NOTÍCIA
Os 500 mil sírios que marcharam rumo à União Europeia em 2015 fazem lembrar outros grandes deslocamentos de povos, como o dos próprios europeus no pós-guerra. Em 2014, quase 60 milhões de pessoas deixaram suas moradas por causa de conflitos
Longa travessia: refugiados sírios embarcam em estação na Croácia rumo à Europa ocidental |
Centenas de milhares de pessoas marchando a esmo. Esta é uma cena que os europeus conhecem muito bem. Imagens que trazem algumas das piores lembranças para cidadãos franceses, alemães, italianos, poloneses, russos e muitos outros. O impacto das más recordações talvez tenha colaborado para a reação confusa dos países que compõem a União Europeia ao se depararem, nos últimos meses, com hordas de refugiados desesperados tentando encontrar em solo europeu um mínimo de dignidade.
Em setembro, a agência europeia de controle de fronteiras informou que, de janeiro a agosto de 2015, mais de 500 mil pessoas cruzaram as fronteiras da União Europeia – quase o dobro dos 280 mil registrados durante todo o ano de 2014. A dramática situação que agora impele os líderes do continente a planejar a acolhida de milhares de refugiados é, na prática, a nova etapa de uma tragédia que vem acontecendo há alguns anos, do outro lado do Mediterrâneo. Tragédia até então menos visível, provavelmente, por se desenrolar em países periféricos da atenção do mundo ocidental.
O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) informou recentemente que o número de pessoas deslocadas por guerras em 2014 alcançou um nível alarmante: 59,5 milhões de pessoas. Um triste recorde. O ano de 2013 já contabilizara 51,2 milhões de pessoas deslocadas em razão de guerras, o número mais alto desde a 2ª Guerra Mundial, quando mais de 60 milhões de pessoas foram desalojadas de suas casas.
Dos 59,5 milhões de pessoas transferidas à força até 31 de dezembro de 2014, 19,5 milhões eram refugiadas, 38,2 milhões eram deslocados internos e 1,8 milhão de solicitantes de refúgio. A Síria é o país que gerou o maior número tanto de deslocados internos (7,6 milhões de pessoas) quanto de refugiados (3,88 milhões). A seguir está o Afeganistão, com 2,59 milhões de refugiados, país que liderou a ingrata lista nas últimas três décadas, e em terceiro a Somália, com 1,1 milhão de refugiados.
Bem antes dessas 500 mil desesperadas pessoas tentarem alcançar por mar alguma ilha grega, a costa da Itália ou cruzar por terra a fronteira da Hungria, milhões de refugiados têm sido abrigados nos últimos anos pelos países vizinhos das guerras. É o caso dos sírios, espalhados entre o Líbano, com 1,2 milhão de refugiados, a Turquia, com 1,5 milhão, e a Jordânia, com 623 mil. É igualmente o caso do Afeganistão, que de um total de 2,6 milhões de refugiados, tem cerca de 1,5 milhão no Paquistão. E quase metade do 1,1 milhão de refugiados somalis está no Quênia.
Terra em transe
Nove guerras civis acontecem atualmente em países islâmicos no Oriente Médio e norte da África. Há guerras no Afeganistão, Iraque, Síria, sudeste da Turquia, Iêmen, Líbia, Somália, Sudão e nordeste da Nigéria. Alguns destes conflitos começaram há muito tempo, como na Somália, onde o Estado entrou em colapso em 1991 e nunca foi reconstruído, com islamistas radicais, piratas e soldados estrangeiros controlando diferentes áreas do país.
Entretanto, a maioria dessas guerras começou depois de 2001 e algumas após a Primavera Árabe de 2011, como no caso da Síria. No Iraque, já em convulsão social, política e econômica desde a invasão dos Estados Unidos em 2003, a recente expansão e brutalidade do Estado Islâmico deslocou cerca de 2,6 milhões de iraquianos. Menos visível aos olhos do mundo, os combates no sul do Sudão deslocaram em torno 1,5 milhão de pessoas desde o final de 2013.
A imagem do corpo do garotinho sírio, solitariamente morto à beira-mar de uma praia turca, despertou finalmente a atenção da mídia e dos governos mais ricos para a tragédia em curso. Um conhecido descalabro.
A outra face
O ex-ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Joschka Fischer, recentemente ponderou em artigo que a atual corrente migratória em direção à Europa mantém o padrão da antiga onda europeia pelo mundo. No século 19, a miséria e a busca por novas oportunidades foi a razão pela qual a maioria dos europeus deixava seus países, enquanto nas primeiras décadas do século 20 a razão foi escapar das grandes guerras e da consequente perseguição religiosa, étnica e política. Diferentes historiadores estimam que entre 50 e 60 milhões de europeus deixaram a terra natal, entre 1815 e 1930, rumo aos mais diversos destinos do mundo, como Estados Unidos, Canadá, Austrália, Argentina e Brasil.
A Alemanha, hoje um dos países mais procurados pelos refugiados que chegam à Europa, conhece bem esse drama. Segundo dados do Museu do Holocausto dos Estados Unidos, para escapar do nazismo cerca de 60 mil alemães de origem judaica migraram, entre 1933 e 1941, para a Palestina, na área que depois viria a ser escolhida para constituir o Estado de Israel.
Após o fim do conflito, em torno de 14 milhões de alemães foram expulsos dos antigos territórios no leste da Alemanha, então anexados pela Polônia e União Soviética. Após a 2ª Guerra, somente os Estados Unidos concederam mais de 400 mil vistos para refugiados europeus, entre 1945 e 1952. No mesmo período, o Brasil acolheu 29 mil refugiados. Uma das mais importantes migrações nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, cerca de 370 mil alemães por aqui chegaram entre 1824 e 1960.
Perseguidos durante a 2ª Guerra, estima-se ter havido, em 1946, cerca de 250 mil judeus deslocados pelo conflito, sem ter como retornar aos seus países de origem. Embora o conflito houvesse terminado, milhares de sobreviventes judeus continuaram na Alemanha, Áustria e Itália, alojados em Campos de Deslocados pela Guerra (DPs) criados pelos aliados para os sobreviventes.
Os motivos que obrigaram os europeus a buscar refúgio em outras terras são semelhantes aos que agora afligem líbios, afegãos, sírios e iraquianos. Tal como agora, a fuga dos europeus também refletia as transformações econômicas e sociais dos países de origem dos emigrantes. A grande fome na Irlanda de 1845 a 1852 gerou a ida em massa dos irlandeses aos Estados Unidos, assim como a pobreza e a ditadura espanhola de Francisco Franco empurrou em torno de 300 mil espanhóis para a América Latina.
Sangue negro
A guerra civil em Ruanda, em 1994, contabiliza o macabro genocídio de 800 mil a um milhão de tutsis assassinados pela maioria hutu, acusados de responsabilidade pela queda do avião que transportava o presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hutus.
Desde 1959, Ruanda estava sob o comando dos hutus, etnia cuja rivalidade com os tutsis tem como origem a colonização belga. Quatro meses depois do início da matança de 1994, os tutsis da Frente Patriótica Ruandesa, apoiada pelo exército de Uganda, conseguiram dar a volta por cima e, em julho daquele ano, assumiram novamente o comando de Ruanda.
Quando isto aconteceu, temendo vingança a maioria hutu deu início à fuga de cerca de dois milhões de refugiados, espalhando-se entre os países vizinhos, entre eles a República Democrática do Congo, na época o Zaire. A fuga em massa dos hutus, sensivelmente retratada pelo fotógrafo Sebastião Salgado em sua obra Êxodos, teve ainda consequências terríveis no vizinho Congo. Nas duas décadas seguintes, até os dias atuais, cerca de cinco milhões de pessoas morreram no Congo. Por duas vezes o governo tutsi de Ruanda invadiu o país vizinho acusando-o de proteger as milícias hutus existentes em seu território.
Longe do fim
Uma característica desoladora das guerras agora travadas no norte da África e no Oriente Médio é que nenhuma delas parece estar próxima do fim, o que talvez fizesse os refugiados voltarem para suas casas. A partir de 2011, a maioria dos sírios que começaram a fugir para a Turquia, Líbano e Jordânia acreditava que a guerra acabaria em breve e eles então poderiam regressar.
O aumento repentino dos refugiados sírios em direção à Europa é resultado da falta de esperança com o fim do conflito, obrigando-os a abandonar os campos de refugiados nos países vizinhos e sair à procura de um abrigo permanente. O mesmo ocorre com os líbios, com o país ingovernável desde a morte do ditador Kadafi, ou com os iraquianos, também fugindo do Estado Islâmico.
A organização das sociedades iraquiana, líbia e síria, tal como a conhecíamos, está em processo de desintegração. Regimes por décadas comandados com mão de ferro por déspotas e o vácuo de poder com a derrocada dos antigos ditadores fertilizaram o terreno para o surgimento de grupos radicais como o Estado Islâmico, espraiando o veneno do sectarismo para o resto do mundo islâmico, alimentando de sangue grupos na Nigéria, no Paquistão, no Iêmen ou na Síria.
A frieza dos números de refugiados esconde a perversidade da guerra e da miséria humana, cujas principais vítimas são as crianças. Uma catástrofe que o mundo conhece, já viu, e agora assiste novamente.