NOTÍCIA
Todos os caminhos são um só e mesmo caminho, e eles e ele sobem e descem, para cima e para baixo
Publicado em 09/04/2019
Sempre temos tempo para ler, mesmo que não haja tempo para mais nada. Leituras educadoras podem ser breves, e depois ganham espaço por dentro de nós, durante décadas.
Um dos textos mais curtos, simples e inspiradores que conheço é o fragmento 60 de Heráclito, homem difícil, filósofo excêntrico. Segundo contam antigos escritores, Heráclito de Éfeso não era de fácil convivência. Ele preferia viver isolado. Não confiava em políticos ou médicos. Buscava as leis secretas do mundo. Viveu em 6 a.C. De seus textos restaram fragmentos que foram recolhidos, verificados e numerados. Continuam sendo objeto de estudo e discussão depois de tantos séculos. São, ao todo, autênticos, 139 fragmentos.
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O fragmento 60 é curtíssimo. Tem apenas seis palavras no original grego: ὁδὸς ἄνω κάτω µία καὶ ὡυτή. A leitura dura menos de 30 segundos. Se quisermos traduzi-lo com igual número de palavras em português, ficará assim: “O mesmo caminho sobe e desce”. Uma tradução literal seria assim: “Caminho subindo/descendo um e idêntico”. O caminho que sobe é o mesmo caminho que desce. O pensamento pode nos fazer andar bastante em muitas direções.
Numa bela crônica sobre o passar do tempo e as decisões que passamos a tomar, José Saramago dizia que, a certa altura da vida, “o coração começa a recusar a ladeira”. Já não temos fôlego para enfrentar subidas muito ou pouco íngremes. É hora, então, de descer.
Isso tem a ver com o fragmento de Heráclito. (E o que não teria a ver com este fragmento que fala sobre o todo da vida?)
O caminho que sobe é o mesmo caminho que desce. Subimos com agilidade, crescemos, galgamos postos, mas depois vem o declínio. A mesma vida que sobe é a vida que desce. Se for verdade, como dizia Teresa de Ávila, a grande mística espanhola do século 16, que a existência humana dura apenas 2 horas, depois de uma hora de vida (quando chegamos aos 40 ou 50 anos de idade), é também o momento de descer o mesmo caminho que subimos.
Caminho é metáfora antiga e nova. Sempre temos um caminho para caminhar. Os poetas gostam de falar em caminhos, estradas e veredas. O medieval Dante Alighieri escreveu que, no meio do caminho da vida, encontrou-se ele com a selva escura. Isto é, estava prestes a entrar num outro caminho, o que vai do inferno ao céu, passando pelo purgatório. Dante morreu aos 56 anos de idade. Começou a escrever A Divina Comédia com cerca de 40 anos.
A vida é curta, o caminho é longo. O caminho que sobe é o mesmo caminho que desce. E o contrário também é sentença verdadeira. O caminho que desce é o mesmíssimo caminho que sobe. Quando começamos a descer o caminho, podemos rever o que vivemos com olhos novos. Com mais sabedoria e lucidez.
Numa sutil tradução deste fragmento 60 de Heráclito, o filósofo pernambucano Emmanuel Carneiro Leão, procurando resgatar o modo obscuro e enigmático de escrever do pré-socrático, propõe:
Caminho: para cima, para baixo, um e o mesmo
Estamos diante de uma charada. Olhe para cima. Olhe para baixo. O caminho é sempre o mesmo. Mas que caminho é este? A simplicidade é complexa. A complexidade é simples.
Hora de ler. Hora de reler. A releitura também não nos toma muito tempo, e ao mesmo tempo aprofunda a ideia de tempo.
Caminho também é metáfora para a trajetória histórica. A história vai e vem. Sobe e desce. O futuro, quando subíamos, torna-se passado, quando descemos. O passado, quando descemos, pode se tornar um novo futuro, se soubermos subir de novo o mesmo caminho.
O livro é um caminho que sobe e desce, que vem e volta. O leitor entra no caminho. E quando relê o caminho, reencontra a si mesmo. Educar para a leitura e para a releitura é o caminho da educação.
Se pudermos desenhar, um pouco a exemplo de Escher, o artista gráfico holandês que certamente leu este fragmento de Heráclito, o caminho (e a vida) se desdobraria assim:
Ao seguir a leitura, descobrimos caminhos que sobem e que descem. Podemos começar a ler o livro pela última página, e subir até a primeira. Podemos começar a ler no meio do caminho, e seguir para frente e para trás. E voltar depois, linhas e ruas, atalhos e versos.
O livro que começa é o mesmo livro que termina. O leitor que lê é o mesmo leitor que relê. Mas já terá caminhado bastante. Aprendido bastante em suas idas e vindas. Já não será exatamente o mesmo leitor.
E, no entanto, no final de cada leitura, lembramos os caminhos percorridos, e todos os caminhos são um só e mesmo caminho. Heráclito, Saramago, Teresa de Ávila, Escher e Dante vêm sentar-se ao nosso lado, e conversamos sobre a vida e a morte, sobre o fim do mundo, sobre leituras e releituras do caminho.
O fragmento 60 perde-se na peregrinação infinita dos livros e das palavras. Qualquer um poderia escrever que o caminho é o mesmo, subindo ou descendo. É algo que parece tão básico e elementar. Todo mundo sabe que o caminho que sobe é o mesmo caminho que desce. Não há tempo para ler? Leia de novo esse fragmento do discurso pedestre. E vá pelo caminho. O caminho que sobe. O caminho que desce.
*Gabriel Perissé é professor da PUC-RS, escritor e palestrante.www.perisse.com.br
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