as crianças e adolescentes, reduzindo as desigualdades que fazem com que algumas crianças saiam da escola cheias de conhecimentos e habilidades, e outras não. Mas fazer o desenho de uma base implica uma série de escolhas de natureza normativa – como determinar o que é uma disciplina, o que vai ser contemplado em cada uma – e também de natureza crítica, a respeito do mundo e da sociedade. Dificilmente haverá consensos, seja sobre as disciplinas e seus conteúdos, seja sobre os valores e visão de mundo.

Escola e cotidiano

Em todos os campos do conhecimento, em todas as etapas do ensino, o texto da Base procura uma aproximação dos conteúdos com a realidade do aluno. “Essa é uma opção teórico-metodológica, que tem a ver com a visão do que seja a educação. Mesmo a ideia do que seja educar não é consensual”, afirma Arthur Magon Whitacker, professor de geografia da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), consultor do documento “Orientações Curriculares para o Ensino Médio”, produzido pelo MEC em 2006.

“Na visão que orienta a Base acredita-se que, no processo de ensino-aprendizagem, se você parte da realidade próxima ao aluno (sobretudo os menores) e da realidade conhecida pelo aluno, ainda que distante (isso com alunos mais velhos, no fim do fundamental ou no médio), amplia-se a capacidade deles de lidar com conceitos, conteúdos e pensamentos”, explica Whitacker.

As escolhas metodológicas gerais da BNCC enfrentam críticas de duas frentes: alguns acreditam que o texto está esvaziado de conteúdos e conhecimentos específicos, outros veem o documento como “conteudista” e “disciplinar” demais, com saberes trabalhados isoladamente e sem colocar o foco no aluno. As discordâncias, porém, são encaradas como “necessárias” por Whitacker: “O que me preocuparia seria uma visão hegemônica. Nossa sociedade é plural e precisamos ter capacidade de dialogar”.

 
Base não é currículo

A Base é um ponto de partida e deve ser aprimorada por estados, municípios e pelos projetos político-pedagógicos das escolas, assim como pelo plano de ação dos professores, defende Antônio Augusto Batista, coordenador de pesquisas do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). “A partir das orientações da Base, o currículo vai se construindo em cadeia. Ele deve ser uma definição coletiva; o professor não pode decidir sozinho. Mas deve ter liberdade para usar o contexto social, ditar o ritmo, escolher como ensinar e como avaliar”, afirmou.

Em sua análise, a Base respeita a liberdade do professor, alunos e demais atores. “Antes do PNE, fizemos no Cenpec uma pesquisa sobre os documentos curriculares dos estados e percebemos uma tendência pormenorizante, que definia tudo, até o ritmo de aprendizado para todos. E isso não funciona, porque é o professor que sabe como dar andamento na sala de aula”, aponta. Nesse ponto, a Base se mostra como uma evolução em relação a outros documentos curriculares brasileiros, ao não especificar o tempo com que cada objetivo deve ser cumprido.

© Gustavo Morita
Antônio Batista, do Cenpec: a Base respeita a liberdade de ação do professor

Além de respeitar o espaço de atuação do professor, o texto de referência da Base também foi escrito em linguagem e formato adequados, avalia João Palma Filho, coordenador geral do Fórum Estadual de Educação do Estado de São Paulo e professor da Unesp. “Não é aquela linguagem de um acadêmico que escreve para outro acadêmico, numa espécie de ‘pedagogês’. O texto é claro, abandona as chamadas competências, que ninguém entendia; trata de objetivos gerais e habilidades, e ainda traz alguns exemplos. É acessível a quem fez uma licenciatura e passa 40 horas por semana na sala de aula”, diz o coordenador, cujas dissertação de mestrado e tese de doutorado versam sobre currículo.

Mais uma receita?

Mas o ideal de que professores exerçam sua autonomia, criando e adaptando as recomendações de documentos curriculares vindos de secretarias de Educação, não se verifica na prática, na opinião de Lívia Suassuna, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e uma das autoras do livro Ensino de língua portuguesa na Educação Básica – Reflexões sobre o currículo (Autêntica). Ela tem dúvidas sobre os benefícios que o novo documento trará.

“O principal achado da pesquisa que fizemos foi que os professores não constroem o currículo juntos: vão direto à fonte e trabalham exatamente o que estiver lá. Não há o trabalho autoral – e dar aulas tem de ser um trabalho autoral”, afirmou. Portanto, diz Lívia, sem capacitar o professorado como primeira medida, pode-se investir muito em um texto, sem que ele produza os efeitos desejados.

Para a professora da UFPE, a Base mantém uma visão simplista do trabalho docente, sem discutir formas de inserir o professor no processo da criação do currículo, junto a seus alunos. “A escola é muito academicista, baseada num modelo de transmissão de saber científico – não é um lugar de criação, abertura e possibilidades de apreensão do mundo. A escola restringe e impõe”, afirmou. E, com a nova Base, nada disso será alterado, acredita. Resta saber, seguindo essa lógica, qual seria a participação dos professores se fossem instados a fazê-lo.

Impacto

Por mais que se tivesse um currículo prescrito em detalhes, o que não é o caso, há uma grande distância entre torná-lo um documento oficial e sua chegada à sala de aula.  “Se alguém acha que na segunda-feira seguinte vão estar todos dando aula daquela forma, não conhece o sistema brasileiro. As escolas têm uma diversidade muito grande, e nunca vai haver uniformização. É preciso pensar numa articulação para levar à discussão do texto, além de equipar melhor as escolas e formar os professores. Só funciona se for em conjunto com as demais metas do Plano”, afirmou Palma Filho.

O mercado editorial de livros didáticos também precisará se adaptar. Hoje, em muitas escolas e redes que seguem os livros à risca, são seus autores que decidem a ordem dos conteúdos, assim como quais conteúdos são contemplados e quais ficam de fora. “Acredito que o processo para adequação dos livros ainda leve uns seis ou sete anos. Mas tendo esse elemento claro que é uma Base, os autores terão mais segurança para colocar nos livros o que é mesmo importante”, avalia o professor Marcelo Câmara, coordenador de equipe que redigiu o texto de referência da área de matemática.

Para além da preocupação de mobilizar professores e editoras de material didático para a aplicação da Base, há receio entre acadêmicos que estudam políticas públicas de que a BNCC acabe trazendo impactos negativos ao promover grandes avaliações padronizadas. Márcio Antônio da Silva, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Ensino Matemático (Sbem) e professor da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), alerta que os chamados “direitos de aprendizagem” que constam no texto de referência se parecem muito com descritores de avaliação. “Essa proposta me parece muito vinculada a avaliações. Vão normatizar com o objetivo de avaliar”, afirmou.

O problema, explica, seria seguir uma lógica de mercado (e não educacional), ao se estabelecer parâmetros de “produtividade” para professores e alunos, com possíveis punições a quem não alcançar as metas. Assim, acaba-se invertendo o processo de promover o aprendizado do aluno e depois avaliar, para criar um sistema que apenas instrui os estudantes a se saírem bem nas avaliações. Silva receia que a Base, pensada para garantir direitos de aprendizagem dos alunos, sirva mais como uma forma de controle e padronização.

Quem ajudou a escrever a Base  
Outra grande polêmica da Base diz respeito à forma de participação dos professores e estudiosos da área. Os chamados “protagonistas” do processo de redação foram 116 especialistas e 10 assessores indicados pelo MEC, ligados a 37 universidades, além de profissionais indicados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Uma das assessoras da área de linguagens, Isabel Cristina Frade, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembrou durante um seminário em agosto que todos foram nomeados por portaria, e que isso é, portanto, informação “pública”.

Mas na prática ninguém consegue achar a lista de especialistas ou assessores envolvidos no site oficial da Base. “No documento de referência, a gente não encontra quem fez. Quem escreveu esse texto? Tinha de vir assinado, para todos saberem quem são essas pessoas, que linhas pedagógicas elas seguem”, questionou Maria de Lourdes Lazzari, professora da Universidade de Brasília (UnB) na área de ensino de ciências da natureza. Sem saber quem são, tampouco se sabe quais os critérios usados para a seleção deles.

A consulta via internet é outro alvo de críticas. Segundo Márcio Antônio da Silva, da Sbem, o tipo de consulta parece apenas uma forma de legitimar o que já está pronto – e ninguém sabe exatamente como as contribuições virtuais vão ser usadas, embora elas gerem um protocolo, para que sejam acompanhadas. Lívia Suassuna diz que todo o processo parece muito apressado e que haveriam formas melhores de consulta, porém mais trabalhosas. “Existem as Conferências e Fóruns de Educação, os conselhos de classe, formas democráticas de promover a participação da sociedade”, disse.

Mas fossem esses os processos e provavelmente a Base estaria obsoleta quando pudesse ser lançada. Ou demoraria outros 20 anos para tomar corpo.


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