NOTÍCIA

Edição 263

Ensino médio: determinação política e investimentos para viabilizar período integral

Cercada de dificuldades, incapaz de lidar com as contradições e desigualdades socioeconômicas da juventude, a última etapa da educação básica brasileira necessita de profundas mudanças

Publicado em 07/01/2020

por Eduardo Marini

ensino-medio-periodo-integral Foto: Shutterstock

Uma nova lei, que amplia o tempo mínimo de permanência do aluno na escola de 800 para mil horas anuais até 2022; organização curricular mais flexível, adaptada às diretrizes da recém-definida Base Nacional Comum Curricular, a BNCC; a boa nova dos itinerários formativos, compostos pelas disciplinas, oficinas, núcleos de estudo e projetos oferecidos aos estudantes para a escolha de cada caminho acadêmico e profissional. Escorados nesses pilares, gestores de educação brasileiros pretendem tirar o ensino médio da condição de patinho feio do ensino básico brasileiro nos próximos anos. Mas eles serão suficientes para recuperar tanto atraso, abandono e inadequação? Educação ouviu pesquisadores e especialistas para identificar os principais problemas dessa etapa de ensino e, mais importante, jogar luz sobre experiências bem-sucedidas no médio, a principal delas em Pernambuco.
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O economista português naturalizado brasileiro Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco e professor da Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), é especialista em temas como educação, desigualdade, pobreza e distribuição de renda. “O ensino médio no Brasil tem graves problemas de acesso, fluxo e qualidade, e ainda um quadro crítico de desigualdade”, sintetiza ele. “Há até algum avanço, mas de forma muito, muito lenta. Temos um Ideb de 3,8 para essa etapa, quando a meta era 4,7. Apenas 29,1% dos estudantes do médio atingem o nível esperado de aprendizagem em língua portuguesa e 9,1% em matemática.”
A taxa de reprovação, em torno de 10%, e a média de abandono, acima dos 6% em todo o ciclo, são outros pontos negativos destacados por Henriques. “Esses índices nacionais escondem graves questões de desigualdade entre as regiões e também em nível socioeconômico. A média brasileira de alunos no médio com mais de dois anos de distorção idade-série é de cerca de 28%, mas na Região Norte isso sobe para quase 42%; no Sudeste, fica em 21%”, compara. “E ainda não conseguimos universalizar essa etapa de ensino. Em 2018, o número de jovens de até 19 anos que concluíram o ensino médio alcançou apenas 63,6%.”
Há razões históricas para isso. “Uma delas é o fato de que a obrigatoriedade do ensino médio só foi instituída em 2009. Além disso, as defasagens de conteúdo e as distorções idade-série vão se acumulando ao longo dos anos do fundamental, e isso culmina na transição para o médio. Existe também um olhar importante para o contexto histórico e para a sociedade. A escola média não acompanhou nosso desenvolvimento e, hoje, não prepara os jovens para essa sociedade mais tecnológica e plural. Pelo contrário: está muito desconectada dos jovens”, critica.
Henriques critica o que chama de “tradição enciclopedista e generalista” no ensino médio, que faz com que o estudante “tenha que completar um número alto de disciplinas, em geral extremamente conteudistas, que pouco desenvolvem as competências necessárias para a cidadania e o mundo do trabalho no século XXI”. Segundo ele, “há pouco espaço para o protagonismo juvenil, com currículos engessados”, que não consideram os projetos de vida dos estudantes e não se conectam com as competências e habilidades necessárias para a cidadania.
“A trajetória do ensino médio no Brasil é marcada por um imenso formalismo. Sempre se ensinou apenas o que é considerado necessário para entrar em um curso superior, e esse caráter generalizante se desconectou completamente das realidades, demandas e necessidades em termos econômicos”, analisa Elie Ghanem Junior, doutor em Educação e professor na Universidade de São Paulo.
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Excelência com equidade

Kátia Smole, ex-secretária de educação básica do Ministério da Educação (MEC), também destaca o “extremo abismo” entre o ofertado pelos cursos médios e as demandas pessoais e profissionais dos jovens. “As altas taxas de evasão escolar no período estão diretamente ligadas a esse fato”, explica ela. “Muitos adolescentes, sobretudo de baixa renda, não enxergam utilidade no que é ensinado e acabam abandonando a escola. E, entre os que ficam, o índice de aprendizagem, sobretudo em português e matemática, é mínimo.”
O instituto Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede) divulgou, em novembro último, em parceria com a Fundação Lemann, o Instituto Unibanco e o Itaú BBA, um relatório com resultados da terceira etapa da série de estudos sobre educação Excelência com equidade, sobre o ensino médio, com o subtítulo A dificuldade das redes de ensino para dar um suporte efetivo às escolas. Esse trabalho de análise e pesquisa de campo, coordenado pelo economista, gestor e educador Ernesto Martins Faria, fundador do Iede, revela estratégias, práticas e caminhos adotados por cem escolas públicas de ensino médio do país, selecionadas entre as com os melhores resultados frequentadas por alunos de baixo nível socioeconômico.
Faria chama atenção para a necessidade de ações fortes e emergenciais em três aspectos que “não vão bem, mesmo nas melhores escolas públicas do médio de todas as regiões do país”. O primeiro deles, quase um mantra da carência, diz respeito à formação ampla dos professores. “É a carência principal não só do médio, mas de toda a educação básica. Uma formação verdadeira, definida com a observação séria de experiências internacionais exitosas, que inclua capacidade de gerir as salas de aula, definir caminhos ouvindo os estudantes sem insegurança e desenvolver habilidades socioemocionais”, destaca. “Isso no médio é difícil, requer preparo, porque o conteúdo é profundo e, além disso, administrar a personalidade dos adolescentes é bem mais complicado do que a das crianças. Precisamos reconhecer que grande parte de nossos professores não foi bom aluno até o médio e as formações acadêmicas e continuadas não se revelaram suficientes para recuperar esse terreno”.
O pesquisador cita o caso de Sobral (CE) para ilustrar sua opinião. “Os resultados mostram que eles estão indo muito bem até o fundamental I, nem tanto no fundamental II e pior no médio. Justamente quando a complexidade aumenta e exige dos educadores, no chão da sala, uma formação mais densa, contemporaneidade, conhecimento de ferramentas didáticas modernas e segurança para não se sentir invadido ou desautorizado com a participação dos alunos em algumas tomadas de decisões”, analisa.
O segundo ponto é o da adoção de currículos “com efetiva participação da ponta”, ou seja, de educadores, gestores e alunos de cada escola ou administração regional, na elaboração. “Os currículos adotados ainda são quase totalmente baseados no que as avaliações centrais indicam de deficiência. Claro que não é ruim considerar esses processos. Eles devem permanecer como ferramentas importantes de auxílio na definição de caminhos estratégicos. Mas os currículos escolares brasileiros, sobretudo os do médio, precisam urgentemente de versões mais compatíveis com a realidade da região. E, principalmente, de um diálogo com os jovens estudantes, suas necessidades e apelos. E isso só se consegue com abertura verdadeira para a participação deles”, defende.
O terceiro aspecto é o pilar de sustentação dos dois primeiros: financiamento. “Não adianta nada pensarmos em todas essas estratégias se os administradores não entenderem que tudo isso consome recursos, mas é obrigatório e indispensável disponibilizar o que for necessário. Fala-se aqui de educação. Veja o caso do tempo integral. Ocupa as escolas em dois turnos – o que requer a construção de várias outras unidades –, o metro quadrado de terra é caro, sobretudo nas grandes cidades, há aumento de gastos salariais e estruturais com a permanência de professores e alunos em dois turnos, alimentação por mais tempo, necessidade de contratação de novos educadores, infraestrutura… tudo isso requer aumento de investimento, é verdade, todos sabemos – mas funciona. Então não há outra saída a não ser se comprometer com ele”.
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ensino médio

Ernesto Martins Faria sabe que ensino médio com período integral requer altos investimentos: “mas funciona” (foto: divulgação YouTube)

Pedagogia da presença

O impressionante salto de qualidade do ensino médio verificado em Pernambuco nos últimos 12 anos, construído em sua maior parte com a adoção do ensino em tempo integral em mais da metade das escolas médias prova a correção da tese defendida por Faria. Por sinal, das cem unidades escolhidas para o estudo coordenado por ele, todas com bons resultados na Prova Brasil e no Enem 2017 e taxa mínima de aprovação de 95%, 82 são de turno integral.
O relatório mostra que “a frequência com que as observações de aula são feitas varia de rede para rede, mas em várias delas é quinzenal. A coordenação compartilha com os professores nas reuniões de planejamento (em geral, semanais) os pontos observados, abrindo espaço de fala para todos, e acompanha – nas observações e reuniões seguintes – a evolução dos tópicos discutidos”. Outro ponto comum a todas as escolas pesquisadas por Faria e sua equipe é a escuta qualificada dos alunos sobre aspectos emocionais que possam interferir no processo de aprendizagem. “Esse trabalho ocorre de forma estruturada em Sobral (CE) e Goiânia (GO), com a instituição da figura do professor diretor de turma e do professor tutor, que têm o papel de acompanhar os jovens de forma mais individualizada”, explicam.
O acompanhamento do rendimento dos alunos e turmas, nessas escolas com melhor desempenho, quase sempre está ligado à preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. “As avaliações escolares são criadas a partir dos descritores do Enem, gerando indicadores que possibilitam o acompanhamento, semana a semana, da evolução das turmas em pontos específicos. Em Sobral (CE), as provas globais são feitas no estilo do Enem desde o 1º ano do ensino médio, quatro vezes ao ano. Além disso, simulados específicos para o exame são realizados ao final de cada semestre. “Achamos importante simular, mas mais importante é corrigir depois. Não adianta fazer um monte de prova se não corrigir, mostrar onde está errando. Tudo precisa ser criteriosamente corrigido”, acrescenta um gestor escolar de Sobral.
Outro ponto destacado no relatório é o currículo diversificado, que oferece opções de caminho aos estudantes. “A maioria das escolas visitadas norteia-se por um currículo integral, composto de duas partes. A comum abriga os componentes curriculares e conhecimentos previstos na rede, nas áreas de Linguagens e Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e Matemática e suas Tecnologias. E a diversificada envolve matérias eletivas, projetos e dinâmicas alternativas. Projeto de Vida, Empreendedorismo, Física Experimental, Oficina de Redação e Estudo Dirigido fazem parte do currículo diversificado de escolas visitadas na pesquisa”.
Em escolas capixabas e pernambucanas visitadas pelos pesquisadores, diretores e professores chamaram atenção para o que eles qualificam de pedagogia da presença. “Ela envolve abertura ao diálogo, respeito à diversidade, ações reflexivas e entendimento do universo do jovem. E contribuem para a efetividade das ações do currículo integral”, registram. “Os resultados podem ser percebidos na postura mais participativa dos estudantes, inclusive em outras aulas, na melhora da aprendizagem e na redução da evasão escolar. A proposta de ensino em período integral de Goiânia (GO), inspirada na experiência de Pernambuco, prevê que as disciplinas do currículo base e do currículo diversificado sejam distribuídas ao longo de todo o dia, não dando a impressão de que um momento é mais importante que o outro.”

Menos diversificado, mais profundo

O trabalho identifica também os principais estímulos gerados nos alunos pelo currículo integral. “Aprender a ser: capacidade de realizar-se como pessoa em sua plenitude, desenvolver seus talentos e tornar-se construtor de sua própria história. Supõe, ainda, autonomia, responsabilidade, reconhecimento de suas forças e limites e busca de superação. Aprender a conviver: capacidade de participar e cooperar com os outros. Supõe compreen­são, solidariedade, administração de conflitos, comunicação e cuidado consigo e com os outros. Aprender a conhecer: capacidade de adquirir os instrumentos da compreensão cognitiva. Supõe o aprender a aprender, exercitando a atenção, a memória (seletiva) e o pensamento. E aprender a fazer: capacidade de agir sobre o meio em que vive. Habilidade para produzir e colocar em prática os conhecimentos adquiridos.”
Em outro ponto importante, os pesquisadores identificam, nas escolas com melhor resultado, os “fatores que parecem ter um papel importante para levar os alunos a um patamar mais elevado de aprendizagem”. Um deles é formado por “sistemas educacionais menos complexos”, que “criam condições de trabalho menos desgastantes para os professores e favorecem um trabalho mais individualizado com os alunos, que tendem a ter melhores resultados. Entre os principais fatores, alguns esperados, como maior carga horária (“a média de horas-aula das escolas com melhor desempenho é muito mais alta”), menor quantidade de alunos por professor (“ter um maior percentual de educadores que dão aulas para até 150 alunos está associado a melhores médias na Prova Brasil”), professores trabalhando em uma única escola (“melhores resultados em matemática e maiores médias na Prova Brasil estão associados a um maior percentual de educadores que dão aulas em um único turno escolar”). A essas questões se soma a continuidade do trabalho pedagógico, sobretudo quando os professores trabalham há muito tempo na unidade, prestígio e legitimidade da escola junto à comunidade, boa interlocução na comunidade escolar e participação ativa dos pais.
Mas, afinal de contas, qual é o modelo ideal para a realidade do país? “Ele precisa ser menos diversificado e mais aprofundado, com maior articulação entre professor e aluno. Para isso, precisaremos evoluir na questão da educação em tempo integral e na implantação de oferta de itinerários formativos adequados à realidade das escolas, bairros, cidades e regiões. Acredito que conseguiremos caminhar”, aposta Eduardo Deschamps, mestre em Engenharia Elétrica, professor titular da Universidade Regional de Blumenau (FURB) e ex-presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE).
“O objetivo do ensino médio não é apenas formar bons profissionais. A preparação para o mundo do trabalho é sim uma de suas finalidades, como está na LDB, mas não pode ser a única. Mas em um contexto onde apenas 21,2% dos jovens de 18 a 24 anos têm acesso à educação superior, um bom ensino técnico é fundamental para garantir possibilidades reais de empregabilidade”, alerta Henriques. “O modelo ideal é um que forme o estudante de maneira integral, e que o prepare para exercer suas escolhas de vida com segurança a partir de um arcabouço de conhecimentos e competências sólido e de qualidade. Deve formar os jovens como sujeitos críticos, autônomos e responsáveis para que possam enfrentar os desafios da contemporaneidade e atuarem de forma consciente na sociedade.
Henriques sugere caminhos. “É importante um ensino médio que apoie os estudantes na elaboração de seus projetos de vida, contemplando diferentes possibilidades de trajetórias futuras – seja em cursos técnicos pós-médio, nas universidades ou diretamente no mundo de trabalho, empreendendo ou não. Não há apenas um caminho a seguir, e um bom modelo será aquele que abra as possibilidades para os jovens escolherem o mais adequado aos seus interesses.” A oportunidade histórica está colocada. Que os gestores educacionais brasileiros não a percam uma vez mais.

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Autor

Eduardo Marini


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