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João Jonas Veiga Sobral

É professor de Língua Portuguesa e orientador educacional

Publicado em 01/06/2020

A permuta retórica: mais um motivo para a troca

Nesta coluna, João Jonas realça os discursos linguísticos destacando da seca sertaneja ao cenário político atual

A simbologia apresentada por meio das figuras de linguagem é um atalho para se chegar aceleradamente ao sentido do que se deseja enunciar, porque o pensamento se transporta imediatamente ao entendimento da enunciação. Como, por exemplo, na canção Paraíba, imortalizada por Luiz Gonzaga, em que a progressão discursiva das enunciações antecipa a consequência para que o interlocutor intua que a seca, antecedente ou causa, se instaurou no sertão: “Quando a lama virou pedra/ E Mandacaru secou/ Quando Ribaçã de sede / Bateu asa e voou/ Foi aí que eu vim-me embora/ Carregando a minha dor/ Hoje eu mando um abraço / Pra ti pequenina”.


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Veja que as constatações das transformações na paisagem nordestina e na alma do eu lírico antecipam a seca como causadora desses infortúnios. Em Asa branca, em contrapartida, o fim da seca é antecipado com a descrição metafórica do consequente: “Quando o verde dos teus olhos/ Se espalhar na plantação/ Eu te asseguro não chore não, viu/ Que eu voltarei, viu/ Meu coração”. Ou seja, o verdejar dos olhos da amada se estendendo às plantações é a sugestão simbólica de que a seca encerrou seu castigo na terra e nos seres. A compreensão desse jogo de aceleração figurativa, sintática e semântica ajuda a estabelecer as relações propostas nos textos e a compreender os procedimentos adotados no encadeamento lógico neles.

Tropo é um sinônimo de figura de linguagem que em grego sugere a ideia de desvio ou permuta de sentido. Segundo Otavio Frias, em artigo na Folha de S.Paulo, “a linguagem não apenas está cheia de figuras vivas como é formada a partir de figuras que morreram. Como mostra o próprio termo `tropo’, cada palavra é a ruína de uma imagem esquecida no passado. A razão é que não é possível pensar a não ser por imagens.” Assim, por meio do tropo, da figuração, o idioma dispõe de recursos linguísticos capazes de promover a aceleração da enunciação, o alargamento semântico e a compreensão do que se enuncia com, por exemplo, a transposição de noções de causa e de consequência.

Nas canções entoadas pelo Rei do Baião, percebe-se o emprego da metalepse, espécie de metonímia em que, pelos antecedentes, se faz conhecer os consequentes (ou vice-versa), ou ainda revela a coisa (seca) indicada pela antecipação de um dos enunciadores (lama virou pedra). Esse recurso linguístico exige do leitor compreensão do jogo de transposição entre causa e efeito, porque, como já citado, acelera o processo enunciativo eliminando passos da enunciação ao promover o consequente e permitir ao leitor fazer a inferência do antecedente.

Há casos em que essa antecipação do consequente para a enunciação posterior do antecedente garante ao texto ares de suspense, dúvida ou suspeição. Rubem Braga, na crônica “O verão e as mulheres”, sugere de forma lírica: “As cigarras não cantam mais. Talvez tenha acabado o verão”. Na escrita literária do cronista de mão cheia, é possível verificar – antes –  a manifestação de algumas paixões ou estados de alma para depois compreender as motivações enunciadas com o possível término do verão – do tempo da natureza ou do tempo do espírito.

O passar do tempo pode ser matéria para o emprego da metalepse. O recurso é interessante na progressão discursiva para fortalecer o que se intenciona comunicar. Roberto Carlos homenageia o pai, explorando o tropo retórico: “Esses seus cabelos brancos, bonitos, / Esse olhar cansado, profundo / Me dizendo coisas, num grito / Me ensinando tanto do mundo / E esses passos lentos, de agora / Caminhando sempre comigo, / Já correram tanto na vida / Meu querido, meu velho, meu amigo”.

As consequências da velhice são elencadas progressivamente e culminam na gradação dos vocativos “meu querido, meu velho, meu amigo” para gerar no ouvinte a mesma cumplicidade afetiva proposta na canção, reforçada na polissemia da palavra “velho”, indicador de idade e de companheirismo. Machado de Assis, em Memorial de Aires, também trabalha o mesmo recurso com semelhante exemplo em que o consequente “cabelos brancos” indica o antecedente a “velhice”: “Nem dirá; nem lho pergunte. O melhor é crer que eu, com os meus cabelos brancos, ajudei a encher o tempo. A senhora não sabe o que podem dizer três velhos juntos, se alguma vez sentiram e pensaram alguma coisa”. A ironia de Machado, sempre mordaz, especula a relação entre passagem do tempo e sabedoria, uma vez que a imagem “cabelos brancos” tornou-se símbolo de merecimento de respeito e de sabedoria, mas bem sabemos que pode ser apenas acúmulos de anos. Por isso, em Rei Lear, de Shakespeare, o bobo adverte o rei: “Tu não devias ter ficado velho antes de ter ficado sábio”.

A metalepse talvez seja uma figura emblemática de nosso tempo tão afeito a retrocessos e tão desejoso de antecipar o passado para o futuro com solicitações de volta de regimes ditatoriais anunciadas em perigosos cartazes a favor do AI-5. Ou, como sugere Cazuza: “eu vejo o futuro repetir o passado”. E também na ausência de consciência e de compreensão civilizadas de que os corpos empilhados em valas comuns são os consequentes tardios e imediatos da irresponsabilidade (antecedente) de quem sai às ruas desprotegidos ou se manifestam aglomerados pelo fim ou afrouxamento  do isolamento horizontal e necessário. A lição da famosa frase atribuída a Comte – “Os mortos governam os vivos” – pode ser causa ou consequência de acordo com a metalepse e com procedimento escolhidos.

Na contenda entre Sérgio Moro, ex-ministro da Justiça, e Jair Bolsonaro, presidente da República, há um triste jogo retórico da metalepse. “Mais um motivo para a troca”, escreve o presidente, em uma referência à troca do então diretor-geral da Polícia Federal, Maurício Valeixo. O ex-ministro teria respondido explicando que a investigação não teria sido pedida por Valeixo: “Este inquérito é conduzido pelo ministro Alexandre [de Moraes], do STF”. E prossegue: “Diligências por ele determinadas, quebras por ele determinadas, buscas por ele determinadas”. “Conversamos em seguida, às 9h”, finaliza ex-ministro, se referindo à reunião que teriam para esclarecer a peleja. Assim, cada um dos simpatizantes das figuras citadas elegerão a relação entre causas e consequências estabelecidas no diálogo. E cabe ao bom leitor, no camarote da isenção, buscar no jogo retórico o que cada um deseja antecipar e acelerar.

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