NOTÍCIA
Dois anos após o anúncio de suas metas, o Plano Nacional de Formação de Professores dá sinais de que naufragou. Falta de sintonia entre entes federados é um dos problemas
O Plano Nacional para Formação de Professores (Parfor) foi criado com o objetivo de assegurar, até 2014, a todos os professores na ativa que não tivessem diploma de grau superior uma vaga gratuita numa universidade. Essa meta, contudo, corre o risco de não ser atingida: em muitas regiões a evasão nos cursos oferecidos no âmbito do Parfor está elevada demais e o número de matrículas, abaixo do esperado. Quando foi lançado, em 2009, a previsão era chegar a 2011 com 240 mil docentes matriculados. No final de 2010, o total de alunos estava na faixa de 80 mil, número considerado baixo pela própria Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), responsável pela implementação do Parfor.
“Ainda não temos o número de matrículas do primeiro semestre de 2011 fechado, mas, de qualquer modo, a diferença em relação à previsão inicial é significativa”, admite o diretor de Educação Básica Presencial da Capes, João Carlos Teatini.
Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), divulgados no Educacenso de 2009, ajudam a dimensionar o desafio que o país tem pela frente nesse campo: são cerca de 500 mil os professores sem formação compatível com a disciplina que lecionam. Há ainda 150 mil professores leigos, ou seja, sem diploma de nível superior. Juntos, eles representam 34% dos docentes em salas de aula da educação infantil ao ensino médio, de um total de 1,9 milhão. A meta inicial do Parfor era diplomar 330 mil docentes até 2014.
Diante desse cenário, evitar a evasão, que em algumas localidades da Bahia beira os 40%, é uma preocupação central, reitera o diretor Teatini: “Para que o professor possa frequentar as aulas, as redes de ensino precisam viabilizar a redução da carga horária do docente. Muitas vezes, o curso não é oferecido na cidade onde o professor mora, então ele precisa de apoio financeiro para se deslocar e se hospedar”, diz.
Dos planos à realidade
São várias as explicações para as discrepâncias entre as metas inicialmente traçadas para o Parfor e a realidade, segundo o diretor de Educação Básica Presencial da Capes. Falhas nos levantamentos realizados na época da estruturação do Plano (pois havia distorções nas estatísticas usadas para o planejamento da oferta e da demanda), a baixa atratividade do magistério (que desestimula o docente a buscar um aprimoramento da formação) e o receio que alguns professores podem ter de não serem capazes de acompanhar o curso podem estar minando a adesão ao programa.
Outro motivo, apontado pelo diretor da Capes, está relacionado a um problema de fundo da educação brasileira: a falta de “azeitamento” no relacionamento entre União, estados e municípios, quer dizer, no regime de colaboração entre as unidades da federação.
Em decorrência disso, há uma falta de sintonia entre o que é oferecido no âmbito do Plano e as reais necessidades, materializada em cursos abertos sem demanda efetiva e em casos de prefeituras que não oferecem condições para os professores frequentarem os cursos – por falta de dinheiro em caixa para arcar com os custos de um substituto ou com as despesas de viagem do profissional, quando isso é necessário, ou mesmo por não valorizar e apoiar a iniciativa.
Fotografias locais
Em Santa Catarina, uma universidade montou um curso, mas não teve nem um aluno sequer inscrito para o vestibular, conta Leda Scheibe, professora da Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Fórum Estadual de Apoio à Formação Docente local. Além da frustração e do desperdício de recursos, o fato revela que o planejamento falhou.
“Foi feito um investimento enorme para montar o curso, abrir processo seletivo e, no final, não houve alunos interessados”, diz Leda.
No Pará, um dos estados com maior déficit de professores com nível superior, são 16 mil matrículas, o que corresponde a pouco mais de metade da demanda estimada em 2009, 30 mil. No entanto, a evasão é relativamente alta, na faixa dos 20%, de acordo com o coordenador estadual do Parfor, Licurgo Peixoto de Brito.
“Nosso principal problema é o que chamo de ‘frente fria'”, diz Brito. A exemplo do fenômeno climático que ocorre quando uma massa de ar frio avança sobre uma zona de ar quente, os ingressantes nos cursos sofrem um choque e, por isso, recuam – ou seja, param de frequentar as aulas.
“Nossos alunos são docentes com grande experiência profissional e de vida que haviam perdido a esperança de estudar. Quando chegam à universidade, há um choque, pois deparam com uma realidade desconhecida e muito diferente daquela a que estão acostumados, levando-os à desistência, pois não se reconhecem nesse novo ambiente.”
O coordenador também avalia que, depois de três semestres de oferta de cursos, a realidade é diferente daquela desenhada inicialmente. “O cenário mudou. A criação do Parfor gerou um estímulo pela busca de formação e alguns professores procuraram instituições particulares, que atendiam melhor às suas necessidades”, diagnostica Brito.
Outro aspecto é o fato de que, segundo ele, nem todas as escolas forneceram informações precisas. Com isso, a demanda por formação em certas áreas pode ser maior do que a prevista na época de lançamento do Parfor. “Acredito que haja mais professores precisando de formação do que o levantado pelo Educacenso.”
Limitações dos municípios
Os reflexos dos problemas enfrentados pelos municípios no âmbito do Parfor são reais, na visão da presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) da região Sudeste, Cleuza Repulho. Mas, para ela, que também é secretária municipal de Educação de São Bernardo do Campo, há dificuldades em ambos os lados. “A Plataforma Freire também teve problemas, dificultando as inscrições”, diz.
Cleuza acredita que a adesão dos municípios a iniciativas do governo federal (como o Parfor) acaba sofrendo limitações porque as decisões não são tomadas em conjunto com as prefeituras. “Não é uma crítica, mas as questões e as especificidades dos municípios precisam ser contempladas”, reitera a dirigente. No caso do Parfor, continua Cleuza, liberar os docentes para ir fazer um curso é, de fato, complicado para algumas redes de ensino. “Não é boicote, mas, em algumas localidades, o professor não tem mesmo como deixar a sala de aula para fazer a formação”, defende.
A falta de clareza sobre os termos do relacionamento entre os três níveis de governo tem outros impactos nas ações de formação docente. Ainda segundo Cleuza, o Estado de São Paulo é um exemplo: “São Paulo aderiu tardiamente ao Parfor porque há uma competição entre os programas de formação da secretaria estadual e o Plano do governo federal, sem que se defina qual é a função de cada um”. Com isso, municípios que gostariam de participar do Parfor se veem impedidos de fazê-lo, porque os convênios são firmados com os estados. Em síntese, as iniciativas e ações acabam esbarrando em disputas políticas.
Para Helena Freitas, coordenadora de Formação de Professores da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação, os desencontros – e seus impactos negativos – nas ações na área de formação de professores no país não são uma novidade. “Não existem acordos e termos de consenso para que os sistemas de ensino apoiem seus professores para obter formação de nível superior”, analisa.
Um exemplo concreto dessa ausência de acordo é o piso do magistério, que foi definido como formação de nível médio e não superior – já que a legislação admite o exe
rcício da profissão com diploma de nível secundário na educação infa
ntil e no primeiro ciclo do ensino fundamental, apesar de as políticas irem na direção da formação universitária.
“Essa acaba sendo uma condição impeditiva para o aprimoramento dos professores, já que os municípios continuam contratando docentes com diploma de normal, até porque muitos não têm recursos suficientes para pagar salário de nível superior para todos”, afirma Helena. “Vivemos uma contradição”, conclui.
Reformulações à vista
Diante dos problemas constatados, a Capes está refazendo os planos estratégicos dos estados. Esses planos foram a base do Parfor, pois determinaram as ações em cada localidade, estabelecendo a demanda por formação, o número de vagas ofertadas e em que áreas.
“Os dados do Educacenso estão sendo aprimorados, o que permite uma visão mais precisa da realidade. Além disso, a rotatividade no magistério é grande, fazendo com que as necessidades se modifiquem”, justifica Teatini.
Os levantamentos estão a cargo dos fóruns estaduais, instâncias-chave dentro do Parfor, pois reúnem representantes das redes de ensino e universidades e são responsáveis pelo planejamento da ação em nível local.
Na Bahia, para fazer frente a esse problema estão sendo organizados consórcios de municípios, nos quais um grupo de prefeituras se une para levantar sua real necessidade de formação e negocia, junto às universidades, a oferta das vagas necessárias em condições mais favoráveis – por exemplo, definindo em conjunto onde os polos vão se localizar, a fim de facilitar os deslocamentos dos professores.
O caso baiano mostra que a saída pode estar, justamente, no fortalecimento dos mecanismos de cooperação e ação conjunta em instâncias como os fóruns estaduais. “Os fóruns são um dos principais avanços propiciados pelo Parfor, pois permitem que todos os interessados se sentem em torno de uma mesma mesa e discutam as soluções para os seus problemas”, defende Leda Scheibe, da Universidade Federal de Santa Catarina. Eles funcionam, então, na opinião da educadora , como instâncias capazes de operacionalizar o regime de colaboração, viabilizando e fortalecendo as ações na área de formação docente.
Nesse sentido, uma das linhas de atuação da Capes será no sentido de consolidar os fóruns, além de definir diretrizes normativas que deem mais força às suas ações, para que eles possam ampliar a interação com os municípios.