NOTÍCIA
Ao contrário do defendido por setores políticos e religiosos nos últimos anos, país não vive uma epidemia no consumo de drogas ilícitas: o maior problema são as bebidas alcoólicas
Um estudo profundo, divulgado em abril pelo Instituto Casa da Democracia e portal The Intercept, recolocou em cena uma das questões mais delicadas e de difícil enfrentamento no ambiente da Educação: o consumo de álcool, cigarro e drogas ilícitas por adolescentes e jovens estudantes brasileiros.
O 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, contratado por licitação junto à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) por R$ 7 milhões no governo Dilma Rousseff, entregue no final de 2016, no período de Michel Temer, e jamais publicado pela Secretaria Nacional de Política de Drogas (Senad), do Ministério da Justiça, responsável pela encomenda, traz a maior radiografia da história do país sobre consumo de bebidas alcoólicas, tabaco e substâncias ilegais por adolescentes e jovens entre 12 e 17 anos e adultos dos 18 aos 65 anos.
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Os pesquisadores ouviram 16.273 pessoas em 351 municípios dos 26 estados e do distrito federal. Utilizaram a base metodológica da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, a Pnad, do IBGE. Uma amostra duas vezes maior, por exemplo, do que a adotada no último grande estudo nacional, feito em 2005 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, o Cebrid. O que permitiu incluir, pela primeira vez, padrões de consumo de zonas rurais e regiões de fronteira. As drogas envolvidas no 3º Levantamento são as lícitas álcool, tabaco industrializado e não industrializado; e as ilícitas maconha, haxixe ou skank, cocaína em pó, crack e similares, solventes, ecstasy/MDMA, ayahuasca (cujo consumo não é ilícito), LSD, quetamina, heroína, estimulantes e anabolizantes.
Os resultados levam a duas conclusões gerais. A primeira: apesar da necessidade de atenção contínua e de políticas públicas e educacionais eficientes, mesmo porque qualquer fração pequena de percentual de consumo significa algo considerável diante de 215,2 milhões de habitantes, o Brasil, ao contrário do defendido por alguns setores políticos, sociais e religiosos nos últimos anos, não vive uma epidemia de consumo de drogas ilícitas. A segunda: o problema principal, que demanda maior atenção, esforço e investimentos, continua a ser exatamente o consumo pela molecada do que é lícito socialmente, ou seja, álcool e tabaco, tanto para o período dos 12 aos 17 anos quanto para qualquer outra faixa etária, apesar da proibição legal de venda de bebida alcoólica para menores de 18 anos em todo o país.
A avaliação fria do volume de números e estatísticas mostramos que os percentuais de consumo de todas as drogas ilícitas no Brasil se estabilizaram e, em alguns casos, caíram. Mas nem por isso o combate deixa de merecer apoio, mobilização e até investimentos compatíveis com a dimensão desta parte do problema. “O estudo epidemiológico da Fiocruz é robusto e não mostra epidemia. Agora, 1% da população tendo relatado uso de crack pelo menos uma vez na vida é relevante, chama a atenção”, diz o psiquiatra Luiz Fernando Tófoli, da Unicamp. Fato: projetada sobre a população brasileira, são 2,15 milhões de pessoas, número equivalente ao da soma dos habitantes das cidades de Salvador e Juiz de Fora. Claro que nem todos se tornaram dependentes. Mas, diante da capacidade brutal de geração de vício da substância, muitas vezes até a partir do primeiro uso, não é difícil imaginar que uma parte importante deste grupo tornou-se dependente. Raciocínio semelhante pode ser feito em relação à cocaína, consumida ao menos uma vez na vida por 3,1% da amostra, ou cerca de 6,6 milhões de brasileiros. Embora não produza dependência como na velocidade estonteante do crack, a cocaína envolveu, até agora, um volume de pessoas três vezes maior.
No outro pilar do estudo, o uso do álcool, incentivado, entre outras coisas, pela publicidade cosmética e a alta facilidade de compra, cresce em ritmo pequeno, mas constante, entre a população, e de forma um pouco mais acelerada entre meninos e meninas na faixa dos 12 aos 17 anos. “Quinze a cada cem brasileiros que começam a beber socialmente se tornarão dependentes do álcool no Brasil. No caso da maconha, é mais ou menos a metade – e, cientificamente, podemos dizer que causa dependência psicológica, algo negativo, é claro, mas bem mais fácil de tratar, e ainda não comprovadamente física”, explica a Educação o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, doutor em Psiquiatria pela Unifesp e integrante da International Association for Analytical Psychology.
“Há mais de um milhão de pontos de venda de álcool no país. Muitos vendem para menores. Naqueles que não vendem, o amigo da turma com mais de 18 anos compra. Hoje a tevê não exibe propaganda de destilado até determinada hora da noite mas as de cerveja e ices da vida estão lá, lindas, digitalizadas, em ambientes de dança, esporte, lazer de jovens, como se aquilo não fosse para conquistar a faixa sub-18. Querem enganar quem? Sabemos que é. E também como se, por exemplo, quatro garrafas de cerveja não tivessem mais álcool do que duas doses de destilado”, alerta ele.
Um dos mais importantes estudiosos do tema no país, pioneiro no estudo e na implantação de política de redução de danos por aqui, Xavier da Silveira identifica um equívoco estratégico frequente na condução de políticas de combate e orientação de jovens, adolescentes e familiares. “É evidente que o combate às drogas ilícitas exige olhar e trabalho atentos, mas imagine esse percentual assustador de 15% projetado sobre os milhões de estudantes adolescentes e jovens na faixa dos 12 aos 18 ou 20, 21 anos, no caso do álcool, com seu poder devastador de geração de dependência progressiva, incurável, causadora de desestruturação individual, social e familiar. Qual o tamanho dessa base potencial de futuros dependentes? Certamente imensa. No entanto, como a bebida é a droga social, dos bares, da celebração, de fácil compra e venda, convivemos historicamente com certa anestesia das autoridades para regular este consumo, enquanto frequentemente superestimam, por motivos morais, religiosos ou políticos, os prejuízos práticos, constatados na ponta, causados pelas drogas ilícitas”, acrescenta.
Xavier da Silveira lembra o caso de uma família que atendeu para exemplificar essa realidade. “Um casal nos procurou dizendo que havia internado o filho para tratamento porque ele tinha assumido que fumava maconha de vez em quando. Fui avaliar o rapaz no local. Ele disse que fumava ‘um baseadinho de vez em quando’. Mas revelou também que o irmão, um ou dois anos mais velho, voltava para casa bêbado, ou sob forte efeito do álcool, de duas a três vezes por semana – o que os pais confirmaram nas sessões seguintes”, conta o pesquisador. “Em resumo: o irmão mais velho naquele ritmo, e provavelmente o pai em duas horas de churrasco num sábado, se intoxicavam e criavam riscos em intensidade muito maior do que os dois ‘baseadinhos’ do caçula em um mês”, compara.
Mas o que deve ser feito na implantação das políticas de prevenção e redução de danos no combate ao uso de álcool, tabaco e drogas ilícitas nas escolas? Em suas consultorias a colégios, redes e governos, Xavier da Silveira costuma dividir o trabalho em três linhas de conteúdo, para educadores, pais e jovens estudantes. “Com professores e pais, faço uma abordagem técnica, científica e estatística do tema em relação a drogas lícitas e ilícitas, com o alerta de que isso não deve ser passado para os adolescentes em clima de terror”, detalha. “Entre os alunos, procuro apresentar contextos comuns de vida nessa faixa etária, mostrando prejuízos que o álcool e as drogas trazem à realidade deles, os riscos de perdas ocorridos de acordo com os valores deles naquele momento de vida.”
O pesquisador lembra de uma palestra para jovens, feita em um colégio paulista, em que foi questionado por um dos professores por ter falado de autoestima e rotina dos adolescentes em 95% do tempo e quase nada dos efeitos químicos, físicos e psicológico do álcool e das drogas. “Expliquei que o discurso denso e com ares de terror não resolve. Se o adolescente já usou álcool ou droga, sabe que há efeitos agradáveis no início e vai descartar toda a abordagem por desconfiar dela, de quem a fez ou das duas coisas. E se jamais usou, ficará, como todo jovem diante do bombardeio de informações sobre efeitos e alterações, extremamente curioso em experimentar para saber qual é e, eventualmente, ver o mundo de forma diferente.”
Regina Tocci, professora e pedagoga com especializações em gestão educacional e em dependência química, liderou, entre 1998 e 2015, o programa de prevenção de saúde e uso de álcool e drogas do colégio paulistano Santo Américo, premiado num congresso da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e Outras Drogas (Abead). O programa tinha formação contínua de professores, orientadores, diretores e bedéis, abastecida por encontros regulares com especialistas da Unifesp e do Cebrid, que também conversavam com os alunos. “As aulas que tratavam sobre o tema, e também as relacionadas à educação sexual, tinham lugar garantido na grade, e como preparávamos a equipe, elas eram dadas por mais de um professor”, conta.
“A política correta une preocupação, atenção, formação técnica e apoio aos envolvidos e seus pais. Identificar o consumo é fundamental. Não por questão moral, mas para diminuir o risco de a prática crescer dentro da escola. Por isso até os bedéis foram incluídos no processo. Além disso, valorizávamos muito o aluno não consumidor que nos procurava para conversar sobre o assunto depois das aulas e palestras. Isso ajudava a identificar casos preocupantes entre colegas deles. E, por fim, a manutenção do contato com os pais, não para punir ou expulsar o aluno, mas para procurarmos, juntos, a melhor forma de solucionar o problema”, acrescenta ela, atualmente professora do colégio Pio XII.
A professora Maria Estela Benedetti Zanini, mestre em Ciências Biológicas, especialista em Dependência Química, professora e coordenadora do Programa de Prevenção às Drogas e Educação Sexual do Colégio Bandeirantes-São Paulo, concorda com a tese de que o problema exige mais proteção e orientação e menos (ou quase nada de) punição. Seu programa também envolve formação de professores e diretores da escola por meio de parcerias com a Unifesp. “Atualmente, com a infinidade de informações oferecidas pelos meios de comunicação e a internet, não é possível ter a pretensão de acreditar que o jovem irá se informar antes de todos, sobre álcool e drogas, sempre na escola e em casa. Poderemos não dar as primeiras informações, mas temos obrigação de dar as melhores e mais efetivas para a vida deles”, analisa.
“É nosso dever criar uma rede de proteção para esses jovens. Se beber faz mal até ao cérebro nessa fase de formação e, além disso, a venda é proibida para menores, então não pode – e ponto. Não chamamos os pais nesse caso para dizer o que ele têm de fazer com os filhos dentro de casa. Mas deixamos claro, por exemplo, que se eles consome m álcool regularmente e, de vez em quando, com o filho menor, consideramos isso negativo e, pior, um fator de risco para o filho, e o ideal seria abolir a prática com o adolescente”, completa a professora.
“Acreditamos que simplesmente proibir qualquer droga, por mais perigosa que ela seja, é pior e traz perigo social muito maior do que regulá-la a partir de pesquisas e estudos científicos e sociais verdadeiros e desmistificados dos efeitos e do padrão de consumo de cada uma. E é imperioso que esse material seja apresentado e discutido com a sociedade”, pede o advogado Cristiano Maronna, presidente da Plataforma Nacional de Política de Drogas, rede de estudiosos e organizações dedicados ao tema.
“Tudo leva a crer que os resultados desse 3º Levantamento Nacional Domiciliar sobre o Uso de Drogas, que custou R$ 7 milhões do contribuinte, permanecem oficialmente embargados por não confirmar, e até mesmo desmentir, a epidemia de drogas ilícitas propalada com ares de terror por setores conservadores, o atual governo e o anterior, de Temer. Sobretudo a epidemia de crack, outro mito, mas sobre o qual pairam interesses religiosos e financeiros imensos na área do tratamento.” Maronna tentou conseguir, por duas vezes, o resultado do 3º Levantamento por meio da Lei de Acesso à Informação. Teve os pedidos negados. Depender da verdade é positivo, sobretudo quando o que está em jogo são coisas como prevenir e reduzir riscos, diminuir vícios e salvar ambientes, famílias e, na ponta final, vidas.