NOTÍCIA

Entrevistas

Autor

Carmen Guerreiro

Publicado em 31/05/2012

A medida certa

Especialista em avaliação Cipriano Luckesi defende que escolas mantêm práticas do século 16 e faz um apelo: avaliar um aluno não deve ser um ato discriminatório, mas uma estratégia a favor da aprendizagem

De modernas, as práticas de avaliação atuais só têm o período histórico em que foram criadas. Isso porque ainda aferimos os resultados do processo de ensino-aprendizagem com a mesma metodologia do século 16, início da Idade Moderna. Essa é a tese de Cipriano Luckesi, que estuda o tema da avaliação há 44 anos. Na entrevista a seguir, ele observa que, embora a nomenclatura “avaliação” seja usada, o que se pratica na maioria das salas de aula são os exames, que têm como objetivo selecionar e discriminar os alunos que aprenderam dos que não aprenderam, em vez de promover um esforço para que todos aprendam.

Professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, Luckesi é bacharel em Teologia, licenciado em Filosofia, mestre em Ciências Sociais e doutor em Educação. Para ele, “avaliar é o fato de investigar, de produzir conhecimento” – é isso o que ele explica na série on-line “Gestor Escolar – Fundamentos”, recém-lançada pelas Edições SM (edicoessm.com.br/gestor_escolar_fundamentos).

O senhor defende que a avaliação ainda segue os moldes do século 16. Poderia explicar melhor essa ideia?
Em nossa tradição escolar, que se sistematizou a partir do século 16, perdura até hoje o modelo daquela época, chamado de “exames escolares”. A tradição é de ensinar e, depois, separadamente da prática do ensino, exercitar os exames escolares. O que caracteriza o exame escolar? Ele é classificatório e seletivo, portanto o estudante que está na sala de aula pode permanecer e dar continuidade aos estudos, ou ser escolhido pela seletividade. Os exames existem há milênios como práticas sociais. Antes de Cristo, na China, já se praticava o exame para soldados. No Ocidente, a partir do século 16, surgiu a escola simultânea, ou seja, um professor que ensina muitos alunos ao mesmo tempo. Com o crescimento da quantidade de estudantes, tinha de haver um meio de aferir se eles tinham aprendido ou não, e aí importaram o modelo de examinação de outras áreas para a educação. Mas com a diferença de que na escola o aluno já tem a vaga, então só vai para aprender, e não para ser selecionado. Ainda assim, a prática é de seleção.

Márcio Lima

Isso não mudou desde então?
A partir de 1930, o educador norte-americano Ralph Tyler começou a ponderar que não podíamos permitir a existência de uma escola que admite 100 crianças  e aprova apenas 30. Era preciso encontrar uma metodologia para que a escola aprovasse as 100. E o método é aparentemente óbvio: ensina, diagnostica. O aluno não aprendeu? Ensina-se novamente, até que ele aprenda. Todavia, a escola, em função da articulação dos exames escolares, não conseguia fazer isso, o que acontece até hoje: ensinamos e aplicamos uma prova. Se o estudante foi bem, está aprovado; se não foi bem, está reprovado, e fim de conversa. No Brasil, começamos a conversar sobre avaliação em torno dos anos 70. A Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1961 ainda tem um capítulo sobre os exames escolares. A de 1971 não fala mais de exames escolares, mas de aferição do aproveitamento escolar. A lei que introduziu o termo avaliação é a de 1996, ainda que estados e municípios passassem a usar o termo avaliação para denominar a prática do exame. Mudamos a terminologia e não a prática. O esforço é fazer os educadores transitarem do conceito e prática de exame para a avaliação. De maneira geral, os professores não estão preocupados se a nota revela a aprendizagem ou não. Se tem nota 7 (supondo que essa seja a média) é aprovado e, se não, é reprovado. Classificam em uma escala de 0 a 10 e em consequência disso praticam a seleção. Durante o ano letivo ele vai sendo levado, mas no final se pratica a exclusão.

Qual o modelo de avaliação ideal?
Não se pode fazer uma avaliação com características aleatórias. É preciso ter o rigor metodológico de uma pesquisa científica. Hoje, os exames são elaborados e aplicados sem que tenham características como sistematicidade. Para o rigor científico existir, é necessário ter como base o que foi ensinado e o que o professor quer saber se o aluno aprendeu. Então, ele obterá dados sistematicamente coletados sobre aquilo que quer compreender e avaliar. Além disso, os instrumentos devem ser elaborados com uma linguagem compreensível. O estudante precisa compreender o que está sendo perguntado. Hoje muitos não entendem o que o professor quer dizer e o educador diz “se vira”. Uma terceira característica da boa avaliação é ser compatível com o ensino. Se ensinei fácil, pergunto fácil; se ensinei complexo, pergunto complexo. Os professores não levam em consideração o que foi ensinado em relação ao que precisa ser avaliado, então há uma disparidade entre a metodologia e a prática do conhecimento. A quarta característica é que as perguntas às vezes são imprecisas ou genéricas. É necessário que haja a mesma compreensão da pergunta pelo educador e pelo estudante. O que fez Dom Pedro I, por exemplo? Muita coisa! Tem de ser quando e onde. Tem de precisar a pergunta. Essas quatro características (sistematicidade, linguagem compreensiva, comprometimento metodológico do ensino e do instrumento de avaliação e precisão das perguntas) não são levadas em consideração. Quando isso acontece, o professor se engana e engana o estudante, sua família
e a sociedade.

Nessa nova perspectiva, não existiria a ideia de repetência?
Não. Essa é uma palavra que precisa desaparecer do vocabulário da educação. Existem países, como a Dinamarca, em que o termo não existe nem no dicionário. Uma escola de ensino fundamental nesses países tem oito anos de escolaridade e são oito anos de aprendizagem satisfatória. No Brasil, com as múltiplas características de condições insatisfatórias de ensino, como material didático ruim, baixos salários, pouca paciência do educador em acolher o educando, entre outras, o que ocorre é que temos crianças que têm dificuldade de aprender. Mas como não há investimento para sanar essa dificuldade, elas são excluídas. Eu sou exemplo disso. Sou multirrepetente: fui reprovado três anos. Até que um dia um professor disse que se eu fosse bem ensinado, aprenderia. De lá para cá, aprendi. Hoje sou um pesquisador bem-sucedido. Alguém tem que dizer isso para os alunos. O diretor da escola precisa tomar nas mãos o destino da escola. Se tenho 10 estudantes que foram retidos em um ano, vou deixá-los retidos ou fazer ensino de qualidade para ultrapassar a defasagem? Não é só o professor que está envolvido nisso, mas a instituição escolar como um todo.

Como colocar isso em prática?
A resposta é: gestão. Precisamos deixar de caracterizar o professor como um sacerdote. Ele é um gestor. E um gestor é aquele que produz efeito. Além disso, a gestão passa pelo diretor da escola, o vice-diretor, o secretário de Educação, o supervisor, o coordenador e o professor. O discurso “tem muito aluno, muita dificuldade” é muito comum em educação. A produção de resultados efetivos é empurrada com a barriga. Vitor Paro, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp), fez um estudo há 10 ou 12 anos sobre avaliação de aprendizagem em uma escola de São Paulo, que resultou no livro Fracasso escolar, renúncia à educação. Ele conta que, no primeiro dia do ano letivo do 1º ano do ensino fundamental, um educador lhe disse que dos 33 estudantes, no final 16 provavelmente seriam reprovados. Se no 1º dia de aula eu determino assim, nos outros 199 dias de aula o que vou fazer? Poderia fazer a gestão para que os 16 que eu identifico com dificuldade superem essa dificuldade. Mas se eu acredito desde o 1º ano que eles terão resultado negativo, eles terão.

Quais desafios o professor enfrenta hoje para mudar a forma de avaliar?
O primeiro é pessoal, no sentido de que fomos formados sob a égide da cultura dos exames. Na sala de aula, reproduzimos o que aconteceu conosco. O segundo é mudar o modelo  dos exames, que vem do esquema de sociedade na qual eles nasceram: alguns ficam e muitos caem fora. Tem a história da educação também. São 500 anos de prática de exames escolares e isso não mudará de hoje para amanhã. Ralph Tyler começou a falar sobre avaliação em 1930 e ainda estamos tentando entendê-la e instituir uma nova prática. Trabalho com avaliação há 44 anos. Vejo mudanças. Estamos fazendo um movimento, mas ele ainda é insuficiente do ponto de vista de mudança da qualidade e da prática.


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