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Políticas Públicas

Presos ao passado

Visões distorcidas e preconceituosas ainda permanecem na representação de povos indígenas e de negros no material didático distribuído nas escolas brasileiras

Publicado em 02/04/2014

por Redacao

Presos ao passado

Reprodução de ilustração publicada em O trabalho n

 Generalismos, falta de diversidade, estereótipos, visões presas ao passado. É assim que negros e índios ainda são retratados na maioria dos materiais didáticos distribuí­dos às escolas brasileiras. Em ambos os casos, prevalece o protagonismo do homem branco e colonizador. No caso dos negros, a reprodução de estereótipos permanece em livros de diversas disciplinas, como língua portu­guesa, história e ciências. Já os povos indígenas se mantêm quase que invisíveis em livros que não sejam de história.

O papel conferido aos indígenas nas publicações tem gerado críticas por parte dos avaliadores do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Na avaliação dos 93 livros de história para os anos iniciais do ensino fundamental de 2013, a conclusão é que os materiais desconsideram a variedade étnica e cultural desses povos. Além disso, os avaliadores observaram que os indígenas costumam ser citados apenas nos conteúdos referentes ao período colonial, “sumindo” nos capítulos seguintes dos livros escolares. Na avaliação de 2014 para o material didático dos anos finais do fundamental, as críticas se repetem, mas de modo menos intenso.

Na tentativa de realizar um levantamento mais abrangente de falhas e indicar correções de rumo, o Ministério da Educação está elaborando um estudo sobre as representações dos indígenas nos livros da Educação Básica, a ser publicado em 2015.

No caso dos negros, as mudanças nos editais para seleção dos livros didáticos realizadas na década passada surtiram efeito, mas ainda não o suficiente, avalia o psicólogo Paulo Vinicius Baptista da Silva.

“De maneira geral, há algumas mudanças na maneira como os negros são representados nos livros didáticos, mas existem várias formas de hierarquia racial que permanecem”, relata.

O pesquisador coordena um grupo de estudos, na Universidade Federal do Paraná (UFPR), que analisa o impacto dos movimentos sociais e das políticas de promoção da igualdade racial nos livros didáticos. A conclusão dos pesquisadores é que a permanência das discriminações assume vários contornos – tais como a sub-representação das mulheres negras, o silêncio sobre as desigualdades raciais e sobre as particularidades da cultura negra.

#Q#

Teoria e prática
Desde 2008, a Lei nº 11.645 introduziu a obrigatoriedade da inserção da temática História e Cultura Indígena nos currículos oficiais das escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio. O ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira é previsto pela Lei n° 10.639, de 2003, que mesmo após mais de uma década ainda não é totalmente cumprida, como reportou a revista Educação (edição 200). O que as avaliações dos materiais didáticos revelam, entretanto, é a diferença entre a obrigatoriedade de tratar os temas e a forma como são abordados.

Autor do livro Crianças indígenas na cidade e na cultura escolar, o professor Roberto Sanches Mubarac Sobrinho, doutor em Educação e professor da Universidade do Estado do Amazonas, vê dificuldades ainda remanescentes no material didático. “Por mais que professores e autores de material didático tentem, na maioria das vezes, no máximo, eles abordam os massacres e as doenças que se abateram [sobre os índios], mas essa é uma narrativa impregnada [por uma visão do passado]”, avalia.

A permanência da representação indígena como povos que andam nus, vivem em aldeias, não possuem escrita e não são afeitos ao trabalho no modelo capitalista resulta num conceito de “indígena genérico”, avalia o pesquisador do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da Universidade de São Paulo (USP) Luís Donisete Benzi Grupioni.

“O que parece mais grave nesse procedimento é que, ao jogar os índios no passado, os livros didáticos não preparam os alunos para entendê-los no presente e no futuro”, avaliou Grupioni no artigo “Imagens contraditórias e fragmentadas: sobre o lugar dos índios nos livros didáticos”.

Um exemplo do efeito de representações como essas para a construção da imagem dos indígenas entre os alunos é dado pelo doutor em Educação da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Neimar Machado de Souza. “Em Campo Grande vivem cerca de 15 mil índios urbanos empobrecidos, enquanto nas escolas costuma-se ensinar que essa mesma figura está longe, vivendo na floresta profunda em comunhão com a natureza”, relata.

Neimar, que atua em uma área de conflito entre fazendeiros e índios guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul, acredita que essas representações acabam por influenciar toda a concepção social sobre o que é ser indígena. “O resultado disso é que, quando um índio aparece dirigindo um carro ou empunhando um celular, passa a ser visto [pela sociedade branca] como um ser destituído de sua identidade”, avalia.

Por ser disseminado desde a escola, esse tipo de visão deturpada acaba por se refletir na mídia, acredita a secretária de Educação Continuada do MEC, Macaé Evaristo. “Houve evolução, mas o índio ainda é visto ou como o bom selvagem isolado, quase pré-histórico, ou como um obstáculo ao progresso”, diz.

O impacto da construção de imagens e perpetuação de estereótiposentre os alunos também foi percebido pelo grupo de pesquisa de Paulo da Silva, da UFPR. Um dos estudos aferiu que os discursos racistas constantes nos livros didáticos são percebidos pelos estudantes e causam constrangimento e mal-estar. Os pesquisadores avaliam que essa forma de racismo institucional presente nas escolas pode ter parcela de participação nos resultados piores que o alunado negro aufere no ensino. “Novas pesquisas sobre tal impacto nos estudantes podem ajudar a compreender melhor os matizes do fenômeno”, escreve o pesquisador.

Para ele, a normatização dos procedimentos nos editais dos materiais didáticos, que passaram a afirmar que os livros devem promover a valorização dos diferentes segmentos étnico-raciais da sociedade brasileira, tem seu impacto e continua sendo relevante. Mas para potencializar os efeitos positivos das normas, propõe Silva, seria preciso fortalecer a capacidade de leitura dos avaliadores dos livros didáticos em relação às questões raciais.

Rosana Heringer, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), historicamente ligada a temas raciais, acredita que a formação dos professores é o principal desafio hoje para a disseminação do conhecimento sobre esses povos.

“Só agora os cursos de graduação em História estão se preocupando em ter alguém para oferecer a disciplina de História da África. Também estão abrindo algumas pós-graduações sobre o tema e algumas Secretarias de Educação têm investido em formação, mas ainda não é suficiente”, avalia.

Saber que as mudanças no plano simbólico não se processam de forma imediata nem direta, e considerar que esses estereótipos estão arraigados no discurso público brasileiro, tem levado os pesquisadores a considerar que ainda enfrentarão muita resistência a propostas de mudanças na política educacional brasileira. (Colaborou Marta Avancini)

 #Q#

Invisibilidade na sala de aula

Organizado pelo professor Roberto Sanches Mubarac Sobrinho, da Universidade do Estado do Amazonas, o livro Vozes infantis indígenas aborda a invisibilidade social à qual crianças da etnia sateré-mauwé estão submetidas no ambiente escolar branco e urbano. Seu trabalho revela, em parte, a limitação dos educadores em lidar e reconhecer os valores socioculturais de crianças indígenas que convivem diariamente com os demais alunos. Os depoimentos registrados mostram que há muito que fazer na preparação dos professores, que na tentativa de integrar os alunos, acabam por ignorar ou desvalorizar suas culturas. “É nesse cenário de discriminação constante, evidenciado na fala dos professores, que as relações sociais atingem as crianças sateré-mauwé, provocando nelas uma reação de invisibilidade, ou seja, elas preferem ficar sentadas em seus ‘cantinhos’ a serem apontadas pelos professores. Quase nunca participam das atividades em grupo e preferem sentar na última fileira da sala”, relata um trecho do livro. Veja algumas frases de professores coletadas pelo livro:

“Eu tenho na minha sala duas crianças sateré-mauwé, elas até sabem ler um pouco, mas são muito preguiçosas”
Professora Fátima

“O meu aluno até tem letra boa, mas quando tá com preguiça, meu Deus do céu, não faz nada, mas nada mesmo, acho que isso é coisa deles mesmos, esses índios devem ser todos assim”
Professora Rosa

“Acho que a educação que estão tendo na comunidade está atrapalhando o desempenho delas na escola”
Professora Margarida

 

A literatura funda o mito

Jamais houve brasileiro como o índio Peri, o personagem central de O Guarani (José de Alencar, 1857): “Altivo, nobre, radiante da coragem invencível e do sublime heroísmo de que já dera tantos exemplos”. Integrante da Trilogia Indianista de José de Alencar, aos olhos de hoje, a ficção é traída por preconceitos em parte vigentes no presente. Escrito no século 19, o romance coloca Peri como uma figura idealizada e, já então atrelada ao passado, durante o processo de ocupação do litoral, ocorrido 300 anos antes. A escrita de Alencar estava comprometida com a criação de uma identidade nacional, de acordo com o desejo do imperador Dom Pedro II, que almejava separar a imagem da corte do Segundo Império de sua recente herança portuguesa. O mesmo vale para Iracema (1867), a bela nativa que se apaixona pelo português Martim, com quem tem o filho, Moacir, em uma representação da união das raças no século 17.

A partir do século 20, mesmo diante de novas visões antropológicas e sociais, a figura do índio seguiu atrelada aos desígnios do homem branco. É o que ocorreu no infantojuvenil As aventuras de Tibicuera (1937), de Érico Veríssimo, na qual o protagonista acompanha, desde sua aldeia, a história do Brasil do Descobrimento até a República Velha, onde termina seus dias maduro e civilizado, saudoso de seu professor, o Padre Anchieta.

O entendimento consensual de que ao índio caberia o desaparecimento ou o “branqueamento” e a absorção ao mundo civilizado está na introdução de Contos populares do Brasil (1885), do ensaísta e sociólogo Sílvio Romero: “A condenação à morte dos aborígenes é fato confirmado pela História de todas as invasões nos países habitados por povos selvagens”.

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